8.12.25

“Vá e Veja” - Elem Klimov (URSS, 1985)

Sinopse:
 Bielorrússia, 1943. O jovem camponês Flyora Gaishun (Alexéy Krávchenko) é cooptado por um despreparado grupo de guerrilheiros antinazistas. Em confronto com os alemães, o garoto é deixado para trás e decide retornar ao seu vilarejo. Chegando lá depara-se com o desolador cenário de um massacre. Perturbado, ele passa a vagar sem rumo, presenciando cenas cada vez mais fortes.
Comentário: Elem Klimov (1933-2003) foi um cineasta russo. Ele nasceu em Stalingrado em 1933, em uma família de comunistas convictos. Seu nome Elem é uma referência à tríade Engels, Lênin e Marx. Foi casado com a talentosa cineasta Larisa Sheptiko, ucraniana de nascimento, morta em 1979. Dentre suas produções estão os documentários "Sport, Sport, Sport" (1970) e "And I Still Believe" (1974) feito com mais dois diretores; o curta metragem "Larisa" (1980) e os longas "Welcome, or No Trespassing" (1964), "The Adventures of a Dentist" (1965), "Agony" (1975), "Farewell" (1981) e “Vá e Veja” (1985), que é o primeiro filme que vejo do diretor.
No longa acompanhamos o pré-adolescente Flyora (Alexei Kravchenko). Ele mora com a mãe e as irmãs na Bielorrússia e tem o desejo de se juntar aos partisans – membros de grupos irregulares de resistência que lutam contra uma força de ocupação estrangeira – para lutar contra os alemães. Estamos em 1943 em plena II Guerra Mundial. Flyora até consegue se juntar ao grupo, mas logo de cara acaba abandonado por eles em plena floresta, então ele resolve voltar para casa.
Conta-se que Klimov inspirou-se na sua própria infância para o filme. "Quando era pequeno, eu tinha vivido um inferno", explicou. Ele, a mãe e o irmão mais novo foram evacuados numa jangada através do rio Volga durante a batalha de Stalingrado. "A cidade estava em chamas até o céu. O rio também ardia. Era noite, bombas explodiam e as mães cobriam os filhos com qualquer roupa de cama que tivessem e depois deitavam-se em cima deles. Se eu tivesse incluído tudo o que sabia e mostrado toda a verdade, nem eu teria conseguido assistir".
João Lanari Bo do site Vertentes do Cinema nos conta que "O título é inspirado na Bíblia, Apocalipse 6:1-4: 'E, havendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia; e foi-lhes dado poder para matar a quarta parte da terra, com espada, e com fome, e com peste, e com as feras da terra'.
(...) A guerra, da forma como é experimentada pelo adolescente Flyora nos confins da Belarus, é a violência no limite, indescritível – durante três anos de ocupação pelos nazistas, cerca de 1 milhão e 600 mil pessoas morreram, mais de 9 mil assentamentos foram destruídos, 628 aldeias tiveram a população aniquilada – inclusive o vilarejo natal de Ales Adamovich [corroterista do filme]. Em 1940, a população do país alcançava 9 milhões de habitantes: em 1951, 7,7 milhões.
Klimov teve de esperar oito anos para obter aprovação do roteiro – nesse meio tempo, a ex-União Soviética passou da estagnação de Brejnev à vertigem de Gorbachev, que chegou ao poder em 1985. 'Vá e Veja' foi produzido nesse momento de ruptura – e também para comemorar o 40º aniversário da vitória soviética na Grande Guerra Patriótica, como os russos nomeiam a 2ª Guerra.
No Festival de Cinema de Moscou de 1985 recebeu o principal prêmio: mais do que comemorar, entretanto, sua premiação sinalizou o início da glasnot (literalmente 'transparência') na vida política no país dos soviets, ao lado da perestroika ('reestruturação') – e o mundo socialista virou de cabeça para baixo.
No plano cinematográfico, o filme subverte expectativas conservadoras: as crianças não respeitam os mais velhos, a mãe de Flyora fica histérica em sua partida, e partisans pilham os aldeões. Essas transgressões não aconteciam nos filmes de guerra na ex-URSS. No tempo de Stálin, o culto à personalidade deu uma aparência kitsch às narrativas do conflito, onde o líder aparecia como entidade mediúnica a decidir sobre os destinos do povo soviético: depois de sua morte em 1953, com as revelações de Nikita Khrushchov sobre os crimes do regime no 20º Congresso do Partido, em 1956, a ênfase voltou-se para dramas e sofrimentos particulares, inclusive da população civil; com a ascensão de Brejnev em 1964, a Guerra Patriótica enquanto sucesso militar voltou ao primeiro plano, desta feita sem a mediunidade stalinista, mas como plataforma ideológica de união nacional.
O crítico Jim Hoberman sugere que o filme de Klimov revitalizou o mais sagrado dos gêneros soviéticos, o cinema de guerra – e na sequência produziu algo que poderia ser prontamente entendido como aviso contra o apocalipse nuclear que se anunciava com o fim da Guerra Fria. Aviso que pode ser lido nos closes de Flyora, signos de erosão de seu olhar inocente causada pela devastação do entorno, infestada de nazistas bêbados e sádicos. Bombas caem não se sabe de onde: Flyora, de 12 anos, envelhece a olhos vistos, mas junta-se à resistência e sobrevive.
Elem Klimov, que logo depois, em 1986, foi escolhido por seus colegas para ser o líder do Sindicato dos Cineastas, destronando velhos caciques do cinema soviético – nunca mais voltaria a dirigir filmes: 'Vá e Veja' foi o último".
O que disse a crítica 1: João Lanari Bo do site Vertentes do Cinema avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Disse: "'Vá e Veja', o longa que Elem Klimov dirigiu em 1985, é um desses filmes que o passar do tempo só aumenta seu status artístico, mesmo em cima de uma tradição saturada dos mais variados experimentos, como são os filmes de guerra – em particular, a Segunda Guerra Mundial. A brutalidade das situações que descreve, tomadas de fatos reais narrados no livro 'Eu Sou da Vila do Fogo' – escrito, entre outros, pelo corroteirista Ales Adamovich – é extrema, visceral".
O que disse a crítica 2: Lucas Oliveira do site Cinematório também avaliou com 5 estrelas. Escreveu: "Devo confessar que, a partir do terço final do filme, eu já estava em estado completo de catatonia, com os olhos e a boca paralisados, totalmente incapaz de virar o rosto, muito embora o filme apresente uma sequência com potencial de fazer qualquer um desviar os olhos. Aí está um dos tantos fascínios que 'Vá e Veja' me desperta. Este é o tipo de filme que mantém, ao mesmo tempo, um magnetismo e uma repulsa sobre o olhar do espectador. (...) Entretanto, por mais que para analisar seja necessário decompor o filme, pessoalmente acredito ‒ aqui amparado por considerações do crítico francês Marcel Martin ‒ que obras como esta de Klimov guardam algo quase místico que, para além da forma e do conteúdo, sustenta a alma do filme (ou a magia, ou o ser). Algo que eu nunca sei exatamente o que é, mas sei o poder que exerce sobre mim".
O que eu achei: “Vá e Veja” (1985) de Elem Klimov não é apenas um filme sobre a guerra, é uma experiência cinematográfica limite, dessas que deslocam o espectador de maneira quase física. Obra-prima incontestável, o longa desmonta qualquer romantização do conflito ao acompanhar a trajetória de Flyora, um adolescente moldado e psicologicamente destruído pela ocupação nazista em Belarus durante a Segunda Guerra Mundial. O que Klimov constrói é um mergulho perturbador na desumanização provocada pela barbárie, guiado por uma câmera que parece respirar junto com o protagonista, registrando cada etapa de sua perda de inocência com brutal honestidade. O filme foi concebido em um contexto de profunda comoção histórica e pessoal. Baseado em relatos e eventos reais ocorridos em vilarejos da Bielorrússia, devastados por tropas nazistas e grupos colaboracionistas, “Vá e Veja” carrega o peso de uma memória coletiva frequentemente silenciada ou minimizada. Klimov levou anos para conseguir autorização para realizá-lo, enfrentando censura e resistência das autoridades soviéticas, que temiam o impacto psicológico e político da obra. Quando finalmente foi produzido, em meados da década de 1980, já no início da abertura promovida por Mikhail Gorbachev, o filme surgiu como um grito tardio, mas devastador, contra o esquecimento e a simplificação histórica da guerra. Elem Klimov, que já havia demonstrado grande sensibilidade em filmes anteriores, como "Agonia" (sobre Rasputin), atinge aqui seu auge criativo. Curiosamente, “Vá e Veja” seria seu último longa-metragem, quase como um testamento artístico. Cada escolha estética contribui para a experiência traumática: os enquadramentos fechados, o uso quase constante de sons abafados e distorcidos, a progressiva transformação física do jovem ator Alexéy Krávchenko — que parece envelhecer dezenas de anos ao longo da narrativa — e a recusa em oferecer qualquer alívio ou heroísmo clássico. É um cinema de confronto, que obriga quem assiste a encarar o horror sem filtros. Mais do que uma narrativa de guerra, “Vá e Veja” é uma meditação sombria sobre a natureza humana, sobre a fragilidade da infância e sobre a violência como força corrosiva e irreversível. A experiência é dolorosa, mas absolutamente necessária. Poucos filmes conseguem atingir esse grau de impacto e verdade. E é justamente por não fazer concessões - nem ao espectador, nem à história - que ele se consolida como uma das maiores realizações cinematográficas. Filme obrigatório, não morra sem ver.

7.12.25

“Vermiglio: A Noiva da Montanha” - Maura Delpero (Itália/França/Bélgica, 2024)

Sinopse:
Durante a Segunda Guerra Mundial, a vida de uma família no vilarejo de Vermiglio, nos Alpes Italianos, muda completamente com a chegada de um soldado desertor chamado Pietro (Giuseppe De Domenico). Ele se apaixona pela filha mais velha (Martina Scrinzi) do professor local (Tommaso Ragno) e isso mudará a vida de todos.
Comentário: Maura Delpero (1975) é uma cineasta italiana. São dela os documentários "Signori Professori” (2008) e “Nadea e Sveta” (2012) e o longa de ficção “Maternal” (2019). “Vermiglio - A Noiva da Montanha” (2025) é o primeiro filme que vejo dela.
Beatriz Izumino do Estadão nos conta que "Em dois momentos de 'Vermiglio - A Noiva da Montanha', três irmãs compartilham uma mesma cama, uma pequena bolha de intimidade prestes a se romper. Quando Lucia, papel de Martina Scrinzi, se casar, ela trocará o leito das crianças pelo de adulta, com o marido.
É o inverno de 1944, e não fossem os ocasionais aviões rasgando o ar entre as montanhas Dolomitas, onde a Itália e a Áustria se confundem, a Segunda Guerra Mundial seria sentida somente pelas ausências que provoca. Numa vila sem jovens - foram todos para o front - Lucia, a filha mais velha da família Graziadei, age rapidamente, mas sem malícia, para conquistar a afeição de Pietro, interpretado por Giuseppe de Domenico, soldado siciliano desertor que chega a Vermiglio carregando o primo dela, Attilio, personagem de Santiago Fondevila Sancet, nos ombros.
Apesar dos arroubos de ousadia, Lucia não é mulher de grandes ambições. Mudar-se para o quarto ao lado com Pietro e começar uma família bastam para substituir sua expressão tímida por um sorriso constante. 'Lucia não é garota da cidade', diz seu pai, Cesare, vivido por Tommaso Ragno, 'ela precisa do céu'. Flavia a mais nova, curiosa e observadora, é escolhida pelo pai, professor, para continuar os estudos em Trento. Entre as duas, Ada, incapaz de se destacar apesar de todos os seus esforços, se dedica com igual fervor à devoção religiosa - diz não querer engravidar para não ter que ficar sem ir à igreja - e aos pequenos pecados ao seu dispor.
Maura Delpero, diretora e roteirista, conta ter encontrado inspiração para o filme em um sonho, em que seu pai, já morto, ia a Vermiglio e lhe trazia a história debaixo do braço. Para escrever o roteiro, Delpero diz ter passado meses na casa da avó no mesmo vilarejo, inventando e recriando as circunstâncias da infância do pai. O resultado é um filme bem vivido - pode-se imaginar trajetórias semelhantes nos diferentes povoados, famílias transformadas pela guerra sem nunca ter visto uma bomba - e tátil, cada canto da tela contando séculos de história.
(...) O elenco é quase todo totalmente inexperiente, à exceção de Ragno, De Domenico e Roberta Rovelli, que interpreta a matriarca da família. Scrinzi e principalmente Potrich, descoberta em uma escola rural, se destacam como duas jovens tomando o controle que podem sobre suas vidas ante as limitações socialmente impostas.
Talvez pela afinidade de Delpero por histórias femininas - seus dois longas anteriores, o documentário 'Nadea e Sveta' e o ficcional 'Maternal', têm protagonistas mulheres e a maternidade como foco -, Pietro é opaco a ponto não ter personalidade. É certo que o siciliano fala um dialeto diferente do restante da vila, mas nem o casamento revela nada sobre ele à audiência ou à esposa. Ao chegar ao final do filme, após um ano de história, só há uma nova informação, determinante e indiscretamente telegrafada, mas não menos trágica.
Premiado com o Leão de Prata do Festival de Veneza em 2024 por júri presidido por Isabelle Huppert e com Kleber Mendonça Filho, 'Vermiglio - A Noiva da Montanha' foi indicado ao Globo de Ouro de Melhor Filme Estrangeiro e escolhido para representar a Itália no Oscar. Também fez parte da programação da 48ª Mostra de Cinema de São Paulo.
O longa também conta entre seus fãs com a diretora neozelandesa Jane Campion, que publicou carta de apoio a sua campanha em janeiro passado. 'Este filme enfeitiçou-me', escreveu a autora de 'O Piano' e 'O Brilho de uma Paixão'. 'Vermiglio' é um presente'."
O que disse a crítica 1: Mattheus Goto da Revista Veja avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: "É um belo retrato de costumes, que não surpreende, mas entrega boa verossimilhança, com figurinos de época e a emoção do romance".
O que disse a crítica 2: Bruno Carmelo do site Meio Amargo avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Disse: "Delpero foge às armadilhas do final feliz e do ensinamento por meio da tragédia, preferindo levantar questionamentos a respondê-los. Tudo e nada se resolve na vida destas mulheres - não há espaço nem para alívio, nem para o pesar. Qualquer emotividade resta presa na garganta, e aí reside o verdadeiro retrato da violência de gênero nesta Itália longínqua, que certamente dialoga com o país no século XXI. As redenções e reconstruções individuais permanecem no plano de um horizonte distante, graças à preocupação da autora em se ater a um realismo palpável (ao invés de uma idealização ou uma solução mágica dos conflitos). Deste modo, o posicionamento crítico reside na proposta de reflexão, ao invés de uma purificação via sentimentos e emoções. 'Vermiglio' cresce na recusa ao melodrama, e se fortalece na condução austera de seu posicionamento narrativo e ideológico, da primeira à última cena. Um filme de maestria ímpar na direção, além de impecável coesão e coerência".
O que eu achei: Esqueça as famílias desbocadas e barulhentas do sul da Itália pois este filme se passa em Vermiglio, uma vila alpina situada no Alto Trentino, norte da Itália, onde a neve é paisagem constante, as pessoas são calmas, introvertidas e a religião faz tudo parecer pecado. É nesse ambiente que se desenrola a história da noiva da montanha: Lucia, a filha mais velha da família Graziadei, que se apaixona por Pietro, um soldado desertor que chega à vila carregando seu primo Attilio nos ombros. A Segunda Guerra Mundial ainda não acabou, mas eles resolvem abandonar o front. A partir desse encontro aparentemente simples, Maura Delpero constrói um drama silencioso e profundamente humano, que observa com delicadeza as escolhas, os desejos contidos e as pressões morais que recaem, sobretudo, sobre as mulheres daquele lugar. Nem é preciso saber que o longa é dirigido por uma mulher para perceber a feminilidade e a sensibilidade que atravessam cada cena. Há um cuidado quase táctil no modo como a diretora acompanha Lucia, suas inquietações, seus silêncios e as pequenas rupturas diante das expectativas impostas pela família e pela religião. A fotografia é simplesmente maravilhosa: a paisagem gelada das montanhas, a rusticidade das casas e a luz suave dos interiores criam quadros de rara beleza, que por si só já justificariam a experiência. Cada plano parece composto para reforçar o contraste entre a grandiosidade da natureza e a pequenez dos dilemas humanos. O único problema do filme é que ele se arrasta um pouco mais do que deveria em alguns momentos. Os longos silêncios, que em muitos trechos são potentes e expressivos, às vezes passam do ponto, assim como os muitos sussurros que acabam suavizando demais certas tensões dramáticas. Não fosse isso, "Vermiglio: A Noiva da Montanha" seria perfeito. De qualquer forma é um encanto de filme: triste, contido, profundamente bonito e tocante, um filme sobre palavras não ditas e sobre verdades encobertas.

6.12.25

"David Crosby: Esse É Meu Nome" - A. J. Eaton (EUA, 2019)

Sinopse:
Com honestidade, autoanálise, arrependimento, medo, exuberância e uma crença inabalável na família e na natureza transformadora da música, o cantor e compositor David Crosby compartilha sua jornada de vida.
Comentário: Ella Taylor do site NPR nos conta que "Se piscar, você pode perder um trecho precioso de uma reportagem (...) sobre o roqueiro David Crosby, das bandas The Byrds dos anos 60 e das intermináveis ​​e autodestrutivas combinações de Crosby, Stills, Nash & Young. Saindo da prisão por porte de arma e abuso de drogas em meados dos anos 80, Crosby - sem seu característico bigode de morsa, gorro de tricô e carisma arrogante - poderia facilmente ser confundido com um balconista de baixo escalão, de camisa social e calça discreta, com um cinto marcando uma barriga saliente. Acenando alegremente para a imprensa, Crosby lhes dá uma declaração sobre estar pronto para seguir em frente com sua música e uma vida mais saudável.
'David Crosby: Esse É Meu Nome' mostra principalmente Crosby contando como sua reabilitação não foi um processo linear. Mas o deslize no figurino que vemos naquele trecho é engraçado, chocante e revelador, e não apenas por expor que, no caso de estrelas pop, o guarda-roupa define o homem. Naquele momento, sem o apoio de seu estilo hippie, Crosby regride à criança desajeitada e ignorada que ele sempre tentou superar.
Como costuma acontecer (veja, entre muitos outros, 'Rocketman'), um pai distante e inflexível paira sobre a luta constante do músico contra a raiva e a dor. Floyd Crosby era um premiado diretor de fotografia que filmou 'Matar ou Morrer', mas, como seu filho nos conta sem qualquer sinal de autopiedade, ele nunca disse aos seus dois filhos que os amava. Felizmente, havia uma mãe amorosa e apaixonada por música para compensar essa ausência. O resto se transformou em uma raiva descontrolada que quase matou Crosby, feriu inúmeros amigos e familiares, mas raramente encontrou espaço na atmosfera extasiante e contracultural de suas bandas.
Nesse sentido, o filme segue de perto o arco familiar dos documentários de rock, desde a infância conturbada, passando pela fama e fortuna precoces, até o mergulho nas drogas, bebidas e sexo, e finalmente evoluindo para uma vida melhor através do amor de uma boa mulher, neste caso, Jan, esposa de Crosby por muitos anos. A diferença é que, para Crosby, a redenção está sempre pendente. Acometido por doenças graves que frequentemente acompanham uma vida desregrada, Crosby sabe que provavelmente morrerá em breve com muitas pontas soltas e dívidas emocionais por pagar. Esse é o fio condutor principal de um filme que minimiza a participação de outros entrevistados e permite ou força Crosby a falar. Seja qual for o caso - seu interlocutor fora das telas é o jornalista de rock e diretor de cinema Cameron Crowe, que começou a escrever sobre Crosby quando ele tinha dezesseis anos e agora se considera um amigo - o músico não precisa de muito incentivo para se libertar do medo, da culpa e do arrependimento por todos os anos mal vividos.
Apaixonado, irônico, muitas vezes belicoso, mas sempre um contador de histórias sincero e conciso, o agora barbudo Crosby parece estar escrevendo seu próprio obituário autodepreciativo. Ele anseia pelo perdão das inúmeras mulheres que magoou e deseja - com mais ambivalência - reconciliar-se com seus antigos companheiros de banda, nenhum dos quais fala com ele até hoje. O filme nos leva à recente turnê de Crosby com uma banda de jovens músicos (um dos quais é Marcus, irmão do diretor A. J.  Eaton) para apresentar suas novas composições mais experimentais, um esforço para compensar décadas de tempo criativo desperdiçado. Enquanto isso, os cineastas também levam um Crosby divertidamente relutante por seus antigos lugares favoritos, entre eles a charmosa casa de campo em Laurel Canyon que inspirou a canção 'Our House', de Graham Nash. Embora essa música, junto com 'Teach Your Children Well' e outras do famoso álbum 'Déjà Vu', possam parecer hoje apenas canções cativantes de soft rock, em seu contexto elas funcionavam como hinos adorados por uma geração igualmente entusiasmada com a resistência política e a utopia hippie.
A canção 'Our House', com sua atmosfera de êxtase, foi escrita por Nash enquanto morava com Joni Mitchell, logo após o término conturbado do relacionamento dela com Crosby. Seu relato, agora mais lúcido, sobre seu comportamento nesse relacionamento revela o lado sombrio da contracultura que produziu os assassinatos de Manson, juntamente com os protestos de amor livre. A verdadeira jornada que vale a pena conferir neste filme é o relato brutal de Crosby sobre seus anos de vício, as teorias da conspiração insanas que ele propagava para quem quisesse ouvir e para muitos que não queriam (um ex-companheiro de banda o descreve como 'insuportável', e Crosby não contesta), as mulheres que ele decepcionou e, pior, as que ele arrastou para seus próprios vícios.
A vida e uma esposa amorosa suavizaram as arestas de Crosby, mas, a seu favor, 'David Crosby: Esse É Meu Nome' não encerra a vida do músico com um final feliz e resignado. Perto do fim, há uma cena na cerimônia de iluminação da árvore de Natal de 2015 com o então presidente Obama, onde Crosby, Nash e Stephen Stills cantam 'Silent Night" completamente desafinados. A falta de sincronia é tão ridícula e tão comovente que você torce desesperadamente para que esses roqueiros afastados caiam na gargalhada ou se abracem em grupo, ou façam algo que os reúna novamente. Quando Crowe sugere aparecer na porta de Neil Young para pedir desculpas, a resposta impotente de Crosby pode te fazer chorar".
O que eu achei: Gostei muito do documentário “David Crosby: Esse É Meu Nome” (2019), dirigido por A. J. Eaton, sobretudo pela forma direta, íntima e quase confessional com que apresenta uma figura lendária do rock que, até então, eu só conhecia superficialmente. Ao término da sessão, não só me senti mais próxima de sua trajetória, como também impactada pela complexidade de sua vida pessoal, suas contradições e o peso de suas escolhas ao longo da vida. Crosby aparece como um personagem fascinante, às vezes difícil, mas impossível de ignorar diante de tudo o que construiu – e destruiu – no caminho. Quem conduz a entrevista é ninguém menos que Cameron Crowe, renomado jornalista de rock e diretor de cinema, o que já confere ao documentário um tom de conversa entre velhos conhecidos, com espaço para lembranças, confissões e reflexões. Crosby relembra sua passagem por bandas fundamentais da história da música, como The Byrds, nos anos 60, e Crosby, Stills, Nash & Young, que ajudaram a moldar os rumos do folk rock e do rock politizado. Uma das maiores surpresas para mim foi descobrir o relacionamento profundo e conturbado que ele teve com Joni Mitchell, algo que eu não fazia a menor ideia antes de ver o filme e que revela outra camada, tanto artística quanto emocional, de sua história. Talvez o aspecto mais espantoso do documentário seja o próprio corpo de Crosby como testemunha de uma vida no limite. Viciado em cocaína e heroína durante praticamente toda a vida, ele mesmo afirma não saber como ainda está vivo. Com oito stents no coração e diabetes, sua lucidez aos 78 anos, idade que ele tinha à época das filmagens, soa quase como um milagre médico e ao mesmo tempo como um alerta silencioso. Poucos anos depois, em 2023, ele morreu aos 81 anos, o que transforma o documentário em uma espécie de testemunho final, ainda mais valioso e significativo. “David Crosby: Esse É Meu Nome” não é apenas um retrato de uma lenda do rock, mas uma reflexão crua sobre fama, vícios, arrependimentos, talento e sobrevivência. Uma experiência potente e sincera que quem for fã não deve perder. Excelente.

1.12.25

“Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” – Pedro Almodóvar (Espanha, 1988)

Sinopse:
Mulher (Carmen Maura) é deixada por amante (Fernando Guillén), mas não se conforma e tenta entrar em contato com ele através de sua esposa (Julieta Serrano), que também não sabe de seu paradeiro. Enquanto isso, sua amiga Candela (María Barranco) acha que está sendo perseguida pela polícia por causa do seu namorado terrorista.
Comentário: Pedro Almodóvar (1949) é um cineasta espanhol de quem já assisti 18 filmes, dentre eles os ótimos “Maus Hábitos” (1983) , "A Lei do Desejo" (1986), “Kika” (1993), "A Flor do Meu Segredo" (1995), “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), “Volver” (2006), “Abraços Partidos" (2009), "A Pele que Habito" (2011), "Os Amantes Passageiros" (2013), "Julieta" (2016), o curta “A Voz Humana” (2020) e “Madres Paralelas” (2021). Desta vez vou conferir “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988).
Luiz Carlos Merten do Estadão nos conta que “Em 1988, Pedro Almodóvar já era um autor reconhecido internacionalmente, mas os EUA ainda resistiam a assimilar sua estética ‘marginal’. Desde os curtas e, depois, através de ‘Pepi, Luci e as Outras’, ‘Labirinto de Paixões’, ‘Maus Hábitos’, ‘O Que Fiz para Merecer Isso?’, ‘Matador’ e ‘A Lei do Desejo’, entre 1974 e 87, ao longo de 13 anos de muita provocação, Almodóvar tornou-se a representação da ‘movida’ no cinema. O termo designa a euforia que se seguiu à derrocada do franquismo. De repente, a Espanha, inebriada, descobriu a democracia.
A liberação dos costumes permitiu que Almodóvar e toda uma geração de gays espanhóis saíssem do armário. Ele saiu ruidosamente e, em ‘Labirinto de Paixões’, além de diretor e roteirista, reservou-se um papel, invadindo a tela, invadindo a tela vestido de mulher, de brincos e meia-arrastão. Ay, Pedrito! Os excessos foram só uma fase, não importa quando tenha durado. No já citado ano de 1988, algo se passou, e foi o primeiro passo de Almodóvar no rumo de seu amadurecimento como ‘autor’.
‘Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos’ marcou uma nova etapa do diretor. Lançado na América como ‘Women on the Verge of a Nervous Breakdown’, o filme seduziu o público e os críticos. Jane Fonda comprou os direitos para uma refilmagem que nunca saiu, mas seria feita por Herbert Ross. Em seu guia de filmes, Leonard Maltin diz que se trata de ‘uma ultrajante e altamente estilizada comédia sobre como uma subestrela reage ao ser abandonada pelo amante’. Como alguém pode ser uma subestrela? É simples. Carmen Maura trabalha com dublagem e, como tal, dá voz às maiores divas nas telas e TVs da Espanha, mas ela, pessoalmente, é pouco conhecida e pode até ser desconhecida do público.
Ao redor de Carmen Maura, que processa com espalhafato a dor da perda, movimenta-se uma colorida fauna de amigas e admiradores gays. Julieta Serrano, Maria Serrano, Antonio Banderas e uma atriz de feições tão peculiares que muita gente passou a definir Rossy De Palma como a versão ‘live action’ de um quadro cubista de Pablo Picasso. Em todo o mundo, o público embarcou na viagem das mulheres histéricas de Almodóvar, e embarcou é bem o termo. O filme dá a impressão de nunca estar parando. Estão sempre ocorrendo coisas. A extravagância dá o tom, o humor é incorreto, as situações (e os mal-entendidos e subentendidos) de sexo compõem boa parte do relato, mas o melhor de tudo, melhor até que Maura e sua crise, é o motorista do táxi com estofamento de zebra.
Almodóvar admitiu que se inspirou no motorista de táxi interpretado por Robert De Niro no filme de Martin Scorsese, de 1976, mas foi além. O taxi driver de Almodóvar transforma seu carro numa mistura de bar e drogaria. Quer um drink? Tem. Quer droga? Tem. Sem o táxi driver, não seria fiel ao original”.
O que disse a crítica 1: Jake Cole do site Slant avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: “Uma carta de amor ao cinema e à Espanha pós-Franco, ‘Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos’ é uma comédia efervescente impulsionada em um ritmo maníaco, encharcada de cores tão ricas que parecem comestíveis. O fato de tantas palhaçadas da história serem mordazes por natureza é um testamento das sensibilidades distorcidas do escritor e diretor Pedro Almodóvar, que postula que o esteticamente trash e o moralmente suspeito são tão endêmicos aos prazeres da vida quanto o elegante e o ético. (...) Almodóvar filma uma cavalgada de absurdos com o frenesi que ela merece. Vermelhos profundos e verdes verdejantes imitam o esplendor Technicolor dos melodramas clássicos de Hollywood; os personagens parecem estar competindo conscientemente com as cores do filme, que praticamente queimam em seu brilho”.
O que disse a crítica 2: O site Cinema com Rapadura avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveram: “Este é um dos filmes mais bonitos da carreira de Pedro Almodóvar (...), em que o cineasta faz a mistura perfeita do seu humor original e escrachado com um drama bonito e tocante, o drama do mal de amor. Esse lado mais sensível é sustentado ainda mais pela trilha sonora, com as músicas ‘Soy Infeliz’ e ‘Puro Teatro’, nas vozes das divas Lola Beltran e La Lupe, respectivamente. Assim como o clássico ‘O Garoto’, de Charles Chaplin, este é um filme que oscila entre o riso e as lágrimas, de uma forma natural que só é possível ser realizada com mestria”.
O que eu achei: “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” (1988) é um verdadeiro turbilhão de criatividade, humor e energia, uma das obras mais irresistíveis de Pedro Almodóvar. As 1h35m de duração do filme são absolutamente frenéticas: tudo acontece o tempo todo, sem respiro, sem sobra, sem tempo para o tédio. Cada cena parece impulsionar a próxima em um crescendo caótico delicioso, como se estivéssemos presos dentro de um redemoinho de emoções à flor da pele. Almodóvar constrói uma comédia de erros vibrante, colorida e exagerada na medida certa, em que o melodrama encontra o pastelão e a histeria vira estilo. Pepa, magistralmente interpretada por Carmen Maura, é a âncora perfeita desse caos, uma mulher abandonada que transborda desespero, força e vulnerabilidade, tudo ao mesmo tempo. Em volta dela, uma galeria de personagens memoráveis circula, tropeça, entra em colapso e se reconstrói em meio a gaspachos dopados, malas esquecidas, armações, traições e revelações inesperadas. O filme é uma explosão estética: cores intensas, cenários estilizados, figurinos marcantes e uma trilha que acompanha o ritmo alucinante da narrativa, bem ao estilo Almodóvar de ser. Mas, por trás da superfície farsesca, há também uma leitura sagaz sobre relações amorosas, isolamento, abandono e identidade feminina, temas que o cineasta conduz com ironia, sensibilidade e inteligência. “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos” é cinema em seu estado mais puro e divertido: exagerado, teatral, profundamente humano e absolutamente contagiante. Uma comédia que prende do primeiro ao último minuto e prova que, quando tudo 'está à beira', é justamente aí que o cinema encontra sua forma mais vibrante.

30.11.25

"As Bestas" - Rodrigo Sorogoyen (Espanha/França, 2022)

Sinopse:
Antoine (Denis Ménochet) e Olga (Marina Foïs) são um casal francês que vive há muito tempo numa pequena aldeia da Galícia, uma comunidade autônoma no extremo noroeste da Espanha. Buscando conexão com a natureza, eles têm uma fazenda e restauram casas abandonadas para facilitar o repovoamento, além de praticar uma agricultura ecologicamente responsável. Tudo deveria ser idílico, a não ser por sua oposição a um projeto de turbina eólica que gera um sério conflito com seus vizinhos.
Comentário: Rodrigo Sorogoyen (1981) é um cineasta espanhol, neto do cineasta Antonio del Amo e que frequentemente trabalha em parceria com Isabel Peña. Ele foi indicado ao Prêmio Goya por "Estocolmo" (2013), por "Que Deus nos Salve" (2016), pelo curta-metragem "Mãe" (2017) e por "O Candidato" (2018) que levou os prêmios de Melhor Diretor e Melhor Roteiro Original. Seu curta-metragem "Mãe" (2017) também foi indicado ao Oscar de Melhor Curta. "As Bestas" (2022) é o primeiro filme que vejo dele.
Roger Lerina do site Matinal nos conta tratar-se de uma "coprodução franco-espanhola, [que] conta uma tensa história de cobiça, ressentimento social e xenofobia marcada pelas excelentes interpretações dos franceses Denis Ménochet e Marina Foïs.
Em 'As Bestas', Ménochet e Foïs interpretam Antoine e Olga, um casal francês que mora no interior da Galicia – região do noroeste da Espanha que faz fronteira com Portugal ao sul e cujo idioma local mistura espanhol com português. Com grandes planos de cultivar a terra e vender vegetais no mercado local como forma de ganhar a vida, o ex-professor e a sua solidária esposa deixaram para trás a sua vida confortável na França para procurarem um novo começo.
O sonho idílico, no entanto, azeda: a desconfiança de parte da pequena comunidade com relação ao casal estrangeiro ganha fôlego quando uma negociação de venda de terras com uma grande empresa coloca os franceses no campo oposto ao liderado pelos vizinhos, os brutos irmãos Anta – interpretados pelos ótimos Luis Zahera e Diego Anido. A animosidade crescente se espalha então por toda a aldeia, chegando a um ponto de conflito sem retorno.
Indicado ao Oscar em 2019 pelo curta igualmente impactante 'Mãe' (2017), Rodrigo Sorogoyen assina com Isabel Peña o roteiro de 'As Bestas', inspirado em uma história real registrada antes no documentário 'Santoalla' (2016). 'Estudamos o caso para conhecê-lo e, assim, para nos distanciar dele, e transformá-lo em nossa ficção. Nós conhecíamos, ou acreditávamos que conhecíamos, as pessoas envolvidas. Nós sabíamos, ou pensávamos que sabíamos, suas motivações, seus sonhos. E então começamos a criar nossos personagens para a ficção. Mudamos seus nomes, idade, nacionalidade. Não queríamos contar a história verdadeira, mas algo inspirado naquele evento', explica o diretor, referindo-se ao episódio policial verdadeiro envolvendo um casal holandês que morava em uma aldeia espanhola.
'Um problema financeiro, mas também de identidade, no que diz respeito à propriedade da terra. Ameaças, orgulho, convivência difícil, explosões de violência, medo. Esses dois últimos elementos acabaram se tornando os eixos centrais sobre os quais a história se apoiava: violência e medo', resume Sorogoyen.
Além do casal protagonista interpretado por dois grandes nomes do cinema francês contemporâneo, 'As Bestas' também contou em seu elenco com atores não profissionais, a fim de ampliar a autenticidade da história. Entre os intérpretes sem experiência em atuação, está José Manuel Fernández Blanco, que encarna o emblemático personagem Pepiño – e que morreu em agosto de 2022, sem ter conseguido assistir ao filme concluído.
Enquanto os roteiristas investigavam sobre a área onde se passaria a história, descobriram que, todos os anos, em várias aldeias próximas, é festejada 'a rapa das bestas' – uma rude celebração popular que consiste em cortar as crinas dos animais selvagens para remover quaisquer parasitas antes de liberar os animais de volta para as montanhas. A chocante e primitiva sequência de abertura de 'As Bestas' é uma referência a esse costume local.
'Decidimos introduzir essa tradição, que tem um poder visual esmagador em nossa história. O título menciona isso, mas, também, uma das cenas centrais tentaria ser uma alegoria do ‘rapa’. Quem é a besta? Antoine tenta ser pacífico diante da violência dos irmãos, mas nunca consegue se separar dela', define o cineasta.
Colocando lado a lado as motivações dos antagonistas, 'As Bestas' pinta um retrato pessimista sobre a convivência pacífica na alteridade. Nessa paisagem negativa, a personagem de Marina Foïs – vista recentemente em filmes tão distintos quanto a comédia 'Tudo Sob Descontrole' (2022) quanto no drama 'A Sindicalista' (2022) – surge como uma força feminina resiliente que encara a barbárie em nome da lealdade familiar e da resistência iluminista".
O filme foi exibido na mostra Premiere no Festival de Cannes de 2022 e ganhou na Espanha nove prêmios Goya, além de levar o francês César de Melhor Filme Estrangeiro.
O que disse a crítica 1: Diandra Guedes do site Canal Tech gostou. Disse: "Até onde a intolerância pode levar o ser humano? Essa é a pergunta que guia o filme espanhol 'As Bestas' (...). Com um argumento simples, mas roteiro e montagem impecáveis, o longa esmiúça na tela como a relação com o diferente pode ser brutal".
O que disse a crítica 2: Wallace Andrioli do site Plano Aberto avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: "Sorogoyen demonstra plena compreensão dos personagens, do que os separa e os une, transitando de uma conversa bem-articulada, extensa e dolorosa (...) para outra de poucas palavras e mais olhares de mútuo entendimento. No fim das contas, o que torna 'As Bestas' um grande filme é essa postura relativamente generosa, mesmo com aqueles responsáveis por atos atrozes, aberta portanto ao humano em suas contradições e impasses. Característica manifesta também na forma, já que seus planos-sequência não nascem de um desejo exibicionista tout court [sem haver nada a acrescentar], mas da busca por dar aos atores a possibilidade de expressar as nuances de figuras complexas lidando com situações difíceis".
O que eu achei: Surpreendeu positivamente o longa "As Bestas" (2022) do diretor espanhol Rodrigo Sorogoyen. O filme começa mostrando uma celebração popular chocante e primitiva denominada "a rapa das bestas" que consiste em agarrar animais selvagens – na cena são mostrados cavalos – para cortar suas crinas com a finalidade de remover quaisquer parasitas antes de liberar os animais de volta para as montanhas. Esse costume de fato ocorre na Galícia – essa região ao noroeste da Espanha que faz fronteira com Portugal – onde vamos acompanhar a vida de Antoine (Denis Menochet) e Olga (Marina Fois), dois franceses que se mudaram para a região e lá estão estabelecidos, vendendo verduras para sobreviver. Se a ideia era ir pra lá para viver uma vida pacata, a convivência com os vizinhos não colabora. O que ocorre é que existe um projeto de implantação de uma fazenda de energia eólica no local e, enquanto os locais aceitam a verba proposta para deixar suas casas com algum dinheiro no bolso e irem tentar uma vida nova em outro local, o casal francês não aceita, colocando o projeto em suspensão. Com isso o conflito entre eles está instaurado. A partir desse ponto de tensão, “As Bestas” se impõe como um thriller psicológico de rara intensidade. Sorogoyen constrói o conflito não apenas como um embate entre personagens, mas como um choque de mundos: tradição versus progresso, pertencimento versus estrangeiridade, coletividade versus resistência individual. O que poderia ser apenas uma disputa sobre terras e dinheiro se transforma em um estudo denso sobre ressentimento, orgulho ferido, xenofobia e violência latente. Um dos maiores méritos do filme está na maneira como o diretor trabalha a atmosfera. A paisagem rural da Galícia - isolada, bruta, quase hostil - deixa de ser mero cenário para se tornar parte ativa da narrativa, ampliando a sensação de claustrofobia e insegurança. A câmera é precisa, inquieta quando precisa ser, e silenciosa quando o peso dramático pede contenção. As longas cenas de confronto verbal são hipnotizantes, sustentadas por uma tensão quase insuportável, mostrando um domínio absoluto de ritmo e encenação. As atuações são outro ponto forte. Denis Ménochet entrega uma performance monumental, contida e ao mesmo tempo explosiva. Seu Antoine é obstinado, orgulhoso, mas também vulnerável, um homem que parece não perceber o quanto sua resistência o coloca em risco. Marina Foïs, por sua vez, cresce ainda mais na segunda parte do filme, conduzindo a narrativa com uma força silenciosa e uma dor que transborda em pequenos gestos. O elenco de apoio, especialmente os homens locais, contribui para a sensação de ameaça constante, sem precisar recorrer a vilanias óbvias ou unidimensionais. É justamente essa recusa ao maniqueísmo que faz de “As Bestas” um filme tão potente. Não há respostas fáceis, nem caminhos reconfortantes. O espectador é colocado em um terreno moral instável, onde todos parecem, em alguma medida, vítimas de um sistema maior do que eles. Ainda assim, o filme não relativiza a violência, nem tenta romantizar o ódio: ele o expõe em sua crueza, obrigando-nos a encará-lo. Excelente.

29.11.25

“Kung Fu Panda 3” – Jennifer Yuh Nelson & Alessandro Carloni (EUA/China, 2016)

Sinopse:
Po se reencontra com seu pai biológico e descobre a existência de uma Vila Panda secreta, mas logo deve aprender a dominar o Chi e preparar os pandas para lutar contra o General Kai, um guerreiro espiritual que tem a intenção de destruir o legado do Mestre Oogway.
Comentário: A saga “Kung Fu Panda” gira em torno do atrapalhado Po Ping, um urso panda filho adotivo de um ganso, apaixonado por artes marciais, mais especificamente pelo kung fu. Ele quer criar um estilo de luta próprio, mas não parece levar lá muito jeito já que como todo panda ele é gorducho e preguiçoso.
Em “Kung Fu Panda 1” (2008), a primeira animação da série, estamos na China da antiguidade. Po trabalha na loja de macarrão da sua família e sonha em transformar-se em um mestre de kung fu. Seu sonho se torna realidade quando, inesperadamente, deve cumprir uma profecia antiga e estudar a arte marcial com seus ídolos, os Cinco Furiosos: um grupo de mestres composto pelos sábios Macaco, Louva-A-Deus, Víbora, Garça e Tigresa. Po precisa de toda a sabedoria, força e habilidade que conseguir reunir para proteger seu povo de um Leopardo da Neve malvado.
Na sequência veio “Kung Fu Panda 2” (2011). Po, que já se tornou um Dragão Guerreiro e é um habilidoso lutador de artes marciais, enfrenta um antigo inimigo, agora ainda mais mortal: um pavão misterioso chamado Lorde Shen, que acredita numa profecia que afirma que sua derrocada virá das mãos daquele que combina o preto com o branco, o claro com o escuro. Do lado do panda, além dos quatro furiosos, vão se juntar o Crocodilo, Rino Trovão e Boi Toró. É neste longa que ficamos sabendo que Po é adotado e o que, de fato, aconteceu com seus pais biológicos.
Desta vez vou conferir "Kung Fu Panda 3" (2016) que vai mostrar Po se reencontrando com seu pai biológico chamado Li Shan e descobrindo um paraíso secreto de pandas. Logo essa alegria do reencontro vai se transformar em trabalho, pois ele vai precisar treinar esses pandas para lutar contra o poderoso vilão Kai, um guerreiro sobrenatural que fugiu do Reino dos Espíritos e que rouba a energia vital (chi) de mestres de kung fu para se tornar invencível e dominar o mundo.
O filme explora então a jornada de Po de autodescoberta, o reconhecimento de sua identidade como panda e Dragão Guerreiro, e o desafio de dominar seu próprio chi para deter Kai enquanto treina a desajeitada vila de pandas para se tornarem guerreiros.
No elenco de dubladores estão: Jack Black, Angelina Jolie, Dustin Hoffman, J. K. Simmons, Jackie Chan, Lucy Liu, Seth Rogen, David Cross, Bryan Cranston, Kate Hudson, James Hong, Jean-Claude Van Damme e Randall Duk Kim.
O filme é dedicado à memória de Nancy Bernstein , que atuou como Chefe de Produção na DreamWorks Animation e morreu em 18 de setembro de 2015.
O que disse a crítica 1: Davi Lima do site Plano Crítico avaliou com 2 estrelas, ou seja, ruim. Escreveu: "Po não cresce, nenhum conflito seu confronta seu orgulho proporcionalmente ao seu humor ou poder (...). Tudo se torna racional demais, tudo se acomoda até mesmo na diferenciação, assim como Po em sua compreensão do Kung Fu (...). Ele não transcende, ele volta para si mais uma vez, valoriza a pose de herói e volta para o sonho de ser um super-herói com todos sendo super".
O que disse a crítica 2: Tiago Siqueira do site Cinema com Rapadura avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: "O que sustenta o texto é o carisma dos personagens, bem como as interações entre filho, pai e pai adotivo, além do fato de que a história exigir que Po amadureça e compreenda que sua função no mundo é mais do que bater nos bandidos que invadem o vale".
O que eu achei: “Kung Fu Panda 3” (2016) mantém o charme visual e o humor afetuoso que tornaram a franquia tão popular. No entanto, apesar de eu até ter gostado do filme, ele - assim como o segundo longa - não chega aos pés do primeiro. A sensação é de que a série, embora ainda divertida, já não atinge o mesmo frescor narrativo e emocional que fez do filme inaugural algo especial. Um dos pontos fortes de Kung Fu Panda 3 é o esmero visual: o uso de cores, texturas e movimentos é impressionante, especialmente nas sequências que exploram o reino espiritual, onde a animação ganha um nível extra de estilização e fluidez. A dinâmica entre Po e seu pai biológico também funciona bem; há ternura, humor e um bom equilíbrio entre o drama familiar e a aventura. O vilão Kai traz algumas boas cenas de ação e uma ameaça palpável ao mundo dos mestres de kung fu. Além disso, o filme acerta ao desenvolver Po como alguém que ainda está descobrindo quem ele é e qual seu lugar no mundo, agora não apenas como guerreiro, mas como mestre. Por outro lado, os pontos fracos ficam mais evidentes quando comparamos o filme ao primeiro da franquia. "Kung Fu Panda 3" não tem o mesmo impacto emocional, nem o mesmo rigor narrativo. A história segue caminhos previsíveis e, em alguns momentos, parece depender demais de fórmulas já estabelecidas pelo próprio universo da série. O humor, embora constante, é menos inspirado, e o conflito principal se resolve de forma acelerada e um tanto conveniente. Os personagens secundários, especialmente os Cinco Furiosos, acabam ficando apagados, com pouco espaço para participação significativa. O resultado é uma boa animação, visualmente belíssima e com boas intenções temáticas, mas que não desperta o mesmo entusiasmo do primeiro filme. Até dá pra ver pela experiência divertida, afetiva e bem acabada que vai agradar especialmente as crianças, mas não espere o mesmo brilho que marcou a estreia da saga.

24.11.25

"Memórias do Subdesenvolvimento" - Tomás Gutiérrez Alea (Cuba, 1968)

Sinopse:
 Em 1962, logo depois da Revolução de Fidel Castro em Cuba, Sérgio (Sérgio Corriere) decide ficar em Havana enquanto sua esposa (Yolanda Farr), família e amigos fogem para Miami. Sozinho em um admirável mundo novo, Sérgio observa a constante ameaça de invasão estrangeira enquanto procura alguma jovem (Daisy Granado) para se relacionar.
Comentário: Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996) foi um cineasta cubano conhecido por fazer filmes que combinavam habilmente humor, técnicas experimentais e uma análise crítica da política, história e cultura cubanas. Além de sua atuação como diretor, ele escreveu diversos ensaios teóricos que abordam a relação entre cinema e política. São dele filmes como "Uma Luta Cubana Contra os Demônios" (1971), "A Última Ceia" (1976), "Até Certo Ponto" (1984), "Cartas do Parque" (1989), "Morango e Chocolate" (1993) indicado ao Oscar e "Guantanamera" (1995). Assisti dele o ótimo “A Morte de um Burocrata” (1966). Desta vez vou conferir "Memórias do Subdesenvolvimento" (1968).
Segundo o cineasta Walter Salles num especial para a Folha SP, " No início, há o som de tambores e corpos que pulsam. Dezenas, centenas de pessoas, mestiços, negros em sua maioria, dançam. Tudo é movimento e êxtase. De repente, ouvem-se dois tiros. Um homem jaz no chão - um corpo sem vida. Em volta dele, a música e o ritmo ensurdecedor não param. A cadência é frenética. A câmera busca rostos na multidão, até se deter na face de uma jovem negra. A imagem se congela no seu rosto em transe.
Assim começa 'Memórias do Subdesenvolvimento', dirigido pelo cubano Tomás Gutierrez Alea (...). Há filmes que não sobrevivem ao teste do tempo. Com o filme de Alea, aconteceu exatamente o contrário: não só permanece de uma extraordinária atualidade [o texto é de 2003] como também dá um belo puxão de orelha na produção cinematográfica atual. Em 'Memórias', Alea prova que um extremo rigor e um experimentalismo radical podem andar de mãos dadas. Nada é aleatório, cada imagem ecoando na imagem seguinte, construindo um todo que se configura maior do que a soma das partes.
O filme, baseado em uma novela de Edmundo Desnoes, narra a história de Sérgio, um jovem intelectual de origem burguesa que vive na Cuba revolucionária de 1961. Sérgio se recusou a partir para Miami com sua família, da qual tem uma visão crítica. Mas, por outro lado, ele também é um estrangeiro em uma sociedade em mutação. É um corpo estranho, entre fronteiras. Um homem que usa sua cultura europeia como escudo e refúgio. E que, no mundo pulsante e em transformação que descreve Alea no início de seu filme, virou um anacronismo.
O filme, a exemplo de Sérgio, navega entre estados diferentes - entre a ficção e o documentário, entre o presente e o passado, entre a África e a Europa. A narrativa dialética toma a forma de uma colagem, mas uma colagem elaborada com um rigor conceitual, cinematográfico, incomum. Cenas de cinejornais, fragmentos históricos, manchetes de revistas se mesclam, colidem, organizadas em torno das reflexões de Sérgio.
O homem é um observador. Sérgio acompanha o dia a dia em Havana de longe, através de binóculos. À distância, sem sujar as mãos. Mas é ele, na verdade, o animal que está sendo observado pela câmera de Alea. Sérgio revisita amores passados, faz o inventário de suas frustrações presentes. A história pessoal de Sérgio e a história que está sendo reescrita a cada instante se fundem, numa síntese aguda e fascinante. A crise existencial de um só indivíduo se torna subitamente representativa de um todo.
'Memórias' também tem o desejo de mostrar que aquilo que é considerado 'subdesenvolvimento' muda de acordo com o ponto de vista. A inteligência de Alea está em não apequenar Sérgio, cuja visão desconstrutiva do passado e do presente é provida de uma lógica cáustica e bem-humorada. Só depois de algum tempo é que percebemos que esse olhar aparentemente agudo não possui perspectiva histórica. Não relaciona causa e consequência. Sérgio é capaz de criticar, mas não de apontar a origem estrutural dos problemas que percebe.
Nesse sentido, 'Memórias' não é só um filme sobre a questão do 'subdesenvolvimento'. É um filme sobre a atitude das pessoas diante desse problema".
O filme foi restaurado pela Cineteca di Bologna no laboratório L’Immagine Ritrovata em associação com o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC). A restauração foi financiada pela George Lucas Family Foundation e pelo World Cinema Project da The Film Foundation.
O que disse a crítica 1: Renato Silveira do site Cinematório gostou. Disse: "O principal dos contrastes, justamente aquele que faz o filme funcionar tão bem, está entre as cenas documentais e ficcionais, suturadas de forma a corroborar a formação de uma atmosfera verossímil, em que o espectador é levado a trilhar um caminho calcado por uma bruta realidade, sendo ao mesmo tempo guiado por uma reflexão existencial, não apenas sobre um homem, mas sobre toda uma população".
O que disse a crítica 2: César Barzine do site Plano Crítico avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: "A linguagem de 'Memórias do Subdesenvolvimento' passa por três elementos distintos: o desenrolar da trama em si, a narração do protagonista e filmagens de arquivos ou flashbacks que interrompem a linearidade do filme. (...) Uma narrativa que, assim como nosso protagonista, é desnorteada, carece de rigor ou de continuidade. É a falta de horizontes que Sérgio sempre alega acerca de Cuba e do subdesenvolvimento. E o que vale para esse país, vale para ele também; como uma ilha dentro de outra ilha".
O que eu achei: Ambientado no período efervescente que se segue à Revolução Cubana - movimento que em 1959 levou Fidel Castro (1926-2016) ao poder e derrubou o ditador Fulgencio Batista (1901-1973) - o filme concentra sua narrativa nos anos de 1961 e 1962. Nesse cenário, acompanhamos Sérgio (Sérgio Corriere), um intelectual burguês de 38 anos, que observa a transformação do país a partir de uma posição privilegiada e isolada. Sem trabalho e vivendo da renda dos vários imóveis que possui, ele vê seus pais e sua esposa embarcarem definitivamente para os Estados Unidos, enquanto decide permanecer em Havana. A partir daí, Sérgio atravessa os dias num misto de apatia, ironia e desconfiança. Instalado em seu confortável apartamento, observa a cidade por meio de uma luneta, analisando com desdém os rumos da revolução que se consolida. Embora curioso sobre o que virá, não acredita no projeto político em curso e tampouco se engaja nele. Um dos aspectos mais marcantes do longa é sua proposta estética: a montagem combina cenas ficcionais com trechos documentais, imagens de arquivo e materiais de telejornais. Esse híbrido cria uma narrativa singular, que reforça a perspectiva subjetiva de Sérgio ao mesmo tempo em que situa o espectador nos acontecimentos reais da época. Adaptado do romance homônimo do escritor cubano Edmundo Desnoes (1930–2023), o filme funciona como um retrato contundente de uma burguesia em processo de desintegração diante da nova ordem socialista. Apesar de não ser um filme especialmente vibrante, do ponto de vista cinematográfico ele vale pela experiência estética pouco convencional, quase um experimento entre ficção e documentário. E vale, sobretudo, pela dimensão histórica: a obra incorpora imagens reais de eventos-chave, como a malsucedida invasão da Baía dos Porcos em 1961, conduzida por exilados anticastristas treinados pela CIA na tentativa de derrubar o governo de Fidel Castro. 

23.11.25

"O Esquema Fenício" - Wes Anderson (Alemanha/EUA, 2025)

Sinopse:
O magnata Zsa-Zsa Korda (Benicio del Toro) sofre mais um acidente aéreo, mas logo se recupera. Ao voltar para casa, mesmo sendo pai de nove filhos homens e de uma única menina, a freira Liesl (Mia Threapleton), ele decide nomeá-la como única herdeira de todo o seu patrimônio. Os dois então embarcam na consolidação de um novo empreendimento - o "Plano de Infraestrutura Fenícia Terrestre e Marítima de Korda" -, que se torna alvo de espionagem industrial, intrigas, ataques terroristas e assassinos.
Comentário: Wes Anderson (1969) é um cineasta americano, produtor, roteirista e ator. Seus filmes são conhecidos pelos seus visuais excêntricos e pelo estilo de narrativa. Já assisti dele a obra-prima "O Grande Hotel Budapeste" (2013), os excelentes "Os Excêntricos Tenenbaums" (2001), "A Vida Marinha com Steve Zissou" (2004), "Moonrise Kingdom" (2012), “A Crônica Francesa” (2021) e “Asteroid City” (2022), o bom "Viagem a Darjeeling" (2007) e o não tão bom “A Incrível História de Henry Sugar e Outros Três Contos” (2023), além das animações "O Fantástico Sr. Raposo" (2009) e "Ilha dos Cachorros" (2018). Desta vez vou conferir "O Esquema Fenício" (2025).
Henrique Artuni da Folha SP nos conta que "Há algo de antigo em 'O Esquema Fenício'. Um filme que, só pelo título, poderia se camuflar bem entre obras como 'Uma Aventura na Martinica', 'Tensão em Xangai', entre outros títulos brasileiros criativos para clássicos dos anos 1940.
Wes Anderson não está próximo à grandeza dessa era de ouro de Hollywood, mas, para arquitetar seu novo esquema, tomou emprestado o tom farsesco dessa época para encenar a via-crúcis de um homem - o magnata Zsa-Zsa Korda, de Benicio Del Toro - que insiste em não morrer. Ou melhor, de um homem que, de tão próximo da morte, é obrigado a se confrontar com algo ainda mais inescapável, a família, para alcançar sua redenção.
Não é tema estranho para o autor de 'Os Excêntricos Tenenbaums', cujas histórias têm sempre pelo menos umas duas dúzias de personagens desajustados. (...)
Após explorar os rincões desérticos dos Estados Unidos no formalista 'Asteroid City', agora o texano se debruça sobre a Grande Fenícia Independente Moderna - uma paisagem fictícia com traços de Líbano, Síria e Marrocos, cujo nome remete a uma civilização remota, dessas que se lê pelas páginas da Bíblia. Aliás, o catolicismo e o Antigo Testamento é todo onipresente na jornada, sobretudo nos sonhos místicos que Korda tem toda vez que quase morre numa das armadilhas plantadas por um grupo de empresários americanos que quer acabar com sua fortuna. Nesses episódios alegóricos, Korda se vê num julgamento celeste, encontra suas três ex-mulheres mortas, sua avó e o próprio Deus - um Bill Murray toscamente barbado. (...)
É quase uma trama à parte, em paralelo à jornada burocrática de Liesl, Korda e de um estranho tutor, vivido por Michael Cera, pela Fenícia para que ele concretize seu projeto dos sonhos e tenha certeza de que a noviça será uma herdeira digna. O tal 'esquema' do título é um ambicioso empreendimento no deserto, com ferrovias e represas que, além de lhe trazerem fortuna, são um acerto de contas com sua infância pobre. A brincadeira não é barata e, após ser sabotado pelos americanos, ele tem de recorrer a uma série de outros empresários da região para cobrir o investimento - dentre eles, um meio-irmão maquiavélico, vivido por um hilário Benedict Cumberbatch, numa caracterização patética, que pode ou não ser o verdadeiro pai de Liesl.
Nessa saga, Anderson aposta num humor sombrio, até violento, com corpos explodindo, acidentes de avião, granadas, armas químicas em meio às suas 'gags' visuais. É também quando brilham coadjuvantes como Jeffrey Wright, Tom Hanks e Mathieu Amalric, mesmo com pouco tempo de tela para seus personagens excêntricos".
O que disse a crítica 1: Mattheus Goto da Veja SP avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: "Os visuais e as atuações carregam o longa, principalmente quando parece ter esgotado ideias. A premissa é mais objetiva e cômica do que a de 'Asteroid City', trabalho mais recente do diretor, de 2023, mas menos surpreendente. A dinâmica entre os dois protagonistas é o maior trunfo".
O que disse a crítica 2: Robledo Milani do site Papo de Cinema avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: 'Permitir-se ser permeado pelo cinema de Wes Anderson é como estar em um encontro de velhos amigos da faculdade anos – ou mesmo décadas – após terem deixado de estudar juntos. Para os que estão há tanto tempo sem se ver, a oportunidade de estarem mais uma vez lado a lado é preciosa, e apenas a menção de velhas histórias é mais do que suficiente para boas e saudosas recordações. Para os que estão ao redor, meros curiosos ou acompanhantes de ocasião, tal experiência, no entanto, pode ser excruciante (aflitivo, doloroso). 'O Esquema Fenício' representa um mergulho ainda mais radical do realizador dentro desse seu universo próprio e indissociável de sua persona. Feito para o deleite dos predispostos, ao mesmo tempo em que deverá servir como motivo de angústia para os que neste âmbito não forem capazes de nele adentrar'.
O que eu achei: Quem já assistiu a algum filme de Wes Anderson sabe exatamente o que esperar. Seu estilo inconfundível que faz uso do live action para inserir atores reais em cenários meticulosamente construídos, se tornou sua marca registrada. O capricho é evidente tanto nas composições simétricas - com a câmera centralizada, criando a sensação de um espaço plano, bidimensional, similar a um palco de teatro ou uma casa de bonecas - quanto na atenção minuciosa aos detalhes. A paleta de cores em tons pastéis é cuidadosamente planejada e a trilha sonora é primorosamente desenvolvida. Por conta disso, o público de Wes Anderson desde sempre se divide entre dois extremos: os que o amam e não perdem nada do diretor, e os que o detestam e nunca se conectaram com sua estética. Agora, com o lançamento de seu 12º filme nota-se o surgimento de uma nova categoria: os que gostavam mas começaram a enjoar. Li várias críticas negativas classificando a obra como “mais do mesmo”, o que me deixou receosa ao apertar o play. Mas, para minha surpresa, a experiência foi muito gratificante. Benicio Del Toro interpreta o frio e indiferente Zsa-Zsa Korda que, após sobreviver à sexta tentativa de assassinato, decide que precisa escolher um herdeiro. Apesar de ter nove filhos, o magnata surpreende ao apontar Liesl (Mia Threapleton) - uma filha que se tornou freira - como sucessora de sua vasta fortuna. O forte senso moral de Liesl, em contraste com a indiferença quase cínica de Korda, define o tom do filme. À medida que Korda elabora um projeto inédito, o chamado Esquema Fenício, pai e filha vão se aproximando pouco a pouco. A cada nova visita aos empresários com quem ele precisa negociar o novo empreendimento, o público ganha um vislumbre de sua trajetória e das decisões que moldaram sua vida, permitindo que Liesl compreenda mais claramente quem seu pai realmente é. No elenco, além da dupla, há um grande número de excelentes atores como: Tom Hanks, Willem Dafoe, Jeffrey Wright, Bill Murray, Scarlett Johansson, Bryan Cranston, Riz Ahmed, Benedict Cumberbatch, Kate Winslet e Charlotte Gainsbourg, dentre outros. A trilha sonora é do competente Alexandre Desplat. Terminei de ver lembrando da ótima sensação de quando eu era criança e mergulhava naqueles livros ilustrados tipo "20.000 Léguas Submarinas" ou "Viagem ao Centro da Terra". A experiência é igual. Então não dê ouvido às vozes cansadas, volte a olhar o cinema de Wes Anderson com frescor e se jogue pois vale cada minuto. Excelente.

17.11.25

"Homem com H" – Esmir Filho (Brasil, 2025)

Sinopse:
 
Cinebiografia de Ney Matogrosso (Jesuíta Barbosa) que apresenta a trajetória do artista desde a infância até se tornar uma das grandes figuras da música e cultura brasileiras. O filme acompanha a origem em Bela Vista no Mato Grosso do Sul e os constantes embates familiares em razão dos preconceitos de seu pai (Rômulo Braga). Ao sair de casa e se mudar para São Paulo, Ney dá início à sua carreira, com uma voz e uma veia criativa e performática únicas, Ney Matogrosso compõe a banda Secos & Molhados e enfileira sucessos como "Rosa de Hiroshima" e "Sangue Latino" em meio à repressão da ditadura militar.
Comentário: Esmir Filho (1982) é um cineasta brasileiro. São dele os curtas "Alguma Coisa Assim" (2006), que ganhou o prêmio de Melhor Roteiro em Cannes, "Saliva" (2007), indicado para representar o Brasil no Oscar e a obra multimídia "Kollwitzstrasse 52", exibida no MIS de São Paulo, que combina cinema e teatro. "Os Famosos e os Duendes da Morte" (2009) é seu primeiro longa e o único filme que assisti dele. Desta vez vou conferir "Homem com H" (2025) uma cinebiografia do cantor Ney Matogrosso.
Vinícius Andrade do site Tangerina nos conta que "'Homem com H' tem sido elogiado por sua fidelidade aos fatos, uma condição inegociável imposta por Ney Matogrosso desde o início da produção. A principal exigência do cantor ao diretor e roteirista Esmir Filho foi clara. 'A primeira coisa que eu falei com o Esmir [Filho] foi que dizem muita coisa, escrevem muita coisa ao meu respeito que é loucura, que é mentira. Nesse filme não pode ter mentira, tudo que a gente colocar tem que ser verdade. E eu fiquei satisfeito quando assisti, porque tudo que está ali é verdade', disse o intérprete, durante entrevista de divulgação do longa.
(...) Para assegurar essa precisão, Ney Matogrosso teve um envolvimento significativo no processo de criação. Ele leu 12 versões diferentes do roteiro, das 17 que Esmir Filho preparou até a versão final. O cantor explicou que conferia os roteiros, não para proibir ou vetar, mas para assegurar a verdade. Além disso, ele visitou o set de gravações por um dia e teve uma sessão privada para ver o resultado final do filme. Segundo Esmir Filho, a contribuição de Ney foi 'brilhante' devido à sua 'ótima memória, revelando sentimentos e texturas'. (...)
A cinebiografia 'Homem com H' explora a trajetória de Ney Matogrosso desde sua infância em Bela Vista [cidade fronteira com o Paraguai em Mato Grosso do Sul], marcada por uma difícil relação com seu pai, que era militar, e pela violência homofóbica paterna. O filme também aborda a proteção de sua mãe, Beita. A produção acompanha o momento em que ele sai de casa, descobre a potência de sua 'voz fina', sua jornada com o grupo Secos e Molhados, sua carreira solo e seus relacionamentos.
Entre os amores retratados estão o com Cazuza (interpretado por Jullio Andrade/Jullio Reis) e com Marco de Maria (vivido por Bruno Montaleone), seu companheiro durante 13 anos. O filme mostra como Ney se liberta de opressões e figuras de autoridade, quebra preconceitos e se consagra como um dos artistas mais influentes de sua geração. O elenco inclui também Rômulo Braga, Hermila Guedes, Mauro Soares, Jeff Lyrio, Carol Abras, Lara Tremoroux e a cantora Céu.
Apesar de se considerar 'duro na queda' e não se descontrolar facilmente, Ney Matogrosso confessou que dois momentos na produção de 'Homem com H' o fizeram 'desabar' ou 'descontrolar'. A primeira vez foi ao assistir a uma cena durante as filmagens: 'era uma cena em que eu chegava para o Marco [de Maria, companheiro de longa data do cantor, que morreu em 1990, vítima das complicações causadas pela Aids], ele já doente, e mostrava o meu exame com o resultado negativo'. Ele descreveu a intensidade da experiência: 'Eu vi essa cena, e os atores estavam tão convincentes que senti uma coisa muito intensa'. Ney revelou que a cena o desestabilizou porque ele havia vivido aquilo e no momento se sentiu culpado, mesmo sem ter feito nada diferente e tendo certeza que estava contaminado, mas não contraiu a doença.
A segunda vez que se emocionou foi na primeira sessão privada do filme completo. No entanto, o artista brincou que, na segunda vez que assistiu ao filme, já estava 'vacinado', comendo pipoca enquanto todos ao redor choravam".
O que disse a crítica 1: Caio Coletti do site Omelete avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse que "Homem com H" transmite grande sensibilidade, sobretudo na maneira como o diretor e seu parceiro de fotografia, Azul Serra, registram as performances musicais. Jesuíta Barbosa se entrega de forma notável à tarefa de traduzir a fisicalidade de Ney, dentro e fora do palco, de um modo que não apenas o evoca de forma convincente, mas também expressa uma dramaturgia sólida dentro do contexto específico do filme. Embora peque por não saber a hora de encerrar, "Homem com H" ainda conta uma bela história.
O que disse a crítica 2: Aline Pereira do site Adoro Cinema também avaliou com 4 estrelas. Escreveu: "Chama atenção o acabamento sofisticado dos figurinos, da caracterização dos personagens principais e a estética vibrante dos cenários - chega de passado esmaecido, como reforça o próprio diretor. É uma atmosfera que vai perto do lúdico e que penso que até poderia dar um passo além nesta direção. O ponto em que o longa perde força é justamente na linearidade quase que didática para expor os acontecimentos e, com isso, acaba se alongando em pontos que já estavam dados".
O que eu achei: "Homem com H" (2025) é uma cinebiografia que equilibra sensibilidade, risco e densidade emocional sem abrir mão de uma linguagem visual hipnotizante. A narrativa se estrutura em torno da jornada de vida do cantor Ney Matogrosso. Começa na sua infância e termina nos tempos atuais, com o artista se apresentando no Allianz em São Paulo em 2024. Nesse trajeto o que vemos é um protagonista que vive um processo de autodefinição – e o título, de aparência simples, logo se revela um poderoso jogo de espelhos. Esmir Filho não trata o “H” como mera letra ou símbolo identitário, mas como algo em permanente movimento, algo que o filme examina com afeto e ambiguidade. Há aqui uma força humana rara: o personagem é simultaneamente frágil e imenso, e o roteiro o acompanha sem julgamentos, explorando o que significa existir em um mundo que tenta fixar categorias. Visualmente, o filme é deslumbrante. A fotografia trabalha com contrastes de luz e textura que ampliam a sensação de interioridade, criando atmosferas que oscilam entre o documental e o onírico. Em vários momentos, vemos rostos e corpos como paisagens: cada gesto se torna narrativa, cada silêncio, uma revelação. A trilha sonora - usada com precisão, nunca em excesso - reforça o andamento emocional, envolvendo o espectador sem guiá-lo pela mão. O elenco entrega atuações vibrantes. A interpretação de Jesuíta Barbosa, que poderia virar caricata facilmente, dá conta do recado, sustentando nuances que poderiam se perder em mãos menos talentosas. A construção emocional é gradual, delicada, e quando o filme atinge seus pontos de maior intensidade, o impacto vem justamente do acúmulo de pequenas verdades que a direção soube cultivar. Além disso, "Homem com H" dialoga com temas contemporâneos de forma profunda, mas sem didatismo. O filme não quer explicar; quer fazer sentir. E é justamente essa confiança na potência da linguagem cinematográfica que o torna tão especial. O resultado é um retrato de identidade, desejo e pertencimento que amplia a tradição do cinema brasileiro voltado ao íntimo, mas com um frescor formal que lhe confere personalidade própria. Uma homenagem a altura de Ney Matogrosso. Tire as crianças da sala e se jogue.

16.11.25

"Frankenstein" - Guillermo del Toro (EUA, 2025)

Sinopse:
O egocêntrico cientista Victor Frankenstein (Christian Convery / Oscar Isaac) resolve se aventurar em experimentos audaciosos e criar do zero uma criatura com vida (Jacob Elordi). O que essas tentativas e estudos desencadeiam é uma tragédia tanto para o criador quanto para sua criação monstruosa. Brincar de Deus levou Frankenstein a concretizar suas maiores ambições científicas, mas colocou-o na mira da raiva de sua própria criatura, que agora busca por vingança após se ver descartada pelo professor.
Comentário: Guillermo del Toro (1964) é um cineasta, roteirista e produtor mexicano. Assisti dele os bons "O Labirinto do Fauno" (2006), “A Forma da Água” (2017) e “O Beco do Pesadelo” (2021) e a animação “Pinocchio” (2022). Desta vez vou conferir "Frankenstein" (2025), baseado no livro homônimo de Mary Shelley publicado em 1818.
Angelo Cordeiro Silva da Revista Rolling Stone nos conta que "Guillermo del Toro sempre foi atraído pelos monstros - não apenas pelas criaturas fantásticas que habitam seus filmes, mas também pelos monstros que carregamos dentro de nós. Em obras como 'A Espinha do Diabo' (2001) e 'O Beco do Pesadelo' (2021), ele enxerga o horror nos homens e adota um tom amargo, quase desencantado, diante da crueldade humana. Já quando volta o olhar para o outro lado - para os seres rejeitados, deformados, incompreendidos - como em 'A Forma da Água' (2017), 'Pinóquio' (2022) e agora neste novo 'Frankenstein', o cineasta se deixa guiar pela ternura. É quando seus filmes se tornam cartas de amor às criaturas, lembrando que, no fundo, os verdadeiros monstros raramente são aqueles que parecem ser.
'Frankenstein' (...) apresenta Victor Frankenstein (Oscar Isaac), um cientista brilhante, porém egocêntrico, que dá vida a uma criatura em um experimento que acaba levando à ruína tanto o criador quanto sua própria criação.
Nesta nova adaptação do clássico de Mary Shelley, del Toro dá à história um romantismo gótico inconfundível, um deleite visual e emocional que reflete o carinho e o fascínio que o diretor tem pela criatura. É um filme não apenas sobre monstros, mas feito por alguém que os ama profundamente. E essa devoção se manifesta sobretudo na atuação hipnotizante de Jacob Elordi, que dá vida - e uma comovente humanidade - à criatura. Sua interpretação é contida e dolorosa, feita de gestos quebrados e olhares aflitos (...).
Del Toro transforma o clássico em uma fábula sobre o divino. O simbolismo é nítido: o 'brincar de Deus' é um tema constante, reforçado por referências bíblicas, como na sequência da leitura da história de Adão e Eva feita pela criatura, e também por sua pose em formato de cruz ao ser eletrocutado por raios e, posteriormente, ganhar vida. O monstro de Elordi é como um Jesus Cristo - um ser criado à imagem de seu criador, rejeitado pelo mundo, condenado por ser diferente. Há um eco de redenção e sofrimento, de amor e ira. O eterno conflito entre pai e filho se desdobra em camadas: primeiro entre Victor Frankenstein e seu próprio pai (Charles Dance), e depois entre Victor e a criatura - um reflexo trágico do mesmo amor distorcido que o criou.
Visualmente, 'Frankenstein' é o que se espera do cineasta mexicano. A Netflix deu a del Toro a liberdade e os recursos que ele merecia, e o resultado é um espetáculo que remete à opulência de 'A Colina Escarlate' (2015). Cada cenário é grandioso, decadente e belo, com suas sombras e luzes que parecem pulsar vida e, ao mesmo tempo, a morte - um espelho tanto do próprio Victor quanto da obsessão do próprio del Toro em dar forma ao inominável. A violência, por vezes chocante, nunca é gratuita. Ela se torna expressão dos males humanos e das feridas da criação. Quando a criatura se entrega à raiva, não é sua monstruosidade que transborda, mas sua humanidade. É o gesto mais humano possível: sofrer, amar e, por fim, destruir.
Muitos, inclusive o próprio del Toro e parte do elenco, como Mia Goth, chegaram a afirmar em entrevistas que 'Frankenstein' não é um filme de terror. E é possível compreendê-los, ao menos em parte. O filme nasce do terror, mas é também uma obra de fantasia, ficção científica e drama. Ainda assim, não há como negar: este é um filme de terror em sua essência, mas um terror banhado pela melancolia do romantismo gótico de Shelley ao qual del Toro dá vida como poucos conseguiriam fazer.
Del Toro cria aqui sua obra mais humana - e talvez a mais pessoal - desde 'A Forma da Água'. É o gesto de um homem apaixonado por tudo o que é imperfeito, que finalmente encontra em 'Frankenstein' a oportunidade de declarar esse amor. Porque, no fundo, o que é um diretor senão um criador obcecado em dar alma ao inanimado, em transformar dor em beleza, sombra em poesia? Se Victor Frankenstein ergueu um monstro, Guillermo del Toro escreve uma carta de amor no formato de um filme que pulsa com a ternura e a melancolia de quem acredita que até as criaturas merecem ser amadas. 'Frankenstein' é seu filho e sua confissão: a mais pura e comovente declaração de amor a uma criatura, dentre todas as que já ganharam vida a partir de suas obras".
No elenco, além de Oscar Isaac no papel de Victor Frankenstein e de Jacob Elordi no papel do monstro, temos Mia Goth no papel de Elizabeth e Christoph Waltz no papel de Henrich Harlander, um personagem que não existia no original de Mary Shelley. Na trama ele é um rico e inescrupuloso fabricante de armas que acumula fortuna durante a Guerra da Crimeia e que concorda em financiar os experimentos científicos de Victor Frankenstein, motivado por seus próprios interesses em reviver os mortos e talvez até mesmo aumentar sua própria vida e poder. Ele também é o tio de Elizabeth.
O que disse a crítica 1: Igor Gielow da Folha SP avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse: "O diretor sofre um pouco da doença infantil do projeto pessoal, a excessiva reverência ao material de origem. Não que evite desvios: são muitos e, se Elizabeth (Mia Goth) e o novo papel para o irmão de Victor (Felix Kammerer) na trama funcionam, a introdução do personagem do cada dia mais careteiro Christoph Waltz é um erro. Mas a sensação deixada por Del Toro é a de temor de aprofundar mais radicalmente as inovações no enredo, o que acaba por realçar suas facetas mais convencionais. (...) Ao fim, ele entrega um filme de horror sem horror, a despeito do abundante 'body horror', na forma de uma bela declaração de amor a seu real protagonista - o monstro".
O que disse a crítica 2: Ritter Fan do site Plano Crítico avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: "Com cenários práticos de fazer o queixo cair, especialmente os vários níveis da torre laboratório de Victor Frankenstein, um design de criatura inesquecível, que reúne o grotesco com o belo, uma história macabra, mas também sensível e emocionante e atuações irretocáveis de Oscar Isaac e Jacob Elordi, Guillermo del Toro finalmente materializou seu sonho e conseguiu dar vida à Frankenstein em um filme cheio de identidade própria, mas reverente ao material fonte, e que não esconde seu escopo e sua ambição. Um monstruoso triunfo gótico de visão única que espanta, assombra, encanta e enternece".
O que eu achei: Assistir ao "Frankenstein" (2025) de Guillermo del Toro me deu a mesma sensação de quando assisti “Nosferatu” (2024) de Robert Eggers: além do filme ter que competir com as inúmeras adaptações já feitas no cinema, o uso exagerado de CGI (Computer Generated Imagery ou Imagens Geradas por Computador) incomoda. Não que a técnica não tenha lá seus encantos. Ela tem. Cria cenários belíssimos, dá movimentos quase reais a pessoas e animais, representa uma economia considerável em comparação ao que era no passado em que cada elemento precisava ser real e atende à imaginação sem limite dos cineastas. Até aí tudo ótimo. Entretanto seu uso excessivo acaba virando tipo uma sobremesa adocicada demais, daquelas que tinha tudo para ser gostosa, mas o excesso de açúcar acaba enjoando. Há muito de Guillermo del Toro no filme: os monstros que ele vira e mexe reverencia em suas tramas, a ideia de que o verdadeiro monstro é o ser humano e não o monstro em si, os cenários exuberantes e o cuidado notório com detalhes com figurinos, maquiagem, objetos de cena, etc. Mas há também muito de Netflix no filme, essa empresa que disse sim a um projeto que há décadas o cineasta pretendia fazer. Como já era de se esperar, eles dão o dinheiro – limitado obviamente – e fazem algumas exigências em troca. Eu desconheço quais exigências a Netflix pode ter feito, mas é notório como a trama é desenvolvida de forma excessivamente explicada, com tudo sendo dito com todas as letras, como se o público-alvo fossem pessoas que vêem filmes mexendo no celular. Outra coisa que chama a atenção é a semelhança do monstro – inspirado por uma estátua de São Bartolomeu situada na Catedral de Milão - com o visual pálido e brilhante dos vampiros da saga "Crepúsculo", muito diferente dos monstros interpretados por Boris Karloff em 1931 e do Robert De Niro em 1994. Com isso o filme não atinge aquela excelência que gostaríamos de ver, mas ele também não é de todo ruim. Tem qualidades na sua releitura do livro de Mary Shelley, trazendo para a história um apelo mais emocional, com o ator Jacob Elordi dando conta do recado num papel tão difícil – ser monstro sem ser caricato -, com a presença de personagens novos e um final emocionante que aborda a questão do perdão entre criador e criatura. Não creio que tenha cacife para abocanhar um Oscar de Melhor Filme na premiação de 2026, mas com certeza poderá concorrer em categorias mais técnicas como Edição, Fotografia, Direção de Arte, Figurino (as roupas e joias usadas pela Elizabeth inspiradas por insetos são maravilhosas), Maquiagem (a do monstro é mega bem feita), Trilha Sonora ou mesmo Roteiro Adaptado. Talvez não se torne um clássico, mas ainda assim configura uma boa distração, especialmente para quem não conhece a história ou nunca tenha visto nada do del Toro. Vamos ver agora o que a cineasta Maggie Gyllenhall fará com a história em "A Noiva!", que será lançado em 2026. A conferir.

15.11.25

"Os 4 Demônios" – F. W. Murnau (EUA, 1928)

Sinopse:
Quatro órfãos – Charles (Jack Parker/ Charles Morton), Adolf (Philippe de Lacy/ Barry Norton), Marion (Dawn O'Day/ Janet Gaynor) e Louise (Anita Fremault/ Nancy Drexel) - criados por um palhaço idoso (J. Farrell MacDonald), se tornam equilibristas em um circo. Um dia, Charles conhece uma ricaça (Mary Duncan) e se apaixona, deixando Marion enciumada.
Comentário: Friedrich W. Murnau (1888 -1931) foi um dos mais importantes realizadores do cinema mudo, do cinema expressionista alemão e do estilo Kammerspiel. "Nosferatu" (1922), uma adaptação pessoal da novela "Drácula", de Bram Stoker, é o filme mais conhecido da sua obra, juntamente com "A Última Gargalhada" (1924) e "Fausto" (1926). Em 1926, emigrou para Hollywood, onde, antes de morrer prematuramente aos 43 anos, realizaria o aclamado "Aurora" (1927). Assisti dele as obras-primas "Nosferatu" (1922) e "Aurora" (1927), os excelentes “O Castelo Vogelöd” (1921), "A Última Gargalhada" (1924), "Tartufo" (1925), "Fausto" (1926) e "O Pão Nosso de Cada Dia" (1930) e os curiosos “Caminhada Noite Adentro” (1920), “Fantasma” (1922) e "Tabu" (1931). Desta vez vou assistir o que restou do filme "Os 4 Demônios" (1928), um dos mais famosos 'filmes perdidos' de todos os tempos.
Trata-se de um filme de circo ambientado em Paris, que foi a continuação do diretor alemão F. W. Murnau para sua estreia americana, a obra-prima "Aurora" (1927). Até onde sabemos, nem mesmo um minuto do intrigante "Os 4 Demônios" foi visto por muitas décadas - nem a versão muda que estreou em outubro de 1928, nem a versão parcialmente falada com um final diferente que estreou em junho de 1929 filmada depois que Murnau deixou a Fox para o Taiti com Robert Flaherty para fazer "Tabu" (1931).
O filme é considerado perdido – assim como muitos outros desse período – pois usavam filme de nitrato, que é altamente inflamável e se degrada rapidamente. Muitos filmes feitos há um século foram perdidos para sempre devido a técnicas de armazenamento inadequadas em arquivos de estúdio ou incêndios. Somente da filmografia de Murnau, dos 21 filmes que ele rodou, nove estão perdidos:
1919. "O Garoto Vestido de Azul" (Der Knabe in Blau);
1920. "A cabeça de Janus" (Der Januskopf);
1920. "Crepúsculo - Noite - Manhã" (Abend - Nacht - Morgen);
1920. "O Corcunda e a Dançarina" (Der Bucklige und die Tänzerin);
1920. "Satanás" (Satanas) que restou apenas um breve fragmento do filme preservado no arquivo cinematográfico da Cinemateca Francesa;
1921. "Desejo Ardente" (Sehnsucht);
1922. "A Contrabandista" (Marizza) que restaram apenas 13 minutos da duração total de 50 minutos;
1923. "A Expulsão" (Die Austreibung) e 
1928. "Os 4 Demônios" (4 Devils).
No caso de "Os 4 Demônios", o historiador e colecionador de cinema William K. Everson conta que até havia uma cópia em bom estado que a Fox Films emprestou para a atriz Mary Duncan - uma das estrelas do filme. Ela a havia pego emprestada para mostrá-la a um grupo de amigos na Flórida. Como a estrela sabia que se tratava de uma cópia perigosa de nitrato e presumiu que a Fox tivesse outras, o que se diz é que ela simplesmente jogou essa única cópia no oceano.
Frente a isso, o que é possível assistir atualmente é a reconstrução feita pela historiadora de cinema Janet Bergstrom chamada "Murnau's 4 Devils: Traces of a Lost Film" (2003) que se utiliza de fotos, desenhos, esboços, rascunhos de roteiro, plantas arquitetônicas, programas, intertítulos e respostas a questionários de pré-estreia para tentar nos dar uma ideia de como era o filme original cuja trama gira em torno de quatro órfãos – dois irmãos e duas irmãs de pais diferentes - criados por um palhaço idoso, que se tornam equilibristas de sucesso em um circo.
Há também memórias e elementos do famoso trapezista da história do circo Alfredo Codona, que realizou seu perigoso triplo salto mortal como dublê e trabalhou como consultor para Murnau.
Então, embora não possamos ver o filme em si, este ensaio audiovisual apresenta materiais ricos que documentam sua produção e recepção, nos aproximando do mundo do filme e da experiência de Murnau.
O filme originalmente tinha 1h40m de duração e era dividido em duas partes, tendo no elenco da primeira parte: J. Farrell McDonald (o palhaço), Anders Randolf (Cecchi), Jack Parker (Charles), Philippe de Lacy (Adolf), Dawn O'Day (Marion), Anita Fremault (Louise) e no elenco da segunda parte: Janet Gaynor (Marion), Charles Morton (Charles), Nancy Drexel (Louise), Barry Norton (Adolf), Mary Duncan (la Signora). Além de contar com cerca de 1.260 figurantes. 
O que disse a crítica: O site Kinemastik gostou, disseram: "O filme de Bergstrom narra e reconta a fábula do filme e se envolve cada vez mais em seu tom e estilo (presumidos) e, efetivamente borra a linha divisória entre documentário e ficção de forma contida e sensível. Ele quase involuntariamente assume se tornar o material real, mas nunca esquece seu caráter substitutivo".
O que eu achei: O documentário "Murnau’s 4 Devils: Traces of a Lost Film" (2003) dirigido por Janet Bergstrom é uma verdadeira arqueologia cinematográfica - e, justamente por isso, uma oportunidade única de entrever um filme que o tempo apagou quase por completo. “Os 4 Demônios” (1928) de F. W. Murnau sobrevive apenas nos relatos dispersos, em algumas imagens fixas e em documentos de produção raríssimos; é um daqueles casos emblemáticos em que a cinefilia precisa imaginar o que a história não conseguiu preservar. Bergstrom assume esse desafio e constrói um trabalho rigoroso, delicado e estimulante. O filme funciona como uma reconstrução possível do longa perdido. A diretora mobiliza uma impressionante variedade de materiais – fotografias de bastidores, desenhos de cenários, esboços de roteiro, plantas arquitetônicas dos sets, páginas de programa e até intertítulos recuperados – para recompor não apenas a narrativa de "Os 4 Demônios", mas também o clima, a estética e as ambições formais de Murnau nesse projeto. Em vez de tentar “refazer” o filme, Bergstrom opta por um gesto mais honesto e revelador: oferecer ao espectador as pistas, fragmentos e indícios que nos permitem imaginar o que deveria ter sido. A narração é sóbria, informativa, mas sem sufocar o caráter evocativo das imagens. Percebe-se, em cada segmento, o cuidado em contextualizar tanto a carreira de Murnau quanto sua relação com a Fox Film, num momento em que o diretor buscava equilibrar a própria visão artística com as exigências do estúdio. A reconstrução mostra também o quanto "Os 4 Demônios" parecia expandir a preocupação do cineasta com espaços altamente estilizados e com a psicologia intensificada pelos enquadramentos e movimentos de câmera, uma marca já presente em obras anteriores como "A Última Gargalhada" (1924) e "Aurora" (1927). O documentário tem, ainda, o mérito de fazer o espectador pensar sobre a fragilidade do patrimônio cinematográfico. Ao ver os restos materiais do filme, somos lembrados do quanto a história do cinema é feita também de ausências e de como essas ausências moldam nossa compreensão da evolução estética e técnica da arte. "Murnau’s 4 Devils: Traces of a Lost Film" é uma experiência de ressurreição parcial, uma ponte entre o que se perdeu e o que ainda podemos reconstruir com sensibilidade e pesquisa. Para quem se interessa por Murnau, pela história do cinema mudo ou pela preservação cinematográfica, trata-se de uma oportunidade rara - talvez a única - de ter uma ideia concreta do que foi "Os 4 Demônios", um filme que sobrevive, agora, sobretudo na força de suas próprias lacunas.

10.11.25

"Dersu Uzala" – Akira Kurosawa (Japão/URSS, 1975)

Sinopse:
O capitão Vladimir Arseniev (Yuri Solomin) é enviado pelo governo soviético para explorar e reconhecer as montanhas da Mongólia, juntamente com uma pequena tropa. Em meio a expedição eles encontram Dersu Uzala (Maksim Munzuk), um caçador que vive apenas nas florestas. Percebendo que Dersu conhece bastante o local, o que pode facilitar o trabalho, o capitão lhe oferece que acompanhe a tropa até o término da missão. É o início de uma forte amizade entre o capitão e Dersu, que aos poucos demonstra suas habilidades.
Comentário: Akira Kurosawa (1910-1998) foi produtor, montador, escritor e pintor japonês mas se destacou como cineasta e roteirista, um dos mais importantes do Japão. Com uma carreira de cinquenta anos, Kurosawa dirigiu em torno de 30 filmes. É amplamente considerado um dos cineastas mais importantes da história do cinema, o que lhe rendeu um Oscar em 1989 pelo conjunto de sua obra. Assisti dele 7 filmes: a obra-prima "Ran" (1985), o ótimo "Céu e Inferno" (1963), os bons “Os Sete Samurais” (1954) e "Yojimbo: O Guarda-Costas" (1961), o mediano “Viver” (1952) e os curiosos "Sonhos" (1990) e "Madadayo" (1993). Desta vez vou rever "Dersu Uzala" (1975).
Arlindenor Pedro do site Outras Palavras nos conta que "Assistir 'Dersu Uzala' é um exercício de reflexão sobre o instinto de sobrevivência natural do ser humano, na verdadeira acepção da palavra. Creio ser esta a obra mais eloquente que o cineasta japonês Akira Kurosawa produziu a respeito do tema. De forma sutil, ele nos faz pensar em nossos limites, propondo situações em que a natureza nos põe à prova, testando nossa habilidade de sobrevivência em um mundo diferente do nosso, onde pouco importa o que aprendemos anteriormente. Em tais condições, seguir os ensinamentos de quem já tem a experiência da adaptação ao ambiente que nos é inóspito torna-se primordial. Ao superarem obstáculos em conjunto, os personagens constroem uma relação de mútuo respeito, na qual o conhecimento é transmitido de forma natural.
(...) O roteiro baseia-se no diário de viagem do explorador e topógrafo do exército tzarista russo Vladimir Arsemiv. Kurosawa e seu roteirista, o soviético Yuri Nagibin, nos colocam frente à oposição de dois mundos. Um é o do capitão Vladmir Arseniev, homem culto e civilizador, detentor do conhecimento do mundo moderno, onde prevalece a razão – em última instância, o conhecimento explícito. Outro, o do mongol Dersu Uzala, um caçador das estepes siberianas, que detém o conhecimento da vida na natureza, empregando-o não para subjugá-la, mas para sobreviver junto a ela, numa harmonia própria do homem natural. A história desenrola-se numa situação em que a natureza se impõe, de forma que o mais simples prevalece perante o mais complexo – pois suas soluções, baseadas na criatividade (em última instância, o que chamamos de conhecimento tácito) são as mais viáveis para o momento. (...)
Dersu Uzala é um filme do renascimento de Kurosawa, após uma tentativa de suicídio, em 1971. Frustrado com seus filmes anteriores, talvez influenciado pela morte do seu irmão, Heigo – que disparou contra o próprio peito após forte processo de depressão, aos 22 anos – o cineasta cortou-se diversas vezes na garganta e pulsos, passando por um difícil período de recuperação. Sobreviveu e aceitou convite do mais importante estúdio da União Soviética (o Mosfilm) para filmar a história do encontro entre o capitão Arseniev e Dersu Uzala. A obra foi realizada em situações dificílimas, em sets de filmagens no interior da Sibéria, onde foi decisiva a infraestrutura colocada à sua disposição pelo governo soviético. Estava concluída em agosto de 1975. (...)
Durante o desenrolar da história vamos nos apaixonando pelo pequeno mongol, que aos poucos mostra como é realmente. Aparece um homem simples, que vive livre na natureza, com pleno conhecimento do ambiente que o cerca. Mas, ao mesmo tempo, um ser temeroso das forças naturais, que não as compreende plenamente. Trata-se, na forma descritiva do diretor, do eterno embate entre o mito e a ciência, ou da razão esclarecida, já tão bem estudada pelos filósofos.
Dersu movimenta-se de acordo com suas tradições e o conhecimento adquirido em sua vivência diária. Arseniev orienta-se por seus livros e pelo que lhe foi transmitido nos bancos escolares e no exército. Dersu respeita o conhecimento do seu amigo, e o capitão se surpreende ao ver naquele homem atributos de alto valor de dignidade, honradez, solidariedade, coragem e determinação, aliados a sua extrema simplicidade. São qualidades cada vez mais esquecidas no mundo civilizado.
Opera-se então um equilíbrio entre os dois mundos e se abre, numa perspectiva russeauniana, a tensão entre o 'homem natural' e a 'civilização'. Desenvolvido por Jean-Jacques Rousseau, em especial no seu 'Discurso Sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre Homens', mas presente também nas investigações de filósofos pós-modernos, o tema é de enorme atualidade. Contribui com a reflexão dos que procuram libertar o homem contemporâneo das cadeias impostas pelo reino da mercadoria - onde prevalece o desequilíbrio imposto por uma forma de ser se choca com nossa condição de ser integrado na natureza".
"Dersu Uzala" foi o primeiro filme do diretor falado em língua não japonesa (é integralmente falado em russo) . Premiado em diversos festivais, o loga ainda recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1976.
O que disse a crítica 1: Ritter Fan do site Plano Crítico avaliou o filme com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Disse: " A tocante história do experiente caçador do povo Goldi que forma laços de amizade com um capitão do exército russo que está nas inóspitas terras do leste da Rússia em 1902 consegue ficar ainda mais poderosa por ser baseada quase que integralmente em fatos reais. E claro, apesar de já ter sido levada às telas antes pelo cineasta soviético Agasi Babayan, a narrativa se beneficiou muito do estilo Kurosawa de filmar [que se beneficia das] famosas panorâmicas que evocam ainda mais os temas do filme que não só se relacionam com a amizade e a velhice como, também, com a integração com a natureza e com a invasão da chamada 'civilização'. (...) 'Dersu Uzala' é um dos filmes mais bonitos já feitos e mostrou a todos que, mesmo desiludido, traído e desesperançoso, Kurosawa foi um dos maiores diretores que já existiram".
O que disse a crítica 2: Bruno Carmelo do site Papo de Cinema também avaliou com 5 estrelas. Escreveu: "Kurosawa oferece uma dezena de cenas de plasticidade inacreditável, focando-se na pequeneza dos seres humanos diante da natureza. A conversa da dupla diante do Sol e da Lua ao mesmo tempo; o colapso do capitão em plena tempestade de areia, em contraluz, e a correnteza cada vez mais violenta dentro de uma mesma cena de poucos cortes transparecem a admiração e o respeito pela natureza, sem idealizá-la. O discurso jamais soa ingênuo, do tipo que atribui virtudes morais às árvores e animais, porém o diretor estabelece uma noção de espaço onde as regras humanas não valem mais. (...'Dersu Uzala' apresenta a nostalgia de um cinema de aventuras pré-heroísmo, uma narrativa anticolonialista sobre exploradores, e um cinema épico incapaz de sobrepor o homem à natureza".
O que eu achei: “Dersu Uzala” (1975) é uma das mais belas e comoventes obras de Akira Kurosawa, um filme que transcende fronteiras, gêneros e idiomas para se tornar uma profunda meditação sobre a relação entre o homem e a natureza, a amizade e o tempo. Realizado em coprodução entre o Japão e a União Soviética, o longa marca um momento de virada na carreira do diretor japonês: após um período de crise pessoal e profissional, Kurosawa renasce artisticamente com um filme de imensa serenidade e sabedoria. Baseado nos diários reais do explorador russo Vladimir Arseniev, o filme narra o encontro entre o capitão e topógrafo do Exército Imperial e o caçador nômade Dersu Uzala, um homem simples, intuitivo e profundamente conectado à natureza das florestas da Sibéria no início do século XX. O que começa como uma relação de mera utilidade – o guia que conhece o terreno – transforma-se numa amizade de respeito mútuo e admiração, onde Arseniev aprende com Dersu uma filosofia de vida baseada na harmonia com o mundo natural. O personagem-título é interpretado magistralmente por Maksim Munzuk, ator e músico da República da Tuva (então parte da URSS). Munzuk, pouco conhecido fora de seu país antes deste papel, empresta a Dersu uma humanidade tocante e autêntica, sua presença carrega algo de ancestral, como se o próprio espírito da floresta habitasse nele. É notável como seu desempenho se equilibra entre a ternura, a sabedoria e a melancolia, compondo um retrato que raramente o cinema conseguiu captar com tamanha pureza. A cinematografia é outro triunfo. Kurosawa, filmando em 70 mm, transforma a paisagem siberiana em protagonista: a vastidão dos campos, o brilho da neve, o reflexo da luz nas águas dos rios, tudo é captado com rigor pictórico e profundo respeito. O diretor, que sempre teve um olhar épico e humanista, encontra aqui um equilíbrio entre a grandiosidade da natureza e a pequenez do homem diante dela. Além de seu valor artístico, “Dersu Uzala” também preserva a memória de um homem real. Vladimir Arseniev (1872–1930) foi de fato um explorador e geógrafo russo, autor dos relatos que inspiraram o filme. Sua contribuição é considerada tão importante que, em 1952, uma cidade na região do Primorsky Krai, no Extremo Oriente russo, recebeu o nome de Arseniev em sua homenagem. Conta-se que na colina de Uvalnaya há monumentos erguidos à ele e ao seu guia Dersu. Hoje, a cidade é um centro industrial e cultural da região. Em resumo, “Dersu Uzala” é mais do que um encontro entre dois homens, é o encontro entre dois mundos: o da civilização e o da natureza, o do conhecimento técnico e o da sabedoria instintiva. Kurosawa filma essa dualidade sem juízo moral, apenas com compaixão e espanto. O resultado é uma obra-prima de simplicidade e profundidade universal, um testamento à fragilidade e à dignidade do ser humano em meio ao infinito natural. Um filme para ser visto com calma, como se caminhasse pela floresta ao lado de Dersu, ouvindo o vento e aprendendo, por um instante, a ser parte do mundo, não seu dono. Seria um pecado morrer sem ver. Se jogue.