11.8.25

"O Amuleto de Ogum" - Nelson Pereira dos Santos (Brasil, 1974)

Sinopse:
No sertão, Maria (Maria Ribeiro) leva seu filho Gabriel (Ney Sant’Anna) a um centro de umbanda, a fim de “fechar seu corpo”. Dez anos mais tarde e já protegido a partir do uso do amuleto, o rapaz chega ao sul para encontrar-se com Dr. Severiano (Jofre Soares), chefe de uma quadrilha que lhe acolhe por indicação de uma importante figura. Lá conhece Eneida (Anecy Rocha), companheira do criminoso com quem se envolve.
Comentário: Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) foi um diretor, produtor e roteirista brasileiro, considerado um dos fundadores do movimento Cinema Novo. Sua produção atravessa um período de 60 anos na história do Brasil com obras como “Rio, 40 Graus” (1955) e “Memórias do Cárcere” (1984) dentre outras. Assisti dele o bom “Vidas Secas” (1963) e desta vez vou conferir “O Amuleto de Ogum” (1974).
Arthur Tuoto nos conta em seu site que "'O Amuleto de Ogum' (1974) é um dos filmes mais marcantes [de Nelson Pereira dos Santos] porque harmoniza a típica liberdade formal (a câmera na mão, a abordagem ríspida e documental com seu espaço) com as peculiaridades de um filme de gângster.
O filme narra a história de Gabriel (Ney Sant’anna), um jovem vindo do nordeste que chega na Baixada Fluminense para trabalhar para Severiano (Jofre Soares). Assim que o protagonista se transforma em capanga e assassino, descobre-se que ele tem o corpo fechado.
Além de uma contextualização crua que concilia a realidade violenta do ambiente com uma história de teor universal (Gabriel se envolve com a mulher de seu chefe e cria-se uma espécie de guerra de facções), o filme integra um elemento místico que o torna ainda mais incomum. Como não existe jeito de derrotar o personagem por meios físicos, o chefão Severiano parte para o terreno do sobrenatural.
A umbanda é retratada no filme com o mesmo realismo de todos os outros elementos. Não existe um julgamento moral, mas uma apropriação gráfica que se desenvolve junto com a história. A forma direta com que Santos aborda as cenas torna os momentos místicos ocasiões memoráveis. A sequência em que o personagem de Jofre Soares está incorporado é registrada com extravagância. Uma câmera na mão que acompanha a instabilidade do transe e uma lente grande-angular que, sugestivamente, distorce o espaço.
O filme inteiro possui uma lógica inflamada que não faz qualquer rodeio. Em uma das cenas mais marcantes, os capangas de Severiano torturam crianças que estavam trabalhando para Gabriel. Existe uma constante brutalidade que dialoga tanto com o período histórico da obra (a ditadura militar) como com uma desumanização que é implícita ao gênero policial. O protagonista se torna uma máquina de matar.
O transe místico é também um transe pelo sangue. Apesar do aspecto cru de toda a abordagem, as matanças possuem um quê ritualístico. Mata-se sem muita cerimônia, mas existe uma excentricidade particular nas cenas. Algo que fica entre o jocoso (como nos primeiros trabalhos de Gabriel como assassino) e um maneirismo formal assumido: a sequência final – o embate entre o anti-herói e o vilão – assume uma variedade de alterações imagéticas (desfoque na imagem, aparições de Severiano como um fantasma onipresente) que proclama um delírio completo entre o esotérico e a violência franca.
Enquanto 'Boca de Ouro' (1963) – a adaptação de Santo da peça de Nelson Rodrigues – é um filme de crime, na medida do possível, mais clássico, até noir em certo sentido, 'O Amuleto de Ogum' (1974) é uma obra muito independente em suas construções estéticas. Santos media as heranças do filme de gângster (a violência gráfica e realista remete a certas obras do cinema pré-code norteamericano da década de 30) dentro de uma iconografia brasileira absolutamente franca. O que resulta numa obra única que, a todo momento, conjuga o alucinado com a brutalidade, o imaginário religioso com a impiedosa realidade".
Em depoimento do próprio diretor para o Jornal do Brasil, a aproximação com a umbanda foi fundamental no processo de realização. Ele declarou que consultou vários terreiros de umbanda e pediu permissão para fazer o filme. Foi nessas andanças que ele conheceu Erley, que interpreta o pai de santo que toma conta de Gabriel. Ele é um babalaô e estava sempre dando as dicas necessárias. Segundo ele, o objetivo era mostrar a umbanda sem os equívocos que existem quando ela é vista como uma crendice popular, como folclore.
No elenco temos: Ney Sant’Anna (filho de Nelson Pereira), Anecy Rocha (irmã de Glauber Rocha), Jofre Soares, Maria Ribeiro, Emmanuel Cavalcanti e Jards Macalé, dentre outros. A trama se baseia no argumento original de Francisco Santos, vindo a receber diversos prêmios, dentre eles o troféu de Melhor Filme no Festival de Gramado em 1975 e o Prêmio Governador do Estado de São Paulo na Categoria Roteiro no mesmo ano.
O que disse a crítica: José Geraldo Couto da Folha SP gostou bastante. Disse: "O que introduz um componente inequivocamente brasileiro e popular nessa história é o fato de Gabriel ter o 'corpo fechado' graças à proteção de Ogum. Em seu aspecto documental, de retrato da miséria na periferia de uma grande cidade, o filme é um dos mais atuais do diretor. Há uma sequência em particular – cortada pela censura na época do lançamento – que parece saída dos jornais de hoje: os meninos do bando de Gabriel são torturados e mortos, um a um, pelos métodos mais cruéis possíveis. O segredo da força de 'O Amuleto de Ogum' reside talvez nisso: na forma crua e despojada com que Nelson Pereira flagrou um certo universo popular, naquilo que tem de sórdido, mas também no que tem de sublime".
O jornal O Estado de SP também gostou. Escreveram: "Nelson fez filmes muito diferentes entre si. 'Vidas Secas' levou-o nas veredas do sertão para se tornar um marco da chamada estética da fome. Com 'O Amuleto de Ogum', ele celebrou o sincretismo. É um filme que possui uma vitalidade extraordinária".
O que eu achei: Me aproximar da filmografia de Nelson Pereira dos Santos tem sido prazeroso. Se eu já havia gostado de "Vidas Secas" (1963), desta vez a grata surpresa foi “O Amuleto de Ogum” (1974). A história é narrada em Caxias do Sul (RS) pelo cego Firmino (Jards Macalé), um violeiro nordestino. Ele conta que uma mulher chamada Maria, após perder seu marido e filho numa emboscada, levou Gabriel, seu filho mais jovem, até um terreiro de umbanda para 'fechar seu corpo'. Quando ele cresce ele migra para a Baixada Fluminense onde conhece o Dr. Severiano (Jofre Soares), que é quem vai lhe inserir no mundo do crime. O pulo do gato nesse roteiro é justamente o fato de Gabriel ser 'imortal', pois como ele carrega consigo o amuleto de Ogum, ele se transforma numa peça-chave da criminalidade, o que impregna o longa de uma brasilidade que o diretor soube aproveitar como ninguém. Atenção ao elenco que conta com Ney Sant’Anna (filho de Nelson Pereira) no papel de Gabriel e com Anecy Rocha (irmã de Glauber Rocha) no papel de Eneida.

10.8.25

“Megalópolis” - Francis Ford Coppola (EUA, 2024)

Sinopse:
 
Cesar Catilina (Adam Driver), um arquiteto idealista que quer construir a cidade dos sonhos, tem como grande rival o ganancioso prefeito Franklin Cicero (Giancarlo Esposito), cuja filha Julia (Nathalie Emmanuel) se vê dividida entre a lealdade ao pai e o amor por Cesar.
Comentário: Francis Ford Coppola (1963) é um produtor, roteirista e cineasta ítalo-norte-americano. É filho do compositor Carmine Coppola, pai da cineasta Sofia Coppola e avô da também cineasta Gia Coppola, além de ser tio do Nicolas Cage e irmão da atriz Talia Shire. Já foi indicado 14 vezes ao Oscar e venceu 5 vezes. Já assisti dele 10 filmes, dentre eles as obras-primas "O Poderoso Chefão" (1972) e "Apocalypse Now" (1979), o excelente "Drácula de Bram Stocker" (1992) e o bom "Agora Você é um Homem" (1966). Desta vez vou conferir o polêmico “Megalópolis” (2024).
Flávio Pinto em colaboração para o site CNN nos conta que esse novo filme do Coppola foi “financiado de forma independente e considerado ‘o projeto dos sonhos’ do diretor”. Ele listou alguns pontos interessantes sobre o filme:
- Inspiração em Curitiba
“’Megalópolis’ tem inspiração na cidade de Curitiba. A produção acompanha um conflito na cidade fictícia Nova Roma em que as pessoas precisam escolher entre o lado visionário utópico de Cesar Catilina (Adam Driver), com o projeto de uma nova versão de cidade, e o pragmatismo realista de Franklyn Cicero (Giancarlo Esposito). Em uma entrevista à imprensa em setembro, Coppola compartilhou que o personagem de Adam Driver e o projeto que ele defende na história foram inspirados, respectivamente, em Jaime Lerner, ex-governador do Paraná, e na cidade de Curitiba. Segundo ele, as ideias inovadoras da cidade brasileira influenciaram a concepção do projeto igualmente utópico proposto pelo protagonista, Cesar Catilina, que, assim como Jaime Lerner, é um urbanista visionário comprometido com a transformação de Nova Roma. Na passagem do cineasta pelo Brasil, Coppola novamente falou sobre o conceito inspirado sobre a cidade do sul do país. ‘Curitiba representa o protótipo do que fiz com ‘Megalópolis’’, disse, elogiando também o projeto de saneamento básico da cidade. ‘É o lugar com o maior nível de cuidado com a coleta seletiva (...)’”.
- Alegoria da jornada de Coppola
“Coppola já havia mencionado que a produção, além de ter uma narrativa única e distinta, é uma alegoria de sua própria jornada no cinema. ‘Todos os meus filmes são’, disse ele em entrevista. ‘Quando eu era jovem e fiz ‘O Poderoso Chefão’, tive que ser como Michael (Corleone), porque eu não tinha poder e tive que ser muito maquiavélico. Quando fiz ‘Apocalypse Now’, eu estava em uma situação absurda com helicópteros e milhões de dólares toda semana que eu estava pagando, então tive que me tornar um megalomaníaco como (o Coronel) Kurtz. Sabe, sempre me tornei os personagens de meus filmes apenas para sobreviver’, acrescentou. (...)”
- Trailer falso?
“Outro ponto polêmico em torno do lançamento de ‘Megalópolis’ foi um trailer que apresentava supostos trechos de críticas negativas sobre alguns dos filmes mais icônicos do cineasta, como ‘Apocalypse Now’ e ‘O Poderoso Chefão’ enquanto promovia sua nova produção. Em entrevista à Entertainment Weekly, Coppola afirmou estar ciente de que alguns de seus filmes não foram aclamados pela crítica, mas que não tinha conhecimento exato do que havia ocorrido com o trailer de ‘Megalópolis’. ‘Foi um erro, um acidente. Não tenho certeza do que aconteceu’, admitiu. (...) Após o lançamento da prévia, usuários pesquisaram as críticas atribuídas a Pauline Kael e Roger Ebert, que apareciam no vídeo, e descobriram que, na verdade, esses críticos haviam elogiado os filmes de Coppola em seus textos originais. Na mesma noite, a Lionsgate, distribuidora do longa-metragem, anunciou que retiraria o trailer de seus canais oficiais e pediu desculpas pelo ocorrido. ‘Pedimos desculpas sinceras aos críticos envolvidos, a Francis Ford Coppola e à American Zoetrope por esse erro inaceitável em nosso processo de verificação. Nós erramos. Lamentamos.’, dizia o comunicado. Além do pedido de desculpas, a companhia também demitiu o consultor de marketing Eddie Egan, que admitiu ter utilizado inteligência artificial para criar as falsas citações”.
A crítica especializada está bastante dividida e o filme chegou a ser indicado e vencer diversas categorias do Framboesa de Ouro, Coppola declarou: “Estou emocionado por aceitar o prêmio Framboesa de Ouro em tantas categorias importantes para ‘Megalópolis’, e pela honra distinta de ser indicado como o Pior Diretor, Pior Roteiro e Pior Filme em um momento em que tão poucos têm coragem de ir contra as tendências predominantes da produção cinematográfica contemporânea!”
O que disse a crítica: Wendy Ide do The Guardian avaliou com 2 estrelas, algo como fraco ou ruim. Disse: “Você pensaria que um filme com uma gestação tão longa – Francis Ford Coppola supostamente teve a ideia para ‘Megalópolis’ em 1977 e começou a escrevê-la em 1983 – e que foi realizado a um custo pessoal tão considerável – Coppola vendeu um vinhedo [ou parte dele] para autofinanciá-lo – teria algo significativo a dizer. Mas, apesar de toda a sua ambição visual impactante, vitrine filosófica e referências literárias aleatórias, esta é uma obra de um vazio gritante. Uma estridente loucura retrofuturista que mistura o kitsch à la Ken Russell com uma presunçosa autoimportância, o filme expõe seu conceito central – que a América moderna segue o modelo da Roma Antiga – com uma reverência que essa ideia não justifica”.
Caio Coletti do site Omelete avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “’Megalópolis’ talvez não seja uma ‘grande obra’, mas certamente é um filme excitante. Chega a ser excitante, inclusive, a sua própria existência como produto, dentro de uma indústria dominada por interesses corporativos que cada vez mais se afastam do processo criativo. Que Francis Ford Coppola tenha sido capaz - depois de muitos anos e falsos começos, e tirando dinheiro do próprio bolso, claro - de criar um filme tão desavergonhado em sua autoralidade, tão inflexível em seu sentimentalismo de artista no terceiro ato da vida e da carreira, já familiarizado o bastante com as próprias obsessões para tirar sarro delas sem deixar de abraçá-las, é um pequeno milagre. Só Coppola poderia ter feito ‘Megalópolis’ em 2024, e só o Coppola de 2024 poderia ter feito ‘Megalópolis’”.
O que eu achei: Não gostar de um filme de Francis Ford Coppola chega a doer no coração, mas esse "Megalópolis" (2024) foi muito frustrante de assistir. Não que eu já não soubesse que a crítica especializada estava bastante dividida. As notas que aparecem nos sites especializados variam de 2 (fraco, ruim) a 5 (obra-prima). Então eu não sabia o que esperar desse longa financiado pelo próprio Coppola que vendeu parte de um vinhedo para bancar sozinho o projeto que ele não conseguiu vender pra ninguém. Conta-se que desde 1983 ele vinha fazendo anotações de ideias para esse filme. Ele envolve arquitetura, história de Roma (tem inúmeras citações de personagens romanos), negociatas de poder... é um filme que fala de utopias e distopias, do controle da mídia, de política antiga e atual, do tempo que passa e você não controla... enfim, é tanto assunto que mesmo durando 2h18m não é possível se aprofundar em nada. Ele devia ter tantas anotações acumuladas ao longo dos anos que muita coisa ficou solta e/ou datada. O próprio conceito de 'megalópolis', título do filme, não é desenvolvido na trama. Tudo se resume a frases de impacto. No elenco há nomes de peso como Jon Voight, Dustin Hoffman e Laurence Fishburne. Adam Driver é o protagonista, mas quem brilha mesmo é Giancarlo Esposito. Porém todos esses atores parecem perdidos nesse roteiro que não sabe pra onde ir. Entre os pontos negativos e positivos que as cenas entregam, o filme termina com muito mais pontos negativos, restando, de positivo, apenas aquilo que se encontra fora do filme, ou seja, ver um cineasta do alto dos seus 86 anos insistindo no seu próprio sonho, bancando um projeto autoral não comercial. Alguns críticos acreditam que talvez, se o filme fosse reeditado, ele poderia ganhar coesão e ser salvo mas, enquanto isso não ocorre, não há muito o que fazer a não ser terminar a experiência com um gosto amargo na boca.

