17.11.25

"Homem com H" – Esmir Filho (Brasil, 2025)

Sinopse:
 
Cinebiografia de Ney Matogrosso (Jesuíta Barbosa) que apresenta a trajetória do artista desde a infância até se tornar uma das grandes figuras da música e cultura brasileiras. O filme acompanha a origem em Bela Vista no Mato Grosso do Sul e os constantes embates familiares em razão dos preconceitos de seu pai (Rômulo Braga). Ao sair de casa e se mudar para São Paulo, Ney dá início à sua carreira, com uma voz e uma veia criativa e performática únicas, Ney Matogrosso compõe a banda Secos & Molhados e enfileira sucessos como "Rosa de Hiroshima" e "Sangue Latino" em meio à repressão da ditadura militar.
Comentário: Esmir Filho (1982) é um cineasta brasileiro. São dele os curtas "Alguma Coisa Assim" (2006), que ganhou o prêmio de Melhor Roteiro em Cannes, "Saliva" (2007), indicado para representar o Brasil no Oscar, a obra multimídia "Kollwitzstrasse 52", que combina cinema e teatro, exibida no MIS de São Paulo e o longa "Os Famosos e os Duendes da Morte" (2009). Em 2011, fundou a produtora Saliva Shots, onde desenvolve e produz conteúdo audiovisual para cinema, TV e internet. Assisti dele "Os Famosos e os Duendes da Morte" (2009) e desta vez vou conferir "Homem com H" (2025) uma cinebiografia do cantor Ney Matogrosso.
Vinícius Andrade do site Tangerina nos conta que "'Homem com H' tem sido elogiado por sua fidelidade aos fatos, uma condição inegociável imposta por Ney Matogrosso desde o início da produção. A principal exigência do cantor ao diretor e roteirista Esmir Filho foi clara. 'A primeira coisa que eu falei com o Esmir [Filho] foi que dizem muita coisa, escrevem muita coisa ao meu respeito que é loucura, que é mentira. Nesse filme não pode ter mentira, tudo que a gente colocar tem que ser verdade. E eu fiquei satisfeito quando assisti, porque tudo que está ali é verdade', disse o intérprete, durante entrevista de divulgação do longa.
(...) Para assegurar essa precisão, Ney Matogrosso teve um envolvimento significativo no processo de criação. Ele leu 12 versões diferentes do roteiro, das 17 que Esmir Filho preparou até a versão final. O cantor explicou que conferia os roteiros, não para proibir ou vetar, mas para assegurar a verdade. Além disso, ele visitou o set de gravações por um dia e teve uma sessão privada para ver o resultado final do filme. Segundo Esmir Filho, a contribuição de Ney foi 'brilhante' devido à sua 'ótima memória, revelando sentimentos e texturas'. (...)
A cinebiografia 'Homem com H' explora a trajetória de Ney Matogrosso desde sua infância em Bela Vista [cidade fronteira com o Paraguai em Mato Grosso do Sul], marcada por uma difícil relação com seu pai, que era militar, e pela violência homofóbica paterna. O filme também aborda a proteção de sua mãe, Beita. A produção acompanha o momento em que ele sai de casa, descobre a potência de sua 'voz fina', sua jornada com o grupo Secos e Molhados, sua carreira solo e seus relacionamentos.
Entre os amores retratados estão o com Cazuza (interpretado por Jullio Andrade/Jullio Reis) e com Marco de Maria (vivido por Bruno Montaleone), seu companheiro durante 13 anos. O filme mostra como Ney se liberta de opressões e figuras de autoridade, quebra preconceitos e se consagra como um dos artistas mais influentes de sua geração. O elenco inclui também Rômulo Braga, Hermila Guedes, Mauro Soares, Jeff Lyrio, Carol Abras, Lara Tremoroux e a cantora Céu.
Apesar de se considerar 'duro na queda' e não se descontrolar facilmente, Ney Matogrosso confessou que dois momentos na produção de 'Homem com H' o fizeram 'desabar' ou 'descontrolar'. A primeira vez foi ao assistir a uma cena durante as filmagens: 'era uma cena em que eu chegava para o Marco [de Maria, companheiro de longa data do cantor, que morreu em 1990, vítima das complicações causadas pela Aids], ele já doente, e mostrava o meu exame com o resultado negativo'. Ele descreveu a intensidade da experiência: 'Eu vi essa cena, e os atores estavam tão convincentes que senti uma coisa muito intensa'. Ney revelou que a cena o desestabilizou porque ele havia vivido aquilo e no momento se sentiu culpado, mesmo sem ter feito nada diferente e tendo certeza que estava contaminado, mas não contraiu a doença.
A segunda vez que se emocionou foi na primeira sessão privada do filme completo. No entanto, o artista brincou que, na segunda vez que assistiu ao filme, já estava 'vacinado', comendo pipoca enquanto todos ao redor choravam".
O que disse a crítica 1: Caio Coletti do site Omelete avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse que "Homem com H" transmite grande sensibilidade, sobretudo na maneira como o diretor e seu parceiro de fotografia, Azul Serra, registram as performances musicais. Jesuíta Barbosa se entrega de forma notável à tarefa de traduzir a fisicalidade de Ney, dentro e fora do palco, de um modo que não apenas o evoca de forma convincente, mas também expressa uma dramaturgia sólida dentro do contexto específico do filme. Embora peque por não saber a hora de encerrar, "Homem com H" ainda conta uma bela história.
O que disse a crítica 2: Aline Pereira do site Adoro Cinema também avaliou com 4 estrelas. Escreveu: "Chama atenção o acabamento sofisticado dos figurinos, da caracterização dos personagens principais e a estética vibrante dos cenários - chega de passado esmaecido, como reforça o próprio diretor. É uma atmosfera que vai perto do lúdico e que penso que até poderia dar um passo além nesta direção. O ponto em que o longa perde força é justamente na linearidade quase que didática para expor os acontecimentos e, com isso, acaba se alongando em pontos que já estavam dados".
O que eu achei: "Homem com H" (2025) é uma cinebiografia que equilibra sensibilidade, risco e densidade emocional sem abrir mão de uma linguagem visual hipnotizante. A narrativa se estrutura em torno da jornada de vida do cantor Ney Matogrosso. Começa na sua infância e termina nos tempos atuais, com o artista se apresentando no Allianz em São Paulo em 2024. Nesse trajeto o que vemos é um protagonista que vive um processo de autodefinição – e o título, de aparência simples, logo se revela um poderoso jogo de espelhos. Esmir Filho não trata o “H” como mera letra ou símbolo identitário, mas como algo em permanente movimento, algo que o filme examina com afeto e ambiguidade. Há aqui uma força humana rara: o personagem é simultaneamente frágil e imenso, e o roteiro o acompanha sem julgamentos, explorando o que significa existir em um mundo que tenta fixar categorias. Visualmente, o filme é deslumbrante. A fotografia trabalha com contrastes de luz e textura que ampliam a sensação de interioridade, criando atmosferas que oscilam entre o documental e o onírico. Em vários momentos, vemos rostos e corpos como paisagens: cada gesto se torna narrativa, cada silêncio, uma revelação. A trilha sonora - usada com precisão, nunca em excesso - reforça o andamento emocional, envolvendo o espectador sem guiá-lo pela mão. O elenco entrega atuações vibrantes. A interpretação de Jesuíta Barbosa, que poderia virar caricata facilmente, dá conta do recado, sustentando nuances que poderiam se perder em mãos menos talentosas. A construção emocional é gradual, delicada, e quando o filme atinge seus pontos de maior intensidade, o impacto vem justamente do acúmulo de pequenas verdades que a direção soube cultivar. Além disso, "Homem com H" dialoga com temas contemporâneos de forma profunda, mas sem didatismo. O filme não quer explicar; quer fazer sentir. E é justamente essa confiança na potência da linguagem cinematográfica que o torna tão especial. O resultado é um retrato de identidade, desejo e pertencimento que amplia a tradição do cinema brasileiro voltado ao íntimo, mas com um frescor formal que lhe confere personalidade própria. Uma homenagem a altura de Ney Matogrosso. Tire as crianças da sala e se jogue.

16.11.25

"Frankenstein" - Guillermo del Toro (EUA, 2025)

Sinopse:
O egocêntrico cientista Victor Frankenstein (Christian Convery / Oscar Isaac) resolve se aventurar em experimentos audaciosos e criar do zero uma criatura com vida (Jacob Elordi). O que essas tentativas e estudos desencadeiam é uma tragédia tanto para o criador quanto para sua criação monstruosa. Brincar de Deus levou Frankenstein a concretizar suas maiores ambições científicas, mas colocou-o na mira da raiva de sua própria criatura, que agora busca por vingança após se ver descartada pelo professor.
Comentário: Guillermo del Toro (1964) é um cineasta, roteirista e produtor mexicano. Assisti dele os bons "O Labirinto do Fauno" (2006), “A Forma da Água” (2017) e “O Beco do Pesadelo” (2021) e a animação “Pinocchio” (2022). Desta vez vou conferir "Frankenstein" (2025), baseado no livro homônimo de Mary Shelley publicado em 1818.
Angelo Cordeiro Silva da Revista Rolling Stone nos conta que "Guillermo del Toro sempre foi atraído pelos monstros - não apenas pelas criaturas fantásticas que habitam seus filmes, mas também pelos monstros que carregamos dentro de nós. Em obras como 'A Espinha do Diabo' (2001) e 'O Beco do Pesadelo' (2021), ele enxerga o horror nos homens e adota um tom amargo, quase desencantado, diante da crueldade humana. Já quando volta o olhar para o outro lado - para os seres rejeitados, deformados, incompreendidos - como em 'A Forma da Água' (2017), 'Pinóquio' (2022) e agora neste novo 'Frankenstein', o cineasta se deixa guiar pela ternura. É quando seus filmes se tornam cartas de amor às criaturas, lembrando que, no fundo, os verdadeiros monstros raramente são aqueles que parecem ser.
'Frankenstein' (...) apresenta Victor Frankenstein (Oscar Isaac), um cientista brilhante, porém egocêntrico, que dá vida a uma criatura em um experimento que acaba levando à ruína tanto o criador quanto sua própria criação.
Nesta nova adaptação do clássico de Mary Shelley, del Toro dá à história um romantismo gótico inconfundível, um deleite visual e emocional que reflete o carinho e o fascínio que o diretor tem pela criatura. É um filme não apenas sobre monstros, mas feito por alguém que os ama profundamente. E essa devoção se manifesta sobretudo na atuação hipnotizante de Jacob Elordi, que dá vida - e uma comovente humanidade - à criatura. Sua interpretação é contida e dolorosa, feita de gestos quebrados e olhares aflitos (...).
Del Toro transforma o clássico em uma fábula sobre o divino. O simbolismo é nítido: o 'brincar de Deus' é um tema constante, reforçado por referências bíblicas, como na sequência da leitura da história de Adão e Eva feita pela criatura, e também por sua pose em formato de cruz ao ser eletrocutado por raios e, posteriormente, ganhar vida. O monstro de Elordi é como um Jesus Cristo - um ser criado à imagem de seu criador, rejeitado pelo mundo, condenado por ser diferente. Há um eco de redenção e sofrimento, de amor e ira. O eterno conflito entre pai e filho se desdobra em camadas: primeiro entre Victor Frankenstein e seu próprio pai (Charles Dance), e depois entre Victor e a criatura - um reflexo trágico do mesmo amor distorcido que o criou.
Visualmente, 'Frankenstein' é o que se espera do cineasta mexicano. A Netflix deu a del Toro a liberdade e os recursos que ele merecia, e o resultado é um espetáculo que remete à opulência de 'A Colina Escarlate' (2015). Cada cenário é grandioso, decadente e belo, com suas sombras e luzes que parecem pulsar vida e, ao mesmo tempo, a morte - um espelho tanto do próprio Victor quanto da obsessão do próprio del Toro em dar forma ao inominável. A violência, por vezes chocante, nunca é gratuita. Ela se torna expressão dos males humanos e das feridas da criação. Quando a criatura se entrega à raiva, não é sua monstruosidade que transborda, mas sua humanidade. É o gesto mais humano possível: sofrer, amar e, por fim, destruir.
Muitos, inclusive o próprio del Toro e parte do elenco, como Mia Goth, chegaram a afirmar em entrevistas que 'Frankenstein' não é um filme de terror. E é possível compreendê-los, ao menos em parte. O filme nasce do terror, mas é também uma obra de fantasia, ficção científica e drama. Ainda assim, não há como negar: este é um filme de terror em sua essência, mas um terror banhado pela melancolia do romantismo gótico de Shelley ao qual del Toro dá vida como poucos conseguiriam fazer.
Del Toro cria aqui sua obra mais humana - e talvez a mais pessoal - desde 'A Forma da Água'. É o gesto de um homem apaixonado por tudo o que é imperfeito, que finalmente encontra em 'Frankenstein' a oportunidade de declarar esse amor. Porque, no fundo, o que é um diretor senão um criador obcecado em dar alma ao inanimado, em transformar dor em beleza, sombra em poesia? Se Victor Frankenstein ergueu um monstro, Guillermo del Toro escreve uma carta de amor no formato de um filme que pulsa com a ternura e a melancolia de quem acredita que até as criaturas merecem ser amadas. 'Frankenstein' é seu filho e sua confissão: a mais pura e comovente declaração de amor a uma criatura, dentre todas as que já ganharam vida a partir de suas obras".
No elenco, além de Oscar Isaac no papel de Victor Frankenstein e de Jacob Elordi no papel do monstro, temos Mia Goth no papel de Elizabeth e Christoph Waltz no papel de Henrich Harlander, um personagem que não existia no original de Mary Shelley. Na trama ele é um rico e inescrupuloso fabricante de armas que acumula fortuna durante a Guerra da Crimeia e que concorda em financiar os experimentos científicos de Victor Frankenstein, motivado por seus próprios interesses em reviver os mortos e talvez até mesmo aumentar sua própria vida e poder. Ele também é o tio de Elizabeth.
O que disse a crítica 1: Igor Gielow da Folha SP avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse: "O diretor sofre um pouco da doença infantil do projeto pessoal, a excessiva reverência ao material de origem. Não que evite desvios: são muitos e, se Elizabeth (Mia Goth) e o novo papel para o irmão de Victor (Felix Kammerer) na trama funcionam, a introdução do personagem do cada dia mais careteiro Christoph Waltz é um erro. Mas a sensação deixada por Del Toro é a de temor de aprofundar mais radicalmente as inovações no enredo, o que acaba por realçar suas facetas mais convencionais. (...) Ao fim, ele entrega um filme de horror sem horror, a despeito do abundante 'body horror', na forma de uma bela declaração de amor a seu real protagonista - o monstro".
O que disse a crítica 2: Ritter Fan do site Plano Crítico avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: "Com cenários práticos de fazer o queixo cair, especialmente os vários níveis da torre laboratório de Victor Frankenstein, um design de criatura inesquecível, que reúne o grotesco com o belo, uma história macabra, mas também sensível e emocionante e atuações irretocáveis de Oscar Isaac e Jacob Elordi, Guillermo del Toro finalmente materializou seu sonho e conseguiu dar vida à Frankenstein em um filme cheio de identidade própria, mas reverente ao material fonte, e que não esconde seu escopo e sua ambição. Um monstruoso triunfo gótico de visão única que espanta, assombra, encanta e enternece".
O que eu achei: Assistir ao "Frankenstein" (2025) de Guillermo del Toro me deu a mesma sensação de quando assisti “Nosferatu” (2024) de Robert Eggers: além do filme ter que competir com as inúmeras adaptações já feitas no cinema, o uso exagerado de CGI (Computer Generated Imagery ou Imagens Geradas por Computador) incomoda. Não que a técnica não tenha lá seus encantos. Ela tem. Cria cenários belíssimos, dá movimento quase reais a pessoas e animais, representa uma economia considerável em comparação ao que era no passado em que cada elemento precisava ser real e atende à imaginação sem limite dos cineastas. Até aí tudo ótimo. Entretanto seu uso excessivo acaba virando tipo uma sobremesa adocicada demais, daquelas que tinha tudo para ser gostosa, mas o excesso de açúcar acaba enjoando. Há muito de Guillermo del Toro no filme: os monstros que ele vira e mexe reverencia em suas tramas, a ideia de que o verdadeiro monstro é o ser humano e não o monstro em si, os cenários exuberantes e o cuidado notório com detalhes com figurinos, maquiagem, objetos de cena, etc. Mas há também muito de Netflix no filme, essa empresa que disse sim a um projeto que há décadas o cineasta pretendia fazer. Como já era de se esperar, eles dão o dinheiro – limitado obviamente – e fazem algumas exigências em troca. Eu desconheço quais exigências a Netflix pode ter feito, mas é notório como a trama é desenvolvida de forma excessivamente explicada, com tudo sendo dito com todas as letras, como se o público-alvo fossem pessoas que vêem filmes mexendo no celular. Outra coisa que chama a atenção é a semelhança do monstro – inspirado por uma estátua de São Bartolomeu situada na Catedral de Milão - com o visual pálido e brilhante dos vampiros da saga "Crepúsculo", muito diferente dos monstros interpretados por Boris Karloff em 1931 e do Robert De Niro em 1994. Com isso o filme não atinge aquela excelência que gostaríamos de ver, mas ele também não é de todo ruim. Tem qualidades na sua releitura do livro de Mary Shelley, trazendo para a história um apelo mais emocional, com o ator Jacob Elordi dando conta do recado num papel tão difícil – ser monstro sem ser caricato -, com a presença de personagens novos e um final emocionante que aborda a questão do perdão entre criador e criatura. Não creio que tenha cacife para abocanhar um Oscar de Melhor Filme na premiação de 2026, mas com certeza poderá concorrer em categorias mais técnicas como Edição, Fotografia, Direção de Arte, Figurino (as roupas e joias usadas pela Elizabeth inspiradas por insetos são maravilhosas), Maquiagem (a do monstro é mega bem feita), Trilha Sonora ou mesmo Roteiro Adaptado. Talvez não se torne um clássico, mas ainda assim configura uma boa distração, especialmente para quem não conhece a história ou nunca tenha visto nada do del Toro. Vamos ver agora o que a cineasta Maggie Gyllenhall fará com a história em "A Noiva!", que será lançado em 2026. A conferir.

15.11.25

"Os 4 Demônios" – F. W. Murnau (EUA, 1928)

Sinopse:
Quatro órfãos – Charles (Jack Parker/ Charles Morton), Adolf (Philippe de Lacy/ Barry Norton), Marion (Dawn O'Day/ Janet Gaynor) e Louise (Anita Fremault/ Nancy Drexel) - criados por um palhaço idoso (J. Farrell MacDonald), se tornam equilibristas em um circo. Um dia, Charles conhece uma ricaça (Mary Duncan) e se apaixona, deixando Marion enciumada.
Comentário: Friedrich W. Murnau (1888 -1931) foi um dos mais importantes realizadores do cinema mudo, do cinema expressionista alemão e do estilo Kammerspiel. "Nosferatu" (1922), uma adaptação pessoal da novela "Drácula", de Bram Stoker, é o filme mais conhecido da sua obra, juntamente com "A Última Gargalhada" (1924) e "Fausto" (1926). Em 1926, emigrou para Hollywood, onde, antes de morrer prematuramente aos 43 anos, realizaria o aclamado "Aurora" (1927). Assisti dele as obras-primas "Nosferatu" (1922) e "Aurora" (1927), os excelentes “O Castelo Vogelöd” (1921), "A Última Gargalhada" (1924), "Tartufo" (1925), "Fausto" (1926) e "O Pão Nosso de Cada Dia" (1930) e os curiosos “Caminhada Noite Adentro” (1920), “Fantasma” (1922) e "Tabu" (1931). Desta vez vou assistir o que restou do filme "Os 4 Demônios" (1928), um dos mais famosos 'filmes perdidos' de todos os tempos.
Trata-se de um filme de circo ambientado em Paris, que foi a continuação do diretor alemão F. W. Murnau para sua estreia americana, a obra-prima "Aurora" (1927). Até onde sabemos, nem mesmo um minuto do intrigante "Os 4 Demônios" foi visto por muitas décadas - nem a versão muda que estreou em outubro de 1928, nem a versão parcialmente falada com um final diferente que estreou em junho de 1929 filmada depois que Murnau deixou a Fox para o Taiti com Robert Flaherty para fazer "Tabu" (1931).
O filme é considerado perdido – assim como muitos outros desse período – pois usavam filme de nitrato, que é altamente inflamável e se degrada rapidamente. Muitos filmes feitos há um século foram perdidos para sempre devido a técnicas de armazenamento inadequadas em arquivos de estúdio ou incêndios. Somente da filmografia de Murnau, dos 21 filmes que ele rodou, nove estão perdidos:
1919. "O Garoto Vestido de Azul" (Der Knabe in Blau);
1920. "A cabeça de Janus" (Der Januskopf);
1920. "Crepúsculo - Noite - Manhã" (Abend - Nacht - Morgen);
1920. "O Corcunda e a Dançarina" (Der Bucklige und die Tänzerin);
1920. "Satanás" (Satanas) que restou apenas um breve fragmento do filme preservado no arquivo cinematográfico da Cinemateca Francesa;
1921. "Desejo Ardente" (Sehnsucht);
1922. "A Contrabandista" (Marizza) que restaram apenas 13 minutos da duração total de 50 minutos;
1923. "A Expulsão" (Die Austreibung) e 
1928. "Os 4 Demônios" (4 Devils).
No caso de "Os 4 Demônios", o historiador e colecionador de cinema William K. Everson conta que até havia uma cópia em bom estado que a Fox Films emprestou para a atriz Mary Duncan - uma das estrelas do filme. Ela a havia pego emprestada para mostrá-la a um grupo de amigos na Flórida. Como a estrela sabia que se tratava de uma cópia perigosa de nitrato e presumiu que a Fox tivesse outras, o que se diz é que ela simplesmente jogou essa única cópia no oceano.
Frente a isso, o que é possível assistir atualmente é a reconstrução feita pela historiadora de cinema Janet Bergstrom chamada "Murnau's 4 Devils: Traces of a Lost Film" (2003) que se utiliza de fotos, desenhos, esboços, rascunhos de roteiro, plantas arquitetônicas, programas, intertítulos e respostas a questionários de pré-estreia para tentar nos dar uma ideia de como era o filme original cuja trama gira em torno de quatro órfãos – dois irmãos e duas irmãs de pais diferentes - criados por um palhaço idoso, que se tornam equilibristas de sucesso em um circo.
Há também memórias e elementos do famoso trapezista da história do circo Alfredo Codona, que realizou seu perigoso triplo salto mortal como dublê e trabalhou como consultor para Murnau.
Então, embora não possamos ver o filme em si, este ensaio audiovisual apresenta materiais ricos que documentam sua produção e recepção, nos aproximando do mundo do filme e da experiência de Murnau.
O filme originalmente tinha 1h40m de duração e era dividido em duas partes, tendo no elenco da primeira parte: J. Farrell McDonald (o palhaço), Anders Randolf (Cecchi), Jack Parker (Charles), Philippe de Lacy (Adolf), Dawn O'Day (Marion), Anita Fremault (Louise) e no elenco da segunda parte: Janet Gaynor (Marion), Charles Morton (Charles), Nancy Drexel (Louise), Barry Norton (Adolf), Mary Duncan (la Signora). Além de contar com cerca de 1.260 figurantes. 
O que disse a crítica: O site Kinemastik gostou, disseram: "O filme de Bergstrom narra e reconta a fábula do filme e se envolve cada vez mais em seu tom e estilo (presumidos) e, efetivamente borra a linha divisória entre documentário e ficção de forma contida e sensível. Ele quase involuntariamente assume se tornar o material real, mas nunca esquece seu caráter substitutivo".
O que eu achei: O documentário "Murnau’s 4 Devils: Traces of a Lost Film" (2003) dirigido por Janet Bergstrom é uma verdadeira arqueologia cinematográfica - e, justamente por isso, uma oportunidade única de entrever um filme que o tempo apagou quase por completo. “Os 4 Demônios” (1928) de F. W. Murnau sobrevive apenas nos relatos dispersos, em algumas imagens fixas e em documentos de produção raríssimos; é um daqueles casos emblemáticos em que a cinefilia precisa imaginar o que a história não conseguiu preservar. Bergstrom assume esse desafio e constrói um trabalho rigoroso, delicado e estimulante. O filme funciona como uma reconstrução possível do longa perdido. A diretora mobiliza uma impressionante variedade de materiais – fotografias de bastidores, desenhos de cenários, esboços de roteiro, plantas arquitetônicas dos sets, páginas de programa e até intertítulos recuperados – para recompor não apenas a narrativa de "Os 4 Demônios", mas também o clima, a estética e as ambições formais de Murnau nesse projeto. Em vez de tentar “refazer” o filme, Bergstrom opta por um gesto mais honesto e revelador: oferecer ao espectador as pistas, fragmentos e indícios que nos permitem imaginar o que deveria ter sido. A narração é sóbria, informativa, mas sem sufocar o caráter evocativo das imagens. Percebe-se, em cada segmento, o cuidado em contextualizar tanto a carreira de Murnau quanto sua relação com a Fox Film, num momento em que o diretor buscava equilibrar a própria visão artística com as exigências do estúdio. A reconstrução mostra também o quanto "Os 4 Demônios" parecia expandir a preocupação do cineasta com espaços altamente estilizados e com a psicologia intensificada pelos enquadramentos e movimentos de câmera, uma marca já presente em obras anteriores como "A Última Gargalhada" (1924) e "Aurora" (1927). O documentário tem, ainda, o mérito de fazer o espectador pensar sobre a fragilidade do patrimônio cinematográfico. Ao ver os restos materiais do filme, somos lembrados do quanto a história do cinema é feita também de ausências e de como essas ausências moldam nossa compreensão da evolução estética e técnica da arte. "Murnau’s 4 Devils: Traces of a Lost Film" é uma experiência de ressurreição parcial, uma ponte entre o que se perdeu e o que ainda podemos reconstruir com sensibilidade e pesquisa. Para quem se interessa por Murnau, pela história do cinema mudo ou pela preservação cinematográfica, trata-se de uma oportunidade rara - talvez a única - de ter uma ideia concreta do que foi "Os 4 Demônios", um filme que sobrevive, agora, sobretudo na força de suas próprias lacunas.

10.11.25

"Dersu Uzala" – Akira Kurosawa (Japão/URSS, 1975)

Sinopse:
O capitão Vladimir Arseniev (Yuri Solomin) é enviado pelo governo soviético para explorar e reconhecer as montanhas da Mongólia, juntamente com uma pequena tropa. Em meio a expedição eles encontram Dersu Uzala (Maksim Munzuk), um caçador que vive apenas nas florestas. Percebendo que Dersu conhece bastante o local, o que pode facilitar o trabalho, o capitão lhe oferece que acompanhe a tropa até o término da missão. É o início de uma forte amizade entre o capitão e Dersu, que aos poucos demonstra suas habilidades.
Comentário: Akira Kurosawa (1910-1998) foi produtor, montador, escritor e pintor japonês mas se destacou como cineasta e roteirista, um dos mais importantes do Japão. Com uma carreira de cinquenta anos, Kurosawa dirigiu em torno de 30 filmes. É amplamente considerado um dos cineastas mais importantes da história do cinema, o que lhe rendeu um Oscar em 1989 pelo conjunto de sua obra. Assisti dele 7 filmes: a obra-prima "Ran" (1985), o ótimo "Céu e Inferno" (1963), os bons “Os Sete Samurais” (1954) e "Yojimbo: O Guarda-Costas" (1961), o mediano “Viver” (1952) e os curiosos "Sonhos" (1990) e "Madadayo" (1993). Desta vez vou rever "Dersu Uzala" (1975).
Arlindenor Pedro do site Outras Palavras nos conta que "Assistir 'Dersu Uzala' é um exercício de reflexão sobre o instinto de sobrevivência natural do ser humano, na verdadeira acepção da palavra. Creio ser esta a obra mais eloquente que o cineasta japonês Akira Kurosawa produziu a respeito do tema. De forma sutil, ele nos faz pensar em nossos limites, propondo situações em que a natureza nos põe à prova, testando nossa habilidade de sobrevivência em um mundo diferente do nosso, onde pouco importa o que aprendemos anteriormente. Em tais condições, seguir os ensinamentos de quem já tem a experiência da adaptação ao ambiente que nos é inóspito torna-se primordial. Ao superarem obstáculos em conjunto, os personagens constroem uma relação de mútuo respeito, na qual o conhecimento é transmitido de forma natural.
(...) O roteiro baseia-se no diário de viagem do explorador e topógrafo do exército tzarista russo Vladimir Arsemiv. Kurosawa e seu roteirista, o soviético Yuri Nagibin, nos colocam frente à oposição de dois mundos. Um é o do capitão Vladmir Arseniev, homem culto e civilizador, detentor do conhecimento do mundo moderno, onde prevalece a razão – em última instância, o conhecimento explícito. Outro, o do mongol Dersu Uzala, um caçador das estepes siberianas, que detém o conhecimento da vida na natureza, empregando-o não para subjugá-la, mas para sobreviver junto a ela, numa harmonia própria do homem natural. A história desenrola-se numa situação em que a natureza se impõe, de forma que o mais simples prevalece perante o mais complexo – pois suas soluções, baseadas na criatividade (em última instância, o que chamamos de conhecimento tácito) são as mais viáveis para o momento. (...)
Dersu Uzala é um filme do renascimento de Kurosawa, após uma tentativa de suicídio, em 1971. Frustrado com seus filmes anteriores, talvez influenciado pela morte do seu irmão, Heigo – que disparou contra o próprio peito após forte processo de depressão, aos 22 anos – o cineasta cortou-se diversas vezes na garganta e pulsos, passando por um difícil período de recuperação. Sobreviveu e aceitou convite do mais importante estúdio da União Soviética (o Mosfilm) para filmar a história do encontro entre o capitão Arseniev e Dersu Uzala. A obra foi realizada em situações dificílimas, em sets de filmagens no interior da Sibéria, onde foi decisiva a infraestrutura colocada à sua disposição pelo governo soviético. Estava concluída em agosto de 1975. (...)
Durante o desenrolar da história vamos nos apaixonando pelo pequeno mongol, que aos poucos mostra como é realmente. Aparece um homem simples, que vive livre na natureza, com pleno conhecimento do ambiente que o cerca. Mas, ao mesmo tempo, um ser temeroso das forças naturais, que não as compreende plenamente. Trata-se, na forma descritiva do diretor, do eterno embate entre o mito e a ciência, ou da razão esclarecida, já tão bem estudada pelos filósofos.
Dersu movimenta-se de acordo com suas tradições e o conhecimento adquirido em sua vivência diária. Arseniev orienta-se por seus livros e pelo que lhe foi transmitido nos bancos escolares e no exército. Dersu respeita o conhecimento do seu amigo, e o capitão se surpreende ao ver naquele homem atributos de alto valor de dignidade, honradez, solidariedade, coragem e determinação, aliados a sua extrema simplicidade. São qualidades cada vez mais esquecidas no mundo civilizado.
Opera-se então um equilíbrio entre os dois mundos e se abre, numa perspectiva russeauniana, a tensão entre o 'homem natural' e a 'civilização'. Desenvolvido por Jean-Jacques Rousseau, em especial no seu 'Discurso Sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre Homens', mas presente também nas investigações de filósofos pós-modernos, o tema é de enorme atualidade. Contribui com a reflexão dos que procuram libertar o homem contemporâneo das cadeias impostas pelo reino da mercadoria - onde prevalece o desequilíbrio imposto por uma forma de ser se choca com nossa condição de ser integrado na natureza".
"Dersu Uzala" foi o primeiro filme do diretor falado em língua não japonesa (é integralmente falado em russo) . Premiado em diversos festivais, o loga ainda recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1976.
O que disse a crítica 1: Ritter Fan do site Plano Crítico avaliou o filme com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Disse: " A tocante história do experiente caçador do povo Goldi que forma laços de amizade com um capitão do exército russo que está nas inóspitas terras do leste da Rússia em 1902 consegue ficar ainda mais poderosa por ser baseada quase que integralmente em fatos reais. E claro, apesar de já ter sido levada às telas antes pelo cineasta soviético Agasi Babayan, a narrativa se beneficiou muito do estilo Kurosawa de filmar [que se beneficia das] famosas panorâmicas que evocam ainda mais os temas do filme que não só se relacionam com a amizade e a velhice como, também, com a integração com a natureza e com a invasão da chamada 'civilização'. (...) 'Dersu Uzala' é um dos filmes mais bonitos já feitos e mostrou a todos que, mesmo desiludido, traído e desesperançoso, Kurosawa foi um dos maiores diretores que já existiram".
O que disse a crítica 2: Bruno Carmelo do site Papo de Cinema também avaliou com 5 estrelas. Escreveu: "Kurosawa oferece uma dezena de cenas de plasticidade inacreditável, focando-se na pequeneza dos seres humanos diante da natureza. A conversa da dupla diante do Sol e da Lua ao mesmo tempo; o colapso do capitão em plena tempestade de areia, em contraluz, e a correnteza cada vez mais violenta dentro de uma mesma cena de poucos cortes transparecem a admiração e o respeito pela natureza, sem idealizá-la. O discurso jamais soa ingênuo, do tipo que atribui virtudes morais às árvores e animais, porém o diretor estabelece uma noção de espaço onde as regras humanas não valem mais. (...'Dersu Uzala' apresenta a nostalgia de um cinema de aventuras pré-heroísmo, uma narrativa anticolonialista sobre exploradores, e um cinema épico incapaz de sobrepor o homem à natureza".
O que eu achei: “Dersu Uzala” (1975) é uma das mais belas e comoventes obras de Akira Kurosawa, um filme que transcende fronteiras, gêneros e idiomas para se tornar uma profunda meditação sobre a relação entre o homem e a natureza, a amizade e o tempo. Realizado em coprodução entre o Japão e a União Soviética, o longa marca um momento de virada na carreira do diretor japonês: após um período de crise pessoal e profissional, Kurosawa renasce artisticamente com um filme de imensa serenidade e sabedoria. Baseado nos diários reais do explorador russo Vladimir Arseniev, o filme narra o encontro entre o capitão e topógrafo do Exército Imperial e o caçador nômade Dersu Uzala, um homem simples, intuitivo e profundamente conectado à natureza das florestas da Sibéria no início do século XX. O que começa como uma relação de mera utilidade – o guia que conhece o terreno – transforma-se numa amizade de respeito mútuo e admiração, onde Arseniev aprende com Dersu uma filosofia de vida baseada na harmonia com o mundo natural. O personagem-título é interpretado magistralmente por Maksim Munzuk, ator e músico da República da Tuva (então parte da URSS). Munzuk, pouco conhecido fora de seu país antes deste papel, empresta a Dersu uma humanidade tocante e autêntica, sua presença carrega algo de ancestral, como se o próprio espírito da floresta habitasse nele. É notável como seu desempenho se equilibra entre a ternura, a sabedoria e a melancolia, compondo um retrato que raramente o cinema conseguiu captar com tamanha pureza. A cinematografia é outro triunfo. Kurosawa, filmando em 70 mm, transforma a paisagem siberiana em protagonista: a vastidão dos campos, o brilho da neve, o reflexo da luz nas águas dos rios, tudo é captado com rigor pictórico e profundo respeito. O diretor, que sempre teve um olhar épico e humanista, encontra aqui um equilíbrio entre a grandiosidade da natureza e a pequenez do homem diante dela. Além de seu valor artístico, “Dersu Uzala” também preserva a memória de um homem real. Vladimir Arseniev (1872–1930) foi de fato um explorador e geógrafo russo, autor dos relatos que inspiraram o filme. Sua contribuição é considerada tão importante que, em 1952, uma cidade na região do Primorsky Krai, no Extremo Oriente russo, recebeu o nome de Arseniev em sua homenagem. Conta-se que na colina de Uvalnaya há monumentos erguidos à ele e ao seu guia Dersu. Hoje, a cidade é um centro industrial e cultural da região. Em resumo, “Dersu Uzala” é mais do que um encontro entre dois homens, é o encontro entre dois mundos: o da civilização e o da natureza, o do conhecimento técnico e o da sabedoria instintiva. Kurosawa filma essa dualidade sem juízo moral, apenas com compaixão e espanto. O resultado é uma obra-prima de simplicidade e profundidade universal, um testamento à fragilidade e à dignidade do ser humano em meio ao infinito natural. Um filme para ser visto com calma, como se caminhasse pela floresta ao lado de Dersu, ouvindo o vento e aprendendo, por um instante, a ser parte do mundo, não seu dono. Seria um pecado morrer sem ver. Se jogue.

9.11.25

"Casa de Dinamite" - Kathryn Bigelow (EUA, 2025)

Sinopse:
Olivia Walker (Rebecca Ferguson), uma agente que trabalha na Casa Branca, tem sua rotina de trabalho alterada quando aparece, na tela do sistema de radares, um aviso de que um míssil nuclear foi lançado e vai atingir a populosa cidade de Chicago em dezoito minutos. Começa então uma corrida da equipe de segurança para determinar os responsáveis e garantir um ataque eficaz e no mesmo nível.
Comentário: Kathryn Bigelow (1951) é uma cineasta norte-americana que se tornou a primeira mulher a ganhar um Oscar de Melhor Direção por "Guerra ao Terror". Ela foi casada com o diretor, produtor e roteirista canadense James Cameron de 1989 a 1991. Assisti dela os ótimos "Guerra ao Terror" (2008) e "A Hora Mais Escura" (2012) e o bom “Point Break - Caçadores de Emoção” (1991). Desta vez vou conferir "Casa de Dinamite" (2025).
Amanda Capuano da Revista Veja nos conta que "Em um dia de trabalho comum na Casa Branca, a agente Olivia Walker (Rebecca Ferguson) vê o pesadelo de toda a humanidade se materializar na tela do computador: com bipes nervosos e um grande triângulo vermelho em movimento, a máquina avisa, para desespero da equipe de segurança americana, que um míssil nuclear foi lançado e vai atingir a populosa cidade de Chicago em dezoito minutos. É esse o curto intervalo de tempo que os ansiosos agentes têm para agir - e no qual se passa o aflitivo 'Casa de Dinamite' (...).
Dirigido pela oscarizada Kathryn Bigelow, que levou duas estatuetas ao se embrenhar no universo militar em 'Guerra ao Terror' (2008), o longa leva para as telas um tema que já foi assunto cativo de Hollywood, mas que acabou escanteado nos últimos anos: a ameaça iminente de uma guerra nuclear, capaz de exterminar cidades inteiras em segundos - e de extinguir toda a vida na Terra. 'Sinto que normalizamos as armas nucleares, mas elas ainda estão ao nosso redor', contou Bigelow a VEJA, destacando que o longa se tornou ainda mais atual à medida que a produção avançava e as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza ganhavam escala e rumos alarmantes.
A história da criação das primeiras bombas atômicas, lançadas pelos americanos nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki na Segunda Guerra, ganhou um retrato vigoroso em 'Oppenheimer', grande vencedor do Oscar no ano passado. Mas a relação do cinema com o tema da ameaça nuclear começou muito antes. De forma indireta, esse temor foi abordado em filmes sobre monstros produzidos por testes atômicos, como 'O Monstro do Mar' (1953) e 'Godzilla' (1