9.8.25

“Kung Fu Panda” - Mark Osborne & John Stevenson (EUA/Japão/China/Rússia, 2008)

Sinopse:
Estamos na China da antiguidade. O urso panda Po trabalha na loja de macarrão da sua família e sonha em transformar-se em um mestre de kung fu. Seu sonho se torna realidade quando, inesperadamente, deve cumprir uma profecia antiga e estudar a arte marcial com seus ídolos, um grupo de mestres conhecidos como os Cinco Furiosos, composto pelos sábios Macaco, Louva-A-Deus, Víbora, Garça e Tigresa.
Comentário: Segundo Robledo Milani do site Papo de Cinema, "depois de histórias bíblicas, lendas sobre a conquista da América e tramas das mil e uma noites, a divisão de animação da Dreamworks finalmente chegou à conclusão de que os bichinhos é que são o ponto forte do estúdio. O sucesso de 'Kung Fu Panda' é a maior comprovação deste fato, depois dos bem sucedidos 'Madagascar' (2005), 'Os Sem Floresta' (2006), 'Bee Movie' (2007) e 'O Espanta Tubarões' (2004) – isso sem mencionar a série campeã de bilheteria 'Shrek' (2001), que apesar de ser protagonizada por um ogro é repleta de animais, desde o Burro até o Gato de Botas. E o conto do Panda gordo e preguiçoso que se revela mestre nas artes marciais, salvando sua vila de uma grande ameaça, mesmo contra todas as expectativas, tem todos os elementos para respeitar seus antecessores, e com um item a mais: um bom humor irresistível!
Apesar de ter custado aproximadamente US$130 milhões, 'Kung Fu Panda' arrecadou quase US$200 milhões no seu primeiro mês de exibição só nos Estados Unidos. Ainda está longe do faturamento de um 'Shrek 2' (2004) – mais de US$ 900 milhões em todo o mundo – mas já é a animação de maior sucesso de 2008, superando com folga 'Horton' e o 'Mundo dos Quem' (2008). Independente do que venha a acontecer, entretanto, os resultados apresentados por essa nova investida da Dreamworks são mais do que positivos, e há muito o que comemorar. Principalmente pelo fato deles serem absolutamente justificados, uma vez que os pontos positivos são perceptíveis em cada instante da projeção.
'Kung Fu Panda' começa com um traço mais ousado, arriscado e inovador. É a história de um Panda mestre do kung fu e de como ele salvou toda a China dos maiores perigos de sua história. Porém logo percebemos se tratar de um sonho, e que o protagonista não passa de um urso desajeitado e dono de uma barriga enorme. Ele trabalha com o pai vendendo macarrão, e parece ligado a um destino de poucas glórias. Mas ele não está acomodado, e quando fica sabendo que será escolhido o novo 'Dragão Guerreiro', o maior lutador de todos e que este terá a missão de defender a aldeia, fará de tudo para estar presente. Só não imaginava que suas confusões acabariam atraindo a atenção da comunidade inteira, principalmente do mais sábio de todos, que termina por escolhê-lo para cumprir a profecia.
Um olhar mais crítico identifica com facilidade: 'Kung Fu Panda' é um filme de uma piada só – a do panda gordo querendo lutar e provocando os maiores desastres com suas atitudes atrapalhadas. Porém a curta duração – são meros 90 minutos – e a agilidade da edição e da fotografia, que apresentam algumas das tomadas mais elaboradas e bem estruturadas da animação moderna, garantem o interesse do espectador durante todo o desenrolar da ação. E essa se faz presente do início ao fim. (...)
A direção dos novatos Mark Osborne (...) e John Stevenson é brilhante, e todo o esforço deles nos bastidores é mais do que compensado pelo que vemos na tela. Os personagens coadjuvantes são outro achado, principalmente os 5 Furiosos: a Tigresa, a Garça, o Louva-deus, o Macaco e a Víbora. Cada um, ao seu modo, conquista a simpatia de imediato, o que torna impossível não torcer por todo o grupo, mesmo quando estão contra o protagonista. 'Kung Fu Panda' justifica com folga a expectativa que despertou durante sua produção, e ainda ganha crédito extra".
Nas vozes originais estão nomes como Jack Black, Angelina Jolie, Dustin Hoffman, Jackie Chan, Lucy Liu e Michael Clarke Duncan, dentre outros.
A animação teve três sequências: "Kung Fu Panda 2" (2011), "Kung Fu Panda 3" (2016) e "Kung Fu Panda 4" (2024).
O que disse a crítica: Davi Lima do site Plano Crítico avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: "'Kung Fu Panda' vai além da quebra de estereótipos, numa possível didática em respeito ao preconceito contra gordos, ou uma imposição da temática social Ocidental numa mitologia Oriental. Na verdade, o grande princípio do panda inferiorizado pelo seu porte físico, racionalmente falando, se mostra na resistência não nomeada do animal panda como imagem da arte chinesa. Se os Cinco Furiosos que Po idolatrava eram figuras qualitativas da arte marcial, o processo todo do filme é em provar que o panda (assim como tigre, cobra, garça, gafanhoto e macaco), é também um animal-símbolo, um atributo para se aprender kung fu".
Thiago Siqueira do site Cinema com Rapadura também avaliou com 4 estrelas. Escreveu: "Apesar de suas pequenas falhas, 'Kung Fu Panda' possui virtudes de sobra para agradar tanto aos pequenos, que irão adorar as estripulias de Po, quanto aos mais velhos, que se deleitarão com as referências aos bons e velhos filmes de kung-fu produzidos por Hong Kong. Recomendado".
O que eu achei: Por conta da indicação ao Oscar da animação "Kung Fu Panda 4" neste ano, resolvi rever a saga começando pelo primeiro desenho da franquia "Kung Fu Panda" (2008). Lembro de tê-lo visto no cinema e de, na época, ter achado tudo muito engraçado e agora, revendo, reafirmo o espetáculo que é essa história de um animal grande e gordo que precisa aprender artes marciais para salvar sua aldeia. A animação toca justamente no estereótipo de que uma pessoa, pra praticar kung fu, precisa ser magra e esbelta. E o urso Po vem justamente provar o contrário. Muito linda também a mensagem que o filme passa quando seu pai, que é um pato que cozinha e vende noodles, resolve contar ao filho o segredo do tempero que ele usa em sua cozinha e a resposta é "nenhum". Essa mensagem corrobora o que todos querem saber sobre o pergaminho secreto que só Po poderá abrir. E quando finalmente ele abre o pergaminho ele está em branco, refletindo seu próprio rosto naquele papel brilhante, transmitindo à crianças e adultos que o segredo para tudo dar certo está em você mesmo. No tocante ao trabalho de animação ele é amorosamente detalhado sem ser exagerado, particularmente a sequência de abertura, que é desenhada à mão. O mundo já viu e aclamou "Kung Fu Panda", mas sempre vale rever. Excelente.

4.8.25

“Malcolm X” - Spike Lee (EUA, 1992)

Sinopse:
 
O líder afro-americano Malcolm X (Denzel Washington) tem o pai assassinado pela Klu Klux Klan e sua mãe internada por insanidade. Preso aos 20 anos de idade, Malcolm se converte ao islamismo e passa a pregar seus ideais.
Comentário: Spike Lee (1957) é um cineasta, escritor, produtor, ator e professor norte-americano. Seu trabalho explora as relações raciais, o papel da mídia na vida contemporânea, o crime urbano, a pobreza e outras questões políticas. Vi dele a obra-prima “Faça a Coisa Certa” (1989), os ótimos "O Plano Perfeito" (2006) e "Infiltrado na Klan" (2018) e o bom “A Última Noite” (2002), dentre outros.
Desta vez vou conferir “Malcolm X” (1992), baseado no livro “The Autobiography of Malcolm X” (A Autobiografia de Malcolm X), contada pelo próprio ativista negro para o escritor Alex Haley, que o redigiu. A cinebiografia analisa a vida complexa e inspiradora de Malcolm X, uma figura-chave do movimento dos direitos civis dos EUA.
Astral Souto do site da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo nos conta que ele nasceu em 19 de maio de 1925, em Omaha, Nebraska, nos Estados Unidos. Foi filho de Earl Little, pastor batista e ativista pelos direitos dos negros.
Seu pai era ligado com a Universal Negro Movement (UNIA), uma organização que buscava a autossuficiência dos negros tentando obter um lugar na África para que os negros americanos pudessem se alocar. "Em 1931, o pai de Malcolm faleceu – sofreu um acidente, mas sua morte teve suspeitas de assassinato por parte da Ku Klux Klan - deixando Louise Little, mãe de Malcolm, e seus sete filhos.
Tendo uma vida extrema, de grande carga mental e física para manter seus filhos viúva, Louise foi internada em um hospital psiquiátrico. Com a perda da mãe, os sete irmãos foram separados em instituições de cuidado juvenil diferentes, levando Malcolm a viver uma infância e adolescência conturbadas.
Em 1946, ele foi condenado a dez anos de prisão por roubo e invasão de domicílio. Foi nesse período que ele teve interações com alguns membros da Nação do Islã (NOI), uma organização religiosa e política que defendia a emancipação negra e considerava o cristianismo uma ‘religião branca’. Dessa forma, depois que saiu da cadeia, Malcolm X se filiou à NOI e, devido ao seu carisma e excelente oratória, se tornou um de seus principais representantes.
Após alguns anos, Malcolm X acabou insatisfeito com atitudes indecentes do líder da organização, Elijah Mohammad, e cortou laços com ela. Como Malcolm X já era uma figura muito visada e admirada, em 1964 fundou a Organization of Afro-American Unity (OAAU), além de sua própria mesquita, Muslim Mosque.
A OAAU era uma instituição que tinha como objetivo restaurar a identidade, a dignidade e a condição financeira dos negros, ensinar os negros sobre sua origem e ajudá-los a se defender dos brancos. No entanto, a vida de Malcolm X, e por consequência a vida da instituição, passava por diversas ameaças. No dia 21 de fevereiro de 1965, o ativista foi assassinado no decorrer de um discurso na OAAU”.
No elenco temos Denzel Washington no papel principal, Albert Hall e Angela Bassett. O diretor Spike Lee também aparece no filme fazendo um papel secundário como Shorty, um personagem parcialmente baseado na vida de Malcolm "Shorty" Jarvis, amigo de Malcolm X. Além disso, o cofundador do Partido dos Panteras Negras, Bobby Seale, o reverendo Al Sharpton, e o futuro presidente da África do Sul, Nelson Mandela fazem participações especiais.
O filme recebeu indicações ao Oscar, ao Globo de Ouro e foi premiado no Festival de Berlim com o Urso de Prata de Melhor Ator para Denzel Washington.
O que disse a crítica: Roger Ebert em seu site avaliou com o equivalente a 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Disse: “Denzel Washington ocupa o centro do filme, em uma atuação de enorme amplitude. Ele nunca parece estar buscando um efeito, mas ainda assim é sempre convincente; ele parece tão natural em uma cena inicial, fazendo palhaçadas em um vagão de trem com sanduíches de presunto, quanto em uma posterior, chamando a atenção do público nas esquinas, em igrejas, na televisão e em Harvard. Ele é tão persuasivo no início do filme, vestindo um terno zoot e rondando as casas noturnas do Harlem, quanto mais tarde, desaparecendo em uma multidão de peregrinos à Meca. Washington é um ator simpático e atraente, e por isso é especialmente eficaz ver como ele demonstra a raiva de Malcolm, o lado dogmático e inflexível.
Leonardo Campos do site Plano Crítico também avaliou com 5 estrelas. Escreveu: “Há, nos bastidores, uma história grandiosa como o filme em questão: a batalha de Spike Lee pela manutenção do filme dentro da visão reflexiva e estética do seu interesse. Os estúdios, sempre representados por seus produtores, profissionais dispostos a picotar as produções para atender aos anseios do grande público de massa, muitas vezes destroem narrativas com grande potencial. Com ‘Malcolm X’ isso não aconteceu”.
O que eu achei: Quem nunca assistiu a cinebiografia do líder afro-americano Malcolm X (interpretada magistralmente pelo Denzel Washington) deve aproveitar a disponibilidade no streaming para conferir. Batizado pelos seus pais como Malcolm Little, Malcolm X considerou mais adequado substituir o sobrenome Little – sobrenome que chegou até ele através de seus ancestrais escravizados, imposto pelos donos desses escravos – por X, letra usada em equações matemáticas cujo número que lhe corresponde ainda precisa ser descoberto, simbolizando com isso a busca por sua verdadeira identidade africana perdida, nome esse que ele nunca veio a conhecer. Nascido filho de um pastor batista aparentemente assassinado por membros da Ku Klux Kan, Malcolm teve uma infância difícil que o levou à prisão por 10 anos onde teve contato com uma organização religiosa afro-americana - a Nação do Islã (NOI) - que combinava elementos do nacionalismo negro e do islamismo tradicional. Assim como seu pai ele vira um pregador religioso, cuja excelente oratória atraiu inúmeros adeptos. Posteriormente, ele se converteu ao islã sunita ortodoxo, fundando a Organization of Afro-American Unity (OAAU), além de sua própria mesquita, Muslim Mosque, onde puseram fim à sua vida, assim como fizeram com seu pai. Poucos filmes justificam uma duração de 3h22m como este, mas o ritmo impecável, a história que reflete o material de origem com fidelidade e, infelizmente, ainda relevante hoje, fazem tudo valer a pena. Não perca.

3.8.25

“Aqui” - Robert Zemeckis (EUA, 2024)

Sinopse:
A trama acompanha diversas famílias ao longo do tempo, revelando as transformações do mundo desde os primórdios da humanidade até um futuro próximo, sempre por meio das histórias vividas numa mesma sala de uma casa, através de um mesmo casal: Richard (Tom Hanks) e Margaret (Robin Wright). Eles estão prestes a deixar o lar onde construíram memórias repletas de amor, perdas, risos e momentos marcantes.
Comentário: Robert Zemeckis (1951) é um cineasta, produtor e roteirista norte-americano, cuja família é de origem lituana e iugoslava. Assisti dele os excelentes e consagrados “Forrest Gump - O Contador de Histórias” (1994), “Náufrago” (2000) e a trilogia “De Volta para o Futuro”, o mediano "Aliados" (2016) e o péssimo "A Lenda de Beowulf" (2007). Desta vez vou conferir “Aqui” (2024).
Miguel Costa do site Clube de Cinema nos conta que “Quase três décadas depois de terem emocionado o público em ‘Forrest Gump’ (1994), Tom Hanks e Robin Wright voltam a unir forças sob a direção de Robert Zemeckis para o filme ‘Aqui’. Inspirado na graphic novel de Richard McGuire, o filme explora a passagem do tempo num único local, onde as vidas e memórias de várias gerações se sobrepõem, cruzando-se de maneira poética e emocional. Esta obra ambiciosa utiliza um conjunto de técnicas cinematográficas avançadas, incluindo rejuvenescimento digital, permitindo a Hanks e Wright interpretarem seus personagens ao longo de várias épocas, desde o passado distante até um futuro hipotético.
‘Aqui’ centra-se numa sala que permanece inalterada ao longo dos anos, enquanto as vidas das pessoas que a habitam mudam e evoluem. Esta abordagem inovadora permite que o público experimente a continuidade da história humana e a forma como os lugares mantêm fragmentos das pessoas que os habitaram. Para Zemeckis, esta narrativa é uma oportunidade única de explorar temas existenciais, como a fragilidade e a permanência da condição humana, criando uma experiência cinematográfica que pretende ser tanto visualmente deslumbrante quanto profundamente introspectiva.
Tom Hanks e Robin Wright partilharam o entusiasmo por este reencontro, considerando-o uma celebração dos anos de carreira que ambos acumularam desde ‘Forrest Gump’. Segundo Zemeckis, o desafio técnico de ‘Aqui’ vai além do rejuvenescimento digital e serve como um recurso para enriquecer a narrativa. ‘A ideia não é apenas ver Hanks e Wright mais novos, mas experimentar as vidas dos personagens com a sensação de continuidade que apenas o cinema pode proporcionar’, disse o realizador. Zemeckis espera que esta experiência imersiva inspire o público a refletir sobre a passagem do tempo e a importância de honrar a história dos lugares e das pessoas”.
O que disse a crítica: Caio Coletti do site Omelete avaliou com 2 estrelas, ou seja, regular. Disse: “Se a ambição era ensaiar uma história sobre destinos amarrados através das eras, por exemplo, as irmãs Wachowski e Tom Tykwer o fizeram com muito mais inteligência e fluência em ‘A Viagem’, mais de uma década atrás. No caso de ‘Aqui’, fica faltando escopo, esforço narrativo, ensejo poético, paixão pela própria história. As obsessões técnicas de Zemeckis, enfim, não são necessariamente o problema. O problema é a grandiloquência arrogante para a qual elas o levam, que nada têm a ver com o que ‘Aqui’ tem de mais interessante para nos contar”.
André Filipe Antunes da Tribuna do Cinema avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: “Tom Hanks e Robin Wright ocupam o centro nevrálgico da narrativa, rejuvenescidos com recurso de inteligência artificial e ao mesmo tempo retomando a química de 30 anos atrás. É verdade que o efeito estranha-se mais do que se entranha, assim como o melodrama açucarado e subdesenvolvido dos vários side stories que ameaçam em vários pontos afundar a ideia. Contudo, no seu melhor, o conceito essencialmente teatral e a qualidade dos protagonistas encontram a intimidade e sutileza do material, elevando-o a algo superior à soma das suas partes”.
O que eu achei: Robert Zemeckis é um cineasta irregular. Ao mesmo tempo que ele faz obras que se tornam verdadeiros clássicos como os consagrados “Forrest Gump - O Contador de Histórias” (1994), “Náufrago” (2000) e a trilogia “De Volta para o Futuro”, ele faz obras como o não mais que mediano "Aliados" (2016) e o péssimo "A Lenda de Beowulf" (2007). Em “Aqui” (2024) ele reúne novamente a dupla romântica de "Forrest Gump": Tom Hanks e Robin Wright. Com o uso de um programa de rejuvenescimento digital ele remoça os atores nesta adaptação para o cinema de uma graphic novel escrita por Richard McGuire, que se passa num único lugar desde o tempo dos dinossauros até o século XXI. Trata-se de uma sala de visitas de uma casa que começa sendo uma floresta que abriga um casal pré-histórico, vira um lote onde se constrói uma típica casa americana por onde passam diversos moradores, até chegar na família do casal interpretado pela dupla. Hanks, agora com 67 anos, aparece magro e jovem graças à tecnologia, Wright idem, parece interessante mas o resultado como obra é sofrível. Se na graphic novel a ideia de sobrepor os tempos funcionou, no filme eu achei que não deu certo. Talvez desse certo no teatro, mas como filme foi uma experiência que resultou robótica, superficial e sem emoção, impedindo qualquer conexão mais profunda com os personagens. Some-se a isso uma trilha sonora melosa e o resultado é decepcionante.

1.8.25

"The Underground Railroad: Os Caminhos Para a Liberdade" - Barry Jenkins (EUA/Reino Unido/Tailândia, 2021)

Sinopse:
 A história se passa em meados de 1800, pouco antes da Guerra Civil americana (1861-1865). Cora (Thuso Mbedo) é uma jovem escrava em uma fazenda na Georgia, e sua vida ficará ainda mais sofrida por estar prestes a atingir a maioridade. Mas seu futuro parece mudar quando Caesar (Aaron Pierre), um escravo recém-chegado da Virgínia, lhe fala sobre a rota de fuga pelas ferrovias subterrâneas.
Comentário: Trata-se de uma minissérie em 10 episódios dirigida pelo norte-americano Barry Jenkins, mesmo diretor dos excelentes longas “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (2016) e “Se a Rua Beale Falasse” (2018).
Mariane Morisawa da Revista Continente nos conta que "No início de sua carreira como cineasta, Barry Jenkins propôs a si mesmo três projetos: um que falasse de sua vivência na infância, uma adaptação de James Baldwin e uma exploração da condição de escravidão nos Estados Unidos. Aos 41 anos, ele já completou os três, com 'Moonlight: Sob a Luz do Luar' (2016) – vencedor de três Oscars, incluindo Melhor Filme –, 'Se a Rua Beale Falasse' (2018) – que deu o Oscar de Atriz Coadjuvante a Regina King – e agora a minissérie 'The Underground Railroad: Os Caminhos Para a Liberdade' (2021). (...)
A oportunidade de adaptar o romance de Colson Whitehead, vencedor do Pulitzer e do National Book Award, surgiu antes mesmo do lançamento de 'Moonlight'. Jenkins se encantou pelo livro, que usa elementos de ficção científica para contar não apenas uma história de pessoas negras escravizadas, como das várias formas de racismo e violência que seres humanos negros sofriam e sofrem nos Estados Unidos.
'Underground Railroad' é o nome dado a um conjunto de caminhos (...) e esconderijos que ajudou milhares a fugirem das fazendas e plantações do sul do país em direção ao norte e ao Canadá. No livro, é transformado em uma ferrovia literal, subterrânea, que carrega com dignidade aqueles que conseguem escapar.
Quando ouviu falar pela primeira vez da 'ferrovia subterrânea', ainda menino, Jenkins foi levado pela imaginação infantil a pensar numa linha real, como no livro. Mas essa não foi a única razão pela qual ele quis adaptar o romance – além de sua qualidade, claro. Houve uma frase em particular: 'Olhe para fora nessa viagem pelos trilhos e você verá a verdadeira face da América'. Se você está no subterrâneo e olha para fora, pensou Jenkins, o que vê? Preto. Havia tantas histórias sobre a experiência negra e como ela se relaciona à fundação dos Estados Unidos que não tinham sido contadas. Sendo assim, será que todos os norte-americanos viram a face real de seu país? Ali, o cineasta soube que tinha de fazer a adaptação, como vemos em algumas de suas entrevistas, que podemos acessar no Youtube ou no material de divulgação do filme. (...)
No caso [do livro] 'The Underground Railroad', lançado no Brasil pela editora Harper Collins, havia também uma certa trepidação, já que se trata de um dos romances mais celebrados dos últimos anos. Mas não só. O cineasta sabia que mostrar o trauma negro na tela é um assunto delicado, e muito se tem discutido sobre isso nos Estados Unidos, que a experiência negra não pode se resumir a histórias de escravização, segregação e brutalidade policial. (...)
E foi por isso que, apesar do medo e dos avisos de amigos e familiares de que não deveria tocar no assunto escravidão, o diretor foi em frente. Porque ele pensou não só em como o assunto era abafado na universidade, mas também na escola. Uma coleção de depoimentos de pessoas escravizadas, realizada na década de 1930, nunca esteve disponível para o aluno Barry Jenkins. Hoje mesmo, há legisladores tentando bloquear o Projeto 1619, lançado por Nikole Hannah-Jones, no 400º aniversário da chegada dos primeiros africanos escravizados às praias dos Estados Unidos. Enquanto há dezenas de produções sobre o Holocausto, existem poucas ainda sobre a escravização de seres humanos africanos que foram fundamentais para a transformação do país numa superpotência mundial. Suas histórias foram apagadas da história com 'H' maiúsculo.
As imagens podiam ser duras, mas eram necessárias, acreditava Jenkins. Por isso, ele optou por uma minissérie em 10 episódios em vez de um filme, a fim de dar espaço para a história e o espectador respirarem. A obra foi lançada toda de uma só vez, mas assistir de uma só vez é opção do espectador – uma opção não-recomendada. Barry Jenkins entende que pode ser demais para alguns, mas também não achava justo esconder a brutalidade e a crueldade do sistema. A questão era como filmar.
'The Underground Railroad' é a história de Cora (Thuso Mbedu). Nascida numa fazenda no estado da Geórgia, ela foi abandonada pela mãe Mabel (Sheila Atim) e desprezada até pelos seus pares. Caesar (Aaron Pierre), que um dia vislumbrou a liberdade, mas foi traído, tenta convencê-la a fugir. Cora só se convence ao ver uma cena insuportável – e, para o espectador, é igualmente difícil. Ainda assim, é nítido que Jenkins evita o prolongamento além do necessário, a violência extrema o tempo todo. A vítima daquela violência mantém sua dignidade. Indignos são os brancos, os donos da fazenda, os espectadores voluntários. A situação fica muito evidente – e tem de ser, porque Cora decide, a partir dali, que é melhor morrer tentando fugir do que ficar. E, assim, Jenkins prefere justamente mostrar o terror e a raiva no rosto de quem é obrigado a assistir, ou seja, os outros escravizados. (...) Seu compromisso era recontextualizar como o norte-americano vê esse período de sua história e como pessoas negras como ele mesmo enxergam seus ancestrais.
Cora e Caesar escapam, tendo no encalço o caçador de escravos Ridgeway (Joel Edgerton) e seu fiel escudeiro, o pequeno menino negro Homer (Chase Dillon), provavelmente o personagem mais inescrutável de 'The Underground Railroad'. Ridgeway está particularmente interessado em capturar Cora, porque vê na fuga de sua mãe, Mabel, um grande fracasso de sua carreira – ou talvez seja melhor chamar de missão. A relação de Cora com a mãe é uma das maneiras pelas quais a minissérie diverge de tantos outros filmes e séries anteriores. A razão maior da vida de Cora é provar para a mãe que ela era merecedora de ter sido salva e que, mesmo tendo sido abandonada por Mabel, é capaz de conquistar sua liberdade sozinha. Cora tem, pois, um conflito além da sua vontade e uma necessidade de escapar da escravização.
A maior parte dos episódios recebe o nome da parada onde Cora se encontra: Geórgia, Carolina do Sul, Carolina do Norte, Tennessee, Indiana. Em cada passo, há violências, preconceitos e humilhações de diferentes tipos. Mas também esperanças, alegrias, amores, aliados, alguns deles brancos, mas em sua maioria negros, como Royal (William Jackson Harper). E natureza. Barry Jenkins sempre foi um cineasta muito sensorial e aqui não é diferente. As paisagens, os sons e a música evocam atmosferas, texturas. (...)
'The Underground Railroad' é uma minissérie sobre fantasmas. Sobre pessoas que estavam lá, que construíram o país, mas que não tiveram direito a nomes próprios, a nacionalidades, a tradições, a amores, a cuidar de seus filhos, a funerais dignos. Que foram apagadas da história. Mas que vivem em seus descendentes, na força de sua cultura e na sua resiliência para sobreviver então, e agora, a tudo isso".
A série ganhou o Globo de Ouro 2022 na Categoria Melhor Série Limitada, Série Antológica ou Telefilme.
O que eu achei: Ótima a minissérie em 10 episódios "The Underground Railroad: Os Caminhos Para a Liberdade" (2021) do já conhecido diretor Barry Jenkins, famoso por longas excelentes como “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (2016) e “Se a Rua Beale Falasse” (2018). O que ele fez aqui foi adaptar o livro "The Underground Railroad", escrito em 2016 pelo romancista afro-americano Colson Whitehead que ganhou o Prêmio Pulitzer de Ficção. Os juízes do prêmio declararam o romance 'uma combinação inteligente de realismo e alegoria que combina a violência da escravidão e o drama da fuga em um mito que fala à América contemporânea'. A parte da alegoria diz respeito justamente ao que o título sugere: 'The Underground Railroads' cuja tradução literal seria 'As Estradas de Ferro Subterrâneas', já que as rotas de fuga que os escravos fugidos do sul dos EUA utilizavam em meados do século XIX rumo ao norte do país, não eram ferrovias e nem subterrâneas. Elas até eram underground (no sentido de clandestinas), mas em cima da terra, formando uma rede de pessoas abolicionistas que ajudavam escravos a se libertar de seus proprietários, auxiliando na travessia de lugares onde o conflito racial era mais intensificado, garantindo abrigo em suas propriedades, por exemplo. No livro – e também no seriado – essa rede é transformada numa verdadeira ferrovia subterrânea cujo trem, em cada episódio, passa por um estado escravagista. Assim vamos acompanhando a fuga da escrava Cora que a mãe abandonou e que agora, ao atingir a maioridade, vê a vida se complicar e começa sua fuga saindo da Geórgia para a Carolina do Sul, depois para a Carolina do Norte, Tennessee e Indiana, em busca de liberdade. O resultado é tão bom que, apesar de todo sofrimento que Cora terá que enfrentar e da dureza das cenas que serão mostradas, a fotografia escura e deslumbrante não te fará desgrudar os olhos. Ao final fica a pergunta: se as rotas de fuga representavam para os negros escravos um caminho para onde fugir, será que esse suposto destino representaria, de fato, um lugar para ficar? Atenção à música que acompanha os créditos finais chamada "This is America" de Childish Gambino (pseudônimo do artista Donald Glover) que fez sucesso na indústria musical e rapidamente conquistou a atenção da cena hip-hop, se tornando um nome de peso do gênero. A canção trata da problemática de ser negro na América. Vale a pena assistir o videoclipe para entender a escolha da música.

28.7.25

“O Medo Devora a Alma” - Rainer Werner Fassbinder (Alemanha Ocidental, 1974)

Sinopse:
Emmi (Brigitte Mira), uma viúva sexagenária, entra em um bar de Munique para escapar da chuva. Ela é convidada por Ali (El Hedi ben Salem), um negro muçulmano 20 anos mais novo que ela, para dançar, o que leva Emmi a se envolver emocionalmente com ele. Mas todos a sua volta questionam e desprezam o relacionamento de ambos.
Comentário: Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) foi um cineasta e ator alemão, considerado um dos mais importantes representantes do chamado Novo Cinema Alemão. Apesar de ter morrido cedo, aos 37 anos, ele produziu 43 filmes. Bissexual assumido, predominam em suas obras temáticas relativas à situação de marginalizados ou deslocados na sociedade alemã. Assisti dele os bons "Martha" (1974), "Lola" (1981), "Lili Marlene" (1981) e "O Desespero de Veronika Voss" (1982), além de “A Terceira Geração” (1979) e “Querelle” (1982). Vi também a ótima minissérie “Berlin Alexanderplatz” (1980). Desta vez vou conferir “O Medo Devora a Alma” (1974), muitas vezes traduzido como “O Medo Consome a Alma”.
João Garção Borges do site HD Magazine nos conta que “Rodado em duas semanas, no fim do verão de 1973, com um orçamento nitidamente apertado se comparado com o de outros filmes do realizador, ‘O Medo Devora a Alma’ (...) pode ser visto como a abordagem dura e crua de uma realidade social prevalecente na Alemanha do pós-guerra, a do alegado ‘milagre alemão’, uma realidade cruzada por muitas forças contraditórias de maior ou menor intensidade, mas onde os preconceitos de superioridade racial incutidos anos antes pela ideologia nazi ainda se faziam sentir, mesmo entre aqueles que de um modo ou de outro nunca foram mais do que carne para canhão nas ambições de supremacia imperialista do projeto de erguer um Terceiro Reich em que a raça ariana seria a dona e senhora do mundo.
E como se desenvolve esta análise concreta de uma situação concreta, por parte da realização? Nas primeiras sequências deste filme somos introduzidos aos ambientes muito coloridos de um bar frequentado por imigrantes oriundos do Norte de África, na verdade cores bem saturadas a partir do Eastmancolor, que a direção de fotografia de Jurgen Jurgens polariza com inegável competência. Desde o genérico inicial que a sonoridade da música árabe magrebina [oriunda do Magrebe, ou seja, da região do noroeste da África] vinha adicionando uma pitada de exotismo a esta atmosfera ‘estrangeira’, que pouco depois será o motivo que faz uma senhora, Emmi Kurowsky (Brigitte Mira), nos seus sessenta anos de idade, entrar naquele local onde, manifestamente, não se enquadra cem por cento. E ela sabe disso mesmo porque, segundo diz, entrou para se refugiar da chuva e, já agora, ouvir a música que noutros dias lhe ficara na memória”. É assim que ela conhece Ali (El Hedi ben Salem), um negro muçulmano 20 anos mais novo que ela, que a tira para dançar, o que leva Emmi a se envolver emocionalmente com ele, com todos a sua volta questionando e desprezando esse relacionamento.
“Neste ponto, R. W. Fassbinder desencadeia com extrema economia narrativa os mecanismos ficcionais necessários e suficientes para fazer prevalecer o percurso individual do casal, não isento de altos e baixos, num contexto hostil mas que a certa altura será alterado, apenas porque os que derramaram o seu veneno sobre os dois, os que chamaram os nomes mais impróprios a marido e mulher, reparam que ela, Emmi, lhes pode ser útil. Pedem-lhe mesmo favores que, ao pensarmos nas suas atitudes poucos dias antes, provam ser solicitados por pessoas sem qualquer vergonha na cara. Mesmo o filho que chamou puta à mãe regressa para lhe pedir apoio (...). O merceeiro, vociferando cinicamente uma máxima do seu negócio, a de que ‘a aversão vem em segundo lugar’, sorri-lhe novamente na esperança de recuperar a cliente numa altura em que ele se queixa que as pessoas preferem ir ao supermercado.
(...) De igual modo, a realização encontra a coragem para se referir a este estado de coisas, não num país imaginado mas no centro fulcral do modo de ser e estar de uma boa parte da pequena-burguesia alemã. Não estamos no domínio do conflito de classes e das contradições entre ideologias inimigas. Aqui, os inimigos estão ao nosso lado, vivem no mesmo prédio; o seu pensamento, herdado de um passado recente onde imperava a ideia de uma raça superior, passa despercebido por entre os pingos da chuva, mas em boa verdade contamina a democracia que dizem respeitar mas com a qual não lidam bem, sempre que sentem o medo, a ameaça real ou imaginária do outro que não corresponde ao seu reflexo no espelho. Por isso, acabam comendo do mesmo prato da economia política que os populistas da extrema-direita, influenciando os destinos de um país cujo passado não fora flor que se cheire".
Vale observar que a trama foi baseada no tumultuado relacionamento romântico real entre o diretor Fassbinder e o ator El Hedi ben Salem, que trabalha no filme no papel de Ali. No elenco estão também Brigitte Mira, Barbara Valentin, Irm Hermann e o próprio Rainer Werner Fassbinder.
O que disse a crítica: Luiz Santiago do site Plano Crítico avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Disse: “Brutal, de certa forma profético e dirigido com uma precisão quase irritante - a composição dos quadros são como pequenos palcos para cada ‘ato’ do longa, com destaque para o apartamento de Emmi e o bar Asphalt -, ‘O Medo Devora a Alma’ é um notável filme sobre a humanidade e os sentimentos humanos dentro de uma comunidade e sob influências históricas sobre as quais não tem controle. Seu enredo é cada vez mais atual e seu final, um dos mais tocantes da história do cinema. Fassbinder realiza aqui uma obra-prima simples e ao mesmo tempo poderosa e atemporal. Uma película difícil de ser esquecida”.
Bernardo D. I. Brum do site Cineplayers também avaliou com 4,5 estrelas. Escreveu: “O ritmo lento é minucioso em destruir uma sociedade ocidental supostamente livre e democrática; é nítido nessa obra (...) o homem não apenas como vítima social, mas também como catalisador da própria desgraça. O flagelo nazista ainda açoitava a Alemanha dos anos setenta – a sociedade onde vivem é autoritária, racista, indiferente aos anseios e receios dos indivíduos – tornando seus próprios indivíduos aberrações, com vergonha de si mesmos, que passarão a obra toda tentando achar um correspondente, alguém que os compreenda – muitas vezes para se frustrar no final. Se Herzog punha o desejo e o sonho acima da racionalidade e da realidade em seus filmes brutais e Wenders contemplava melancolicamente a angústia dos indivíduos que atravessavam estradas que não davam em lugar nenhum, Fassbinder é a terceira via do cinema alemão, a ressaca moral furiosa, as escolhas erradas pagas ainda em vida, o encontro inevitável com a própria destruição”.
O que eu achei: O enredo apresenta a história do casal Emmi (Brigitte Mira) e Ali (El Hedi bem Salem, companheiro de Fassbinder); ela é alemã, ex-hitlerista, viúva e faxineira, e ele é marroquino, vinte anos mais jovem que ela, solteiro e mecânico de automóveis. Eles vão iniciar um romance que tem tudo para dar errado por conta da violência do preconceito e da xenofobia na Alemanha na década de 1970. O filme só não é o melhor de Fassbinder por conta de algumas reviravoltas relativamente inverossímeis. Mesmo assim, ainda vale ver pela atualidade do tema abordada de forma autêntica, amplificando todas as forças opressivas que conspiram contra esse casal. 

27.7.25

“Caminhos Cruzados” - Levan Akin (Suécia/Dinamarca/França/Turquia/Geórgia, 2024)

Sinopse:
Lia (Mzia Arabuli), uma professora aposentada da Geórgia, fica sabendo que sua sobrinha transgênero desaparecida (Tako Kurdovanidze) cruzou a fronteira e foi para a Turquia. Para encontrar a moça, Lia viaja para Istambul e explora as profundezas ocultas da cidade.
Comentário: Levan Akin (1979) é um cineasta sueco-georgiano. São dele os longas ”Katinkas Kalas” (2011) e “The Circle” (2015). Assisti dele o bom "E Então Nós Dançamos" (2019). Desta vez vou conferir “Caminhos Cruzados” (2024).
Alessandra Monterastelli da Folha SP nos conta que “Entre becos de predinhos coloridos e desbotados, uma senhora chamada Lia procura pela sua sobrinha. Suas roupas escuras e tradicionais chamam a atenção de algumas garotas que ocupam as vielas do bairro de Istambul, conhecido pela prostituição. O estranhamento é mútuo, assim como uma certa afeição disfarçada.
Tekla, a jovem procurada, é uma mulher transgênero que saiu de sua casa, na Geórgia, rumo à cidade turca em busca de liberdade. Ainda que nunca tenha sido aceita pela família, Lia prometeu no leito de morte de sua irmã, mãe de Tekla, que reencontraria a moça e a levaria de volta para casa. O desencontro geracional e a disputa pelas tradições culturais voltam a ser tema no novo filme de Levan Akin, ‘Caminhos Cruzados’ (...). ‘O ponto que quero passar com meu trabalho é que a tradição e a cultura não podem ser apropriadas por conservadores ou tradicionalistas. Elas são minhas tanto quanto suas’.
O frenesi causado por ‘E Então Nós Dançamos’, porém, levou o diretor a querer fugir da polarização entre personagens em ‘Caminhos Cruzados’. Foi assim que surgiu a ideia de narrar a jornada de Lia, que conforme busca pela sobrinha trans percebe que ela própria não se encaixa nos padrões sociais definidos para uma mulher de sua idade. Isso porque Lia não é casada e tampouco teve filhos. ‘Na Geórgia, a procriação é a coisa mais importante e mais divina que há’, diz o diretor. Mas, ao mesmo tempo, em que Lia tenta navegar com segurança por uma sociedade patriarcal, ela própria reproduz discursos preconceituosos aos quais foi submetida desde sempre. (...)
Retratar a prostituição foi uma escolha que surgiu após entrevistas de Akin com algumas mulheres transsexuais, que contaram ao diretor que a rota a Istambul era comum para muitas delas. ‘Estou apenas filmando o que vejo quando estou lá. Não foi uma escolha dramática ou narrativa. Elas estão ali e são vistas como cidadãs de segunda classe por muitas pessoas’.
Como fez em ‘E Então Nós Dançamos’, ao enquadrar os passos rápidos e delicados de Merab, que pingava suor para transmitir a virilidade requerida pela dança tradicional gregoriana, quase como se estivesse lutando contra si mesmo, Akin novamente se apega aos detalhes culturais e cotidianos para submergir quem assiste no contexto de seus personagens. Dessa vez são os formatos das janelas de vidros coloridos de habitações em Istambul, nos quais Lia entra e sai aflita, a mesa posta pelas prostitutas que vivem em comunidade, criando a própria família ou, ainda, na dança, que aparece novamente - mas, dessa vez, nos momentos em que Lia mais parece conectada à sua cultura, e não lutando contra ela.
‘Quando eu estava crescendo não havia filmes [LGBT] da região de onde sou’, diz Akin, que passou a adolescência assistindo às já poucas produções queer existentes, filmadas em sua maioria em países como França e Estados Unidos. ‘Eu exploro o tema de viver a vida como se deseja, sem dar importância ao que os outros pensam. E isso também é universal’”.
O que disse a crítica: Bruno Carmelo do site Meio Amargo avaliou com 3,5, ou seja, muito bom. Disse: “O roteiro demonstra certa maturidade ao explorar, da melhor maneira possível, o formato desgastado de world cinema aplicado à lógica LGBTQIA+. ‘Você tem certeza de que Tekla deseja ser encontrada?’, pergunta Evrim à dupla, que jamais havia cogitado a possibilidade de que a garota esteja muito bem, obrigado, em sua nova vida. Existe uma forma de respeito, ainda elegante e distanciado, neste mergulho entre o cinema popular e um cinema voltado à sensibilidade média da crítica internacional. Torna-se uma obra de poucos riscos estéticos, porém dotada de rara maestria dentro da fórmula proposta”.
Mattheus Goto da Veja SP avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: “A força de ‘Caminhos Cruzados’ está nas sutilezas. O filme, dirigido pelo sueco Levan Akin (...) acompanha a busca de Lia (Mzia Arabuli) pela sobrinha Tekla. A senhora é encarregada de realizar o último desejo da finada irmã, de levar a jovem de volta para casa. (...) O longa aborda com delicadeza a realidade da transfobia e do arrependimento dos familiares. As diferentes camadas das personagens podem ser notadas graças às performances ricas, principalmente de Deniz e Mzia”.
O que eu achei: Se "E Então Nós Dançamos" (2019) era bom, este “Caminhos Cruzados” é ainda melhor. O sueco-georgiano Levan Akin acerta o tom ao mostrar a professora Lia, acompanhada do jovem vizinho Achi, fazendo de balsa o trajeto de Batumi, na Geórgia, a Istambul, na Turquia, para procurar Tekla, a sobrinha transgênero de Lia, que fugiu da mãe e da tia em busca de liberdade. De posse de um endereço falso eles terão que contar com a ajuda de uma advogada trans chamada Evrim para, quem sabe, levar a sobrinha de volta para a Geórgia. De uma delicadeza atroz, o filme termina numa espécie de delírio mostrando o preconceito como uma grande perda de tempo – e de pessoas – em nossas vidas. Um filme para ver e refletir. 

26.7.25

"Mundo de Glória" - Roy Andersson (Suécia, 1991)

Sinopse:
Na periferia de uma cidade sueca, uma multidão observa homens, mulheres e crianças nus serem levados à morte em um caminhão. Um homem simples de meia-idade vira-se para a câmera e começa uma visita guiada à sua vida, mostrando seu casamento sem amor, seu emprego tedioso e suas atividades cotidianas.
Comentário: Roy Andersson (1943) é um cineasta sueco. Ele passou grande parte de sua vida profissional trabalhando com publicidade, mas também dirigiu diversos curtas e longas metragens para o cinema, desenvolvendo um estilo pessoal de humor absurdista com representações melancólicas da vida. Assisti dele 4 filmes: as obras-primas "Canções do Segundo Andar" (2000) e "Vocês, os Vivos" (2007) e os ótimos "Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência" (2014) e “Sobre o Interminável” (2019). Desta vez vou conferir "Mundo de Glória" (1991), um curta-metragem com 16 minutos de duração.
Swapnil Dhruv Bose do site Far Out Magazine nos conta que "Quando falamos de alguns dos cineastas mais enigmáticos da atualidade, o nome do autor sueco Roy Andersson inevitavelmente surge. Tendo conquistado os corações de cinéfilos do mundo todo com obras-primas como 'Canções do Segundo Andar' e 'Vocês, os Vivos', o senso de humor único de Andersson se encaixa perfeitamente no meio cinematográfico. Seu estilo de comédia absurdista é sempre transgressor, levando o público a refletir sobre as imagens na tela.
Andersson alcançou o sucesso logo no início de sua carreira, com seu longa de estreia, 'Uma História de Amor Sueca', aclamado pela crítica em todo o mundo. Recém-formado no Instituto Sueco de Cinema, o cineasta emergente foi influenciado pela Nouvelle Vague tcheca para fazer um filme inovador sobre o amor jovem. No entanto, o sucesso de 'Uma História de Amor Sueca' afetou negativamente Andersson, que ficou deprimido por ser constantemente associado a esse estilo cinematográfico específico.
Em conversa com a MUBI , Andersson explicou: 'Eu não conseguia mais achar o chamado 'realismo' ou 'naturalismo' interessante. Meu primeiro filme, 'Uma História de Amor Sueca', foi bom, eu acho. É muito bom para esse estilo. Tem boas atuações, é muito espiritual e impressionante. Mas eu senti que não conseguiria ir mais longe com esse estilo. Então, com 'Giliap', comecei o processo de encontrar o estilo que estou usando agora. Mais abstrato, mais planejado. Mais abstrato visualmente'.
O cineasta acrescentou: 'Mesmo na arte, me aproximei mais da pintura abstrata. Não me aproximei do não figurativo. Gosto tanto do figurativo quanto do abstrato. Todas essas coisas sobre as quais você e eu estamos falando agora - expressionismo, impressionismo, simplicidade - acho que, dentro de nós, temos todas essas coisas. Meu lado abstrato sempre esteve lá. Depois de ter passado pelo naturalismo e pelo realismo, encontrei esse lado em mim. Usei-o para condensar, purificar e simplificar as cenas'.
Apesar dos esforços de Andersson para se reinventar com seu drama 'Gilliap', de 1975, o projeto acabou sendo um fracasso financeiro e de crítica catastrófico. Embora o diretor insistisse que o mundo não estava pronto para 'Gilliap', Andersson deu um longo hiato no cinema e se aventurou no mundo dos comerciais. É por isso que seu retorno crítico, o filme 'Mundo de Glória', de 1991, surpreendeu muitos, já que foi a primeira vez que o estilo cinematográfico característico de Andersson foi plenamente demonstrado.
É uma coleção bastante simples de vinhetas que acompanham um homem que apresenta vários momentos de sua vida e o mundo extremamente sombrio em que vive. No entanto, Andersson não mede palavras. Desde a cena inicial, com crianças sendo gaseadas na carroceria de um caminhão (ou de uma unidade móvel de extermínio), fica evidente que se trata do trabalho de um cineasta que desconhece o medo. Essa cena inicial é, na verdade, a introdução perfeita à obra deliciosamente deprimente de Andersson.
Desprovido de qualquer emoção, o homem nos guia por seu trabalho como corretor imobiliário e outros aspectos de sua vida cotidiana, mas é o mundo que desperta mais curiosidade. O universo cinematográfico de Andersson não opera com as mesmas estruturas lógicas que o nosso, parecendo uma extensão grotesca dos piores aspectos da nossa sociedade. Embora Andersson tenha alcançado patamares artísticos mais elevados, 'Mundo de Glória' sempre se destacará. Inspirado pelo grande Krzysztof Kieslowski, o retorno de Andersson ao cinema é glorioso, diferente do mundo terrível apresentado no filme".
O que disse a crítica: R. W. Gray do site Numéro Cinq gostou. Disse: "Andersson conecta os medos mortais de um homem às pequenas coisas lúgubres, quase patéticas, às quais ele se apega com normalidade diante da passagem da vida (...). 'Mundo de Glória' sugere que a coisa mais notável neste mundo é a nossa insensibilidade, a nossa passividade, a nossa desconexão. A glória existe na ausência. Em suas outras obras, isso leva a momentos de grandes risadas constrangedoras, mas aqui, neste pequeno filme, ele nos prende à dor. Talvez nessa dor resida a esperança da glória".
Adam Nayman do site Reverse Shot também gostou. Escreveu: "Eu chorei e chorei em muitos filmes na minha vida, mas nunca mais fiz um som como o que escapou dos meus lábios durante 'Mundo de Glória'. Algo entre uma risada incrédula ('Eu não posso acreditar que ele está fazendo isso') e uma erupção mal engolida que poderia ter sido um soluço ou um ânimo seco. Não consigo me lembrar se meu parceiro de exibição teve uma reação visceral comparável, mas sei que quando o filme terminou cerca de dez minutos depois, sentamos juntos em transe. Se 'Mundo de Glória' tivesse apenas três minutos de duração, poderia se qualificar como a coisa mais devastadora que já vi. As cenas que seguem sua abertura de cair o queixo são vinhetas negras perfeitamente realizadas que parecem muito com um ensaio para 'Canções do Segundo Andar', mas são, apesar de sua paleta de tons de cinza e desolação estudada, muito mais fáceis de aceitar do que as que as precedeu".
O que eu achei: Já faz algum tempo que venho acompanhando o cinema do sueco Roy Andersson. Assisti as obras-primas "Canções do Segundo Andar" (2000) e "Vocês, os Vivos" (2007), vi também os ótimos "Um Pombo Pousou num Galho Refletindo sobre a Existência" (2014) e “Sobre o Interminável” (2019) e agora, aproveitei a disponibilidade do filme no streaming, para ver um curta-metragem anterior a todos esses: "Mundo de Glória" (1991). O filme tem 16 minutos de duração, começa mostrando crianças e adultos nus sendo mortos na carroceria de um caminhão, que funciona como uma unidade móvel de extermínio, onde todo o gás carbônico que sai do escapamento infesta esse compartimento. Na sequência o que ele mostra é basicamente uma coleção de vinhetas que acompanham um homem de meia-idade, que trabalha como corretor de imóveis, e nos apresenta vários momentos deprimentes de sua vida vazia sem qualquer emoção. Tudo com aquele enquadramento e tons pastéis cujo estilo lembra Edward Hopper e que virou sua marca registrada. Esse é o mundo de Roy Andersson. Quem conhece seu estilo não esperaria mesmo outra coisa desse pequeno prelúdio para os estudos do diretor sobre a alienação humana. É curto mas vale ver.

“Santo Forte” - Eduardo Coutinho (Brasil, 1999)

Sinopse:
 
Em 5 de outubro de 1997, uma equipe de cinema entra na favela Vila Parque da Cidade, situada na Gávea, zona sul do Rio de Janeiro. Os moradores assistem à missa celebrada pelo Papa no Aterro do Flamengo. Em dezembro, a equipe volta à favela para descobrir como seus moradores vivem a experiência religiosa. Católicos, umbandistas ou evangélicos, todos eles têm em comum a crença numa comunicação direta com o mundo espiritual através da intervenção, em seu cotidiano, de santos, orixás, guias ou do Espírito Santo.
Comentário: Eduardo Coutinho (1933-2014) foi um cineasta e jornalista brasileiro. É considerado por muitos como o maior documentarista da história do cinema do Brasil. Assisti dele os excelentes "Cabra Marcado Para Morrer" (1984), “O Fio da Memória” (1991), “Edifício Master” (2002) e “Jogo de Cena” (2006). Todos sensacionais. Desta vez vou conferir um documentário feito por ele em 1992 chamado “Santo Forte” (1999).
Eduardo Valente do site Contracampo nos conta que “O filme (...) opta pela radicalização do discurso no sentido contrário de Fé. É um filme sobre as pessoas e como elas lidam com sua fé. As pessoas têm nome, têm endereço, têm cara, têm personalidade. As pessoas conversam com o diretor sobre os mais variados assuntos, as mais diferentes formas como a fé está presente no seu cotidiano. (...)
[Com isso], não se pode dizer que o tema do seu filme seja só a fé. O tema deste filme (como de todos seus outros) é a vida de exclusão de parte da sociedade brasileira. Seu filme fala de uma favela, e ao falar dela fala de todos os pobres brasileiros, e dos seus pensamentos e sentimentos. Ao falarem de fé, eles acabam falando de muito, muito mais. Revelam suas relações com a elite, sua autoimagem, as relações entre si, a visão de futuro, passado e muito presente. Refletem o rosto de um país, hoje.
O filme de Coutinho foi gravado em vídeo. Talvez por isso possa passar tanto tempo com cada pessoa, tantas horas de conversa sobre tudo, que levam a momentos raros de revelação que não se consegue em minutos. Claro que não se deve menosprezar o poder de Coutinho como entrevistador, pois ele quase hipnotiza o entrevistado e o espectador com sua fala mansa, suas perguntas bem colocadas. Por tudo isso, ‘Santo Forte’ acaba revelando um paradoxo típico dos novos tempos. A liberdade de aprofundar-se que o vídeo lhe dá faz de ‘Santo Forte’ um produto muito mais cinematográfico do que Fé. Estamos opondo cinematográfico à ideia de televisão, que é quase sempre corrida e superficial. Com isso, somos pegos de surpresa nos limites de suporte dos filmes de hoje. Vemos que o ser ‘cinematográfico’ já não fala mais de bitolas nem de estilos (enquanto Fé tem inúmeras cenas de multidão em exterior, ‘Santo Forte’ passa-se quase todo entre 4 paredes), mas de aproximação com o assunto.
Além do suporte, existe algo mais do formato de ‘Santo Forte’ que revela sua proposta. Nele, a interação da equipe de filmagem com os entrevistados é explicitada. Não só ouvimos as perguntas, mas vemos a equipe chegando, sua recepção, o pagamento do cachê aos entrevistados. Com isso, Coutinho quer quebrar a tal barreira do distanciamento. Deixar claro ao espectador que aquelas pessoas estão se expondo a uma câmera, conscientemente. Isso tem efeitos nos entrevistados, claro. Quais são, não se pode concluir, mas é tolo achar que as pessoas agem da mesma maneira em frente a uma câmera. Por isso o diretor gosta de dizer que o filme não é sobre a fé, mas sobre uma equipe de filmagem gravando um documentário sobre a fé. O reconhecimento desta reflexividade é básico no mundo de hoje.
O filme de Coutinho tem uma espontaneidade inegável, não a de algo que acontece apesar de uma equipe de filmagem estar ali, que é impossível. Mas a de que acontece quando se sabe que a equipe está ali. Não há dúvida de que há pesquisa por trás do filme, que há horas de montagem na opção por este recorte. Mas, ainda assim, o filme de Coutinho se fez nas filmagens, pelas pessoas envolvidas. O filme todo está no que se fala, e quem tem a voz são as pessoas. Ao mostrar a equipe, Coutinho faz dos entrevistados o verdadeiro centro do filme. (...)
A relação não racional de Coutinho com a fé faz muito mais sentido do que a de Fé. Ela chega ao ponto em que não vemos nenhuma cena das descritas pelas pessoas. Num golpe de mestre final, mais do que não ver as ações, ele nos mostra cômodos vazios. Nestes, que poderiam passar quase desapercebidos, está toda a ideologia do filme: a fé não se pode filmar. Ela está dentro das pessoas, e é vivida por elas. Mostrar os ritos tem valor sim, quiçá antropológico. No entanto, não se pode passar o sentimento da fé. Este está em cada palavra dita em ‘Santo Forte’. E em cada cômodo vazio, onde o espectador pode inserir sua própria fé. Coutinho soluciona a velha dúvida: se a câmera não pode acreditar que vai ‘retratar o mundo’, qual a função do documental?? Simples: introduzir, aceitando sua limitação, e deixar o resto para a consciência e imaginação de cada um”.
O que disse a crítica: Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: “’Santo Forte’ utiliza as três vertentes religiosas mais disseminadas no Brasil para discutir, a partir do então oportuno momento, a função da crença na vida das pessoas, ainda que não o faça sem certa redundância. Sofredores que encontram na devoção a base para o dia a dia não se importam em batizar os filhos pela manhã com as bênçãos do padre e à noite num cenário repleto de fumaças e das bebidas favoritas dos Pretos Velhos. Tal contradição não lhes incomoda, pois seu pacto é com própria fé com a qual abrandam boa parte da carga cotidiana”.
Matheus Fiore do site Plano Aberto avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “Coutinho consegue explorar toda a diversidade religiosa de um povo tão plural quanto o nosso sem nunca arrancar palavras, apenas abrir caminho para que elas saiam naturalmente da boca de seus personagens. ‘Santo Forte’ é mais do que um registro da pluralidade cultural de nosso país, é também a constatação de que a fé permeia cada nível da existência da nossa sociedade. É uma obra que revela o quanto a religião vai além da ligação entre o divino e o mundano, e faz parte de nossa formação identitária, da construção do rosto de um país”.
O que eu achei: A mestiçagem no Brasil refere-se à mistura de diferentes grupos étnicos e raciais, principalmente indígenas, africanos e europeus, que ocorreu ao longo da história do país. Essa mistura resultou em uma sociedade com características únicas e diversas, fazendo com que um cidadão se declare católico romano, ao mesmo tempo em que ele frequenta a igreja evangélica e a doutrina espírita, especialmente as de origem africana como umbanda e candomblé, acreditando piamente na reencarnação. No documentário, Eduardo Coutinho entrevista um recorte específico de pessoas: todos são moradores da comunidade Vila Parque da Cidade, situada na Gávea, no estado do Rio de Janeiro. Mas vi ali minha bisavô italiana que viu Cosme & Damião no seu quarto, vi minhas tias – uma mãe de santo oriunda do RJ, a outra católica fervorosa que não perdia uma missa no domingo – e vi a mim mesma que ao mesmo tempo que duvido de tudo, fui batizada, fiz primeira comunhão, e rezo pra Xangô na certeza de sua existência. É um documentário muito familiar que com certeza vai fazer você reconhecer alguém de seu relacionamento ou a si mesmo. Se jogue.

21.7.25

“Old Boy” - Park Chan-Wook (Coreia do Sul, 2003)

Sinopse:
Oh Dae-Su (Choi Min-sik) é raptado e mantido em cativeiro por 15 anos num quarto, sem qualquer contato com o mundo externo. Quando ele é inexplicavelmente solto, descobre que é acusado pelo assassinato da esposa e embarca numa missão obsessiva por vingança.
Comentário: Park Chan-Wook (1963) é um cineasta sul-coreano considerado um dos nomes mais importantes de cineastas sul-coreanos da sua geração. Assisti dele o ótimo "Três... Extremos" (2004) que era composto por três histórias de terror dirigidas por três diretores diferentes. Vi também o mediano “Decisão de Partir” (2022). Desta vez vou conferir “Oldboy” (2003), um filme que faz parte da sua Trilogia da Vingança, um longa que ganhou status de cult assim que foi lançado.
Roger Lerina do site Matinal nos conta que “Quando estreou há 20 anos, o impactante ‘Oldboy’ (2003) lançou luz sobre a obra do diretor Park Chan-wook e o cinema sul-coreano contemporâneo. Duas décadas depois, o vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2004 volta aos cinemas em versão restaurada, mostrando de novo na tela grande a saga violenta e desconcertante de um homem que deseja se vingar de quem o manteve em cativeiro durante 15 anos.
(...) Além da distinção em Cannes concedida pelo júri então presidido pelo cineasta Quentin Tarantino, o longa também foi premiado na época em festivais de Hong Kong, Inglaterra, Itália e no português Fantasporto, entre outros. Na Coreia do Sul, foi o título mais visto no ano de seu lançamento original, em 2003.
Na época do lançamento do filme nos EUA, em 2005, Park disse ao jornal Seattle Times que Tarantino o procurou pessoalmente para conversar sobre o longa: ‘Ele era capaz de descrever cada cena do filme. Ele lembrava de todos os detalhes sobre enquadramento e montagem, que até eu mesmo havia esquecido. Ele estava tão empolgado que parecia estar falando de um filme que nem era meu. Ele me fez querer rever meu filme’.
Protagonizado pelo ator Choi Min-sik, ‘Oldboy’ acompanha o enigmático destino de um homem que foi misteriosamente sequestrado e encarcerado. Logo, o protagonista Oh Dae-Su descobre que sua esposa foi assassinada e ele é o principal suspeito. Quando é finalmente libertado – por razões igualmente desconhecidas – depois de 15 anos preso, o personagem tem cinco dias para descobrir quem foi seu raptor, o que aconteceu de verdade e realizar sua vingança.
Adaptado de um mangá de Garon Tsuchiya e Nobuaki Minegishi, ‘Olboy’ é uma explosão de ação estilizada e tensão constante, cuja narrativa sinuosa e lacunar intriga e captura a atenção. ‘Obviamente, tudo é exagerado em ‘Olboy’ porque é uma fábula, mas o que realmente me interessa é como as pessoas hoje lidam com a consciência pesada. Meus personagens não são maus, eles são basicamente pessoas boas que se veem incapazes de viver com suas emoções mais sombrias e sofrem uma tragédia como resultado’, explica o cineasta.
Ao lado dos também notáveis ‘Mr. Vingança’ (2002) e ‘Lady Vingança’ (2005), ‘Oldboy’ compõe um tríptico que o diretor chama de sua Trilogia da Vingança”.
No elenco, temos Kang Hye-jeong (Mi-do), Choi Min-sik (Oh Dae-su), Yoo Ji-tae (Lee Woo-jin), Yoon Jin-seo (Lee Soo-ah), Yoo Yeon-seok (Lee Woo-jin), Byeong-ok Kim (Mr. Han), Kim Soo-hyun e Oh Dal-su (Park Cheol-woong).
O que disse a crítica: Érico Borgo do site Omelete avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse: “O melhor de tudo [neste filme] é Choi Min-Sik. O ator com cabelos desgrenhados e cara de maluco dá um show. Honesto e corajoso, não tem medo de parecer ridículo. Vai de um extremo emocional ao outro em questão de segundos. Numa determinada cena está com os cabelos e barba longos, preso, insano, e dá um sorriso que é ao mesmo tempo engraçadíssimo e terrivelmente sinistro. (...) Merecem destaque também as sequências de ação. Sem firulas, são extremamente cruas. A melhor delas evoca os jogos com "side scroll" do Nintendo. Nela, Dae Su esmurra vinte capangas com um martelo em um plano-sequência lateral. Bem-humorada e um tanto tosca até, a cena não tem a beleza plástica de um ‘Kill Bill’, mas entra para a história como uma das mais legais já realizadas”.
Vinicius Costa do site Coletivo Crítico avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “Vinte anos após seu lançamento, o filme sul-coreano ‘Oldboy’, dirigido por Park Chan-Wook (...) retorna aos cinemas em versão restaurada e remasterizada. Sempre comentamos que, para chegar ao status de clássico, uma obra precisa passar pelo crivo do tempo. Isso não quer dizer que apenas os mais antigos possam receber essa alcunha, todavia, é preciso um ‘descanso’, talvez um olhar já mais distanciado para, então, estabelecer ou não sua grandeza. Nesse caso, ‘Oldboy’ é um clássico do século XXI. Revisitar a obra-prima de Park é a reafirmação de sua capacidade como cineasta e a coesão estilística de sua filmografia”.
O que eu achei: Foi uma grata surpresa assistir "Old Boy" do diretor sul-coreano Park Chan-Wook. Recém-restaurado em 4K o filme é considerado um clássico. Teve até uma refilmagem feita pelo Spike Lee em 2013, mas ela é simplesmente um desastre. Apesar da competência do diretor o longa resultou 'um dos mais malsucedidos remakes de Hollywood'. "Old Boy", o original, é de 2003. Trata-se da adaptação de um mangá de Garon Tsuchiya e Nobuaki Minegishi que conta a história de um homem chamado Dae-Su que, por vingança, é raptado e colocado em cativeiro por 15 anos sem saber o porquê. Enquanto ele está preso, sua esposa morre e suas impressões digitais são colhidas para atribuir a ele a culpa pelo assassinato. Sua filha fica ao Deus dará, sem pai e sem mãe, achando que foi seu próprio pai que a matou. Ocorre que um belo dia, ele é libertado. Sem nenhum tipo de explicação ele terá que descobrir da pior maneira quem foi que fez aquilo com ele e por quê. O filme começa mal, com uma série de sequências sem explicação, que vai dando a entender que será um filme tão confuso quanto "Decisão de Partir" (2022) do mesmo diretor, só que não. Felizmente lá pela metade ele sofre uma reviravolta na qual todas as peças se encaixam e, assim como Dae-Su, nós espectadores vamos tomando ciência do que de fato ocorreu, demonstrando porque o filme resistiu ao teste do tempo e é tão cultuado. Há cenas de luta e violência que os mais sensíveis deverão evitar, mas tudo compensa pela excelente fotografia, pela atuação tremenda e completa do ator Choi Min-sik e pela história em si, cujo final supera em muito o próprio mangá de origem. Visceral define.

20.7.25

“O Brutalista” - Brady Corbert (EUA/Reino Unido/Canadá, 2024)

Sinopse:
 
1947. O arquiteto húngaro László Toth (Adrien Brody) e sua esposa Erzsébet (Felicity Jones) fogem da Europa devastada pela guerra em busca de um novo começo na América. Lá eles se deparam com uma oportunidade de ouro: o industrial Harrison Van Buren (Guy Pearce) oferece a László a oportunidade de projetar um grandioso monumento. Este projeto representa o auge da carreira de László, prometendo levar ele e Erzsébet a novos patamares de sucesso e reconhecimento. No entanto, o caminho para a realização de seus sonhos é repleto de desafios e reveses inesperados, que os levarão a enfrentar tanto triunfos quanto tragédias ao longo de quase três décadas.
Comentário: Brady Corbert (1988) é um ator e cineasta americano. Como ator ele trabalhou em diversos longas e seriados como “Thirteen” (2003), “Mistérios da Carne” (2004), “Violência Gratuita” (2007), “Martha Marcy May Marlene” (2011), “Melancolia” (2011) e “Acima das Nuvens” (2014). Como diretor seu primeiro longa foi “A Infância de Um Líder”, seguido de “Vox Lux: O Preço da Fama” (2018) e “O Brutalista” (2024), o primeiro filme que vejo dele.
Alicia Hernández do site BBC nos conta tratar-se de uma “produção independente que teve 10 indicações ao Oscar e venceu três - Melhor Ator (Adrien Brody), Melhor Fotografia e Melhor Trilha Sonora – (...) revisitando um estilo arquitetônico do século 20 (...).
No filme de Brady Corbet, Adrien Brody - que levou o Oscar por sua atuação - interpreta um arquiteto judeu húngaro que migra para os Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. [Ele faz] parte do movimento arquitetônico conhecido como brutalismo, e é contratado para construir um enorme centro cultural de concreto para um magnata interpretado por Guy Pearce.
O brutalismo era formado por arquitetos jovens e ambiciosos que desafiavam as convenções da época e desafiavam o movimento anterior: o modernismo do período entreguerras. ‘Vem da expressão francesa 'béton brut', que significa 'concreto bruto', 'concreto aparente’, diz Fernando Martínez Nespral, diretor do Instituto de Arte e Pesquisa Estética Americana da Universidade de Buenos Aires. ‘Embora venha do francês, foram os ingleses que o nomearam assim e, embora as pessoas pensem que vem do fato de os edifícios terem volumes muito grandes, eles o associam ao brutal, mas é simplesmente porque o que você vê é concreto natural, aparente’.
O termo ‘brutalista’ foi cunhado e popularizado por Reyner Banham, um crítico de arquitetura inglês da influente revista The Architectural Review. Nascido na Alemanha, com nome inspirado no francês e batizado na Inglaterra, o movimento marcou profundamente a arquitetura brasileira entre anos 1950 e 1970 - e os edifícios brutalistas desse período até hoje despertam fortes reações nos frequentadores. Mas o que exatamente é o brutalismo e quais os edifícios que o representam?
Para começar, e impossível falar de brutalismo sem falar em Le Corbusier. Este arquiteto e teórico da arquitetura de nacionalidade sueca e francesa criou o projeto Unité d'Habitation, um conjunto de edifícios residenciais feitos de concreto natural. O primeiro foi feito entre 1945 e 1952 e se tornou uma inspiração para o estilo e o pensamento dos brutalistas. ‘É um movimento arquitetônico que surgiu depois da guerra, digamos no final dos anos 50. A partir desse momento, ocorreu o que chamamos de crise do movimento moderno, que nasceu depois da Primeira Guerra Mundial com a ideia de que, como havia um mundo novo, seria um mundo melhor, mais justo, mais pacífico’, diz Fernando Martínez Nespral. Mas com a Segunda Guerra Mundial, ainda mais sangrenta que a primeira, e a subsequente Guerra Fria entre EUA e União Soviética, as rápidas mudanças pelas quais o mundo passou influenciaram a arte e o design. (...)
Os arquitetos já conheciam as vantagens do concreto armado - como seu preço e durabilidade - mas até aquele momento ele era usado apenas como estrutura. ‘No processo de exploração de todas as possibilidades arquitetônicas, propõe-se que ela possa ser usada não apenas como uma estrutura escondida, mas como algo estético’, diz Martínez Nespral. O material tornou-se popular devido à necessidade de criar estruturas funcionais e baratas, especialmente na Europa, que havia sido devastada pelos estragos da guerra. Porém, apesar do menor custo do material e de sua simplicidade, a arquitetura brutalista mostra textura, ritmo e movimento, já que o próprio concreto permite a criação de qualquer forma que se queira, quase sem limites".
No Brasil, a arquitetura do meio do século 20 foi especialmente influenciada pelo estilo. Dentre as diversas construções que temos por aqui, vale citar duas muito famosas: o SESC Pompéia, em São Paulo e a Catedral de São Sebastião, no Rio de Janeiro. Mas há exemplos de brutalismo em toda a América Latina, do México à Argentina”, como a Biblioteca Nacional Mariano Moreno, em Buenos Aires (Argentina), o Banco Central da Guatemala, na Cidade da Guatemala (República da Guatemala), o Edifício da Cepal, Santiago (Chile), a Biblioteca da Universidade Nacional Autônoma do México, Cidade do México (México), o Museu Rufino Tamayo, na Cidade do México (México), o Teatro Teresa Carreño, em Caracas (Venezuela) e a Embaixada da Rússia, em Havana (Cuba).
Outra informação importante é que, segundo a Folha SP, o arquiteto que o filme retrata - László Tóth – nunca existiu. Segundo o diretor ele é “uma ‘amálgama’ de vários arquitetos famosos, especialmente Marcel Breuer. Assim como o fictício Tóth, Breuer nasceu na Hungria, formou-se na influente Bauhaus, na Alemanha entre guerras, e emigrou para os EUA. Ambos projetaram seus modelos distintivos de cadeiras antes de planejar grandes edifícios. Judeus, ambos foram contratados para erguer gigantescas construções cristãs em partes remotas dos EUA que se tornariam suas obras-primas. Corbet afirmou que um livro sobre o trabalho de Breuer na Abadia de São João, na região rural de Minnesota, foi uma inspiração chave. Breuer também é conhecido por ter projetado partes da sede da UNESCO em Paris; o Museu Whitney de Arte Americana, em Nova York; e o Edifício Pirelli Tire, em Connecticut”.
O que disse a crítica: Lucas Oliveira do site Cinematório avaliou com 2,5 estrelas, ou seja, regular. Disse: “Voltando à origem, ao título do filme e àquilo que deveria ser seu cerne, o estilo brutalista ressalta a aspereza e a rigidez do concreto, dizendo também sobre um tempo histórico duro e pesado, tanto em termos econômicos quanto sociais. Compreender o Brutalismo é, assim como acontece com quaisquer outras manifestações culturais, entender uma parte importante da história da humanidade. Infelizmente, porém, o filme de Brady Corbet, embora parta de uma premissa que ressoa fortemente nos tempos atuais, parece perdido, anacrônico e genérico em sua crônica temporal. O concreto, abundante nas obras do protagonista, é escasso na fundação do filme, um dos mais fracos da temporada de premiações de 2025. ‘O Brutalista’ é, no fim das contas, um épico feito de papel”.
Aline Pereira do site Adoro Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: “Um ponto que pode ser (...) incômodo é a exploração melodramática do sofrimento do protagonista. Esteja pronto para testemunhar um sem-fim de tragédias: tudo de ruim que poderia acontecer a alguém acontece com László. Senti o coração apertado de angústia por ele porque, apesar dos exageros, a história se esforça para tornar o clima bastante realista. Alguns dos acontecimentos, portanto, deixam uma profunda sensação melancólica – para a qual não só Adrien Brody parece o ator ideal, como faz Felicity Jones surpreender ao encarnar uma personagem carregada de enigmas, mas que tem menos tempo para ser explorada tão profundamente”.
O que eu achei: Brady Corbert é um diretor que eu não conhecia. Minha expectativa com esse filme era grande pois Adrien Brody é um grande ator e o longa teve 10 indicações ao Oscar, então achei que valeria a pena encarar as 3h35m de duração. Na trama o que vamos ver é a saga épica do arquiteto brutalista judeu László Toth, um personagem que nunca existiu mas que, segundo o diretor, representa um mix de diversos arquitetos reais, em especial um húngaro chamado Marcel Breuer. As 3h35m são dividas em duas metades: na primeira metade temos uma pequena introdução e a parte 1 denominada "O Enigma da Chegada" (1947-1952) que mostra a chegada de Toth na América indo ao encontro de seu primo que possui uma loja de móveis, desenvolvendo um novo estilo de mobiliário e conhecendo um ricaço que o contrata para construir um centro cultural, enquanto na parte 2 denominada "O Núcleo Duro da Beleza" (1953-1960) acompanhamos a chegada de sua esposa e sobrinha nos EUA e os altos e baixos que ocorrem durante a construção desse centro. Apesar do filme ter qualidades como a já esperada excelência do ator Adrien Brody – que ganhou merecidamente o Oscar pela sua atuação – e as também premiadas fotografia e trilha sonora, o longa é bastante irregular. Enquanto a primeira parte flui de forma perfeita, a segunda está cheia de problemas como o roteiro pouco convincente e bastante desequilibrado, as cenas de sexo mecânicas e mal desenvolvidas, a repetição de informações desnecessárias que já estavam postas na primeira parte e um epílogo didático bastante ambíguo com relação ao que era proposto. Um filme que parecia se erguer no sentido de explorar o tal 'sonho americano' com os EUA como a 'terra das oportunidades', demonstrando a rejeição aos imigrantes com este sonho virando um pesadelo, mas que desmorona antes de finalizar. Tem qualidades, mas está longe de ser a obra irretocável que as 10 indicações ao Oscar sugeriam.

19.7.25

"Filhos de João: O Admirável Mundo Novo Baiano" - Henrique Dantas (Brasil, 2009)

Sinopse:
Este documentário mostra como os Novos Baianos rapidamente cativaram o Brasil nos anos 1960 e 1970, mudando o cenário musical sob a influência de João Gilberto.
Comentário: Estefani Medeiros do site UOL Entretenimento nos conta que "Quem vê 'Filhos de João: O Admirável Mundo dos Novos Baianos' (...) não imagina que o projeto demorou 12 anos para sair do papel. 'Sempre fui fã do Novos Baianos. Cresci ouvindo os discos deles. A ideia surgiu como um trabalho de faculdade e depois foi crescendo. Na década de 90 consegui uma verba pra tirar o projeto do papel e finalmente ele está sendo lançado', conta Henrique Dantas, diretor do filme, em entrevista ao UOL.
O documentário faz recortes da vida dos Baianos entre 69 e 79, período em que a banda lançou seus oito principais álbuns e foi protagonista de um documentário alemão. 'Quando fomos para São Paulo, participar do programa da TV Record que tomamos consciência da nossa importância na vida brasileira. A Baby era considerada uma Janis Joplin. Gil e Caetano estavam fora do país por causa da ditadura. Desde esse dia até o depoimento do Tom Zé (que faz parte do filme hoje), tivemos noção do nosso lugar na música brasileira', contou o ex-integrante do grupo Paulinho Boca de Cantor.
Dentre os vários depoimentos do filme, que incluem os ex-integrantes Moraes Moreira, Pepeu Gomes e o colega próximo da banda Tom Zé, é notável a falta de Baby Consuelo, única mulher do grupo. 'Quando ele [Henrique Dantas] me convidou para fazer a entrevista, era um trabalho de faculdade. Alguns anos depois ele estava sendo exibido em um festival de Brasília já com vários apoios culturais financeiros. Ele não quis fazer o contrato comigo e depois apareceu na mídia como se eu tivesse vetado. O trabalho é bacana, mas ainda precisa acertar contas com a Baby do Brasil Produções', diz Baby. 'Não quero embargar o filme, mesmo que eu possa. A gente tem aí um filme sobre os Novos Baianos e ele quer pagar uma cocada e uma mariola pra cada um. Quando morrermos, os direitos não vão ser dos nossos filhos, e sim dos filhos do diretor. Dei uma entrevista pra faculdade que virou filme', finaliza.  
'Eu achei maravilhoso. A ideia do Henrique foi muito feliz. Ele descobriu uma forma de perpetuar o trabalho dos Novos Baianos. O que deixamos para a música foi o legado comportamental, social. O registro é muito legal', diz Pepeu Gomes.
Já para Paulinho Boca de Cantor: 'o filme não é detalhadamente sobre a história dos Novos Baianos. O mérito dele são as outras pessoas falando sobre os Novos Baianos. O depoimento do Tom Zé, por exemplo, é muito divertido. São pessoas que perceberam a posição dos Baianos na MPB', comenta. 'Mas o Novos Baianos nem nunca começou, nem nunca acabou. Preferia um fim assim do que a ênfase ao término do grupo com o depoimento do Moraes Moreira no desfecho'.
'A gente tem uma história maravilhosa pra ser contada', diz Baby. 'Mas ele fez uma coletânea dos Novos Baianos. O conteúdo dele é dos outros. Os trechos usados no filme são de outros diretores'.
Seria possível uma reunião dos Novos Baianos em uma versão 2011? Pepeu Gomes acredita que não. 'Acho difícil. Mas para Deus nada é impossível', diz o guitarrista. 'Todos têm suas carreiras. Estou programado até a Copa do Mundo. Na última vez, quando gravamos o álbum duplo em 97, tivemos que parar um ano. Prefiro entregar nas mãos de Deus'.
Entre rixas de bastidores e a boa recepção do documentário nos festivais de cinema, é inegável que o filme traz à tona a história do grupo relembrando o importante papel que os Baianos tiveram na MPB e o legado que deixaram. E é assim que Paulinho conclui. 'Essa juventude é muito carente de ideologia, de pensamentos que retratem nossa história recente. Esses dias fiquei sabendo de uma conversa entre mãe e filho em que o garotinho reclamava que era muito complicado tirar as músicas dos Novos Baianos e disse: 'acho que pra tocar essa música dos Baianos tem que fumar muita maconha'.
O que disse a crítica: Miguel Barbieri Jr. da Revista Veja gostou. Escreveu: "O documentário joga luz na formação, no fim de década de 60, do grupo Novos Baianos. Entre os integrantes estavam Baby Consuelo, Paulinho Boca de Cantor e Moraes Moreira. João Gilberto serviu de influência para a banda baiana descobrir a MPB e gravar 'Acabou Chorare' (1972), o mais emblemático disco da turma". 
Myrna Silveira Brandão do Jornal do Brasil avaliou como ótimo. Disse: "Além de um importante resgate cultural, 'Filhos de João', o admirável mundo novo baiano é, acima de tudo, o retrato de uma geração. A lamentar apenas a ausência de depoimentos de Baby Consuelo (que, posteriormente, nos anos 90, adotou o nome de Baby do Brasil), a representante feminina do grupo. De forma sutil, nos créditos finais, o letreiro avisa que ela não autorizou o uso de suas imagens no filme".
O que eu achei: Quem for fã dos Novos Baianos - composto por Moraes Moreira (compositor, vocal e violão), Baby do Brasil (vocal), Pepeu Gomes (guitarra), Paulinho Boca de Cantor (vocal), Dadi (baixo), Luiz Galvão (letras) e agregados - vai gostar desse documentário. Ele mostra a influência do músico João Gilberto sobre a banda contando com pormenores a visita que ele fez ao apartamento que os ainda roqueiros baianos dividiam no Rio de Janeiro apresentando a eles o samba de compositores como Assis Valente. Foi a partir desse encontro que mudou a sonoridade do grupo que incluiu nas suas composições instrumentos como pandeiro e cavaquinho, transformando Gilberto numa espécie de padrinho do grupo. O longa também mostra, em imagens raras de arquivo, a vivência comunitária dos integrantes em um sítio em Jacarepaguá (RJ) no início dos anos 1970, onde jogar bola era um ato sagrado. Com comentários de Tom Zé, só ficou faltando mesmo o depoimento de Baby do Brasil que não aceitou o cachê e quase inviabilizou essa bela homenagem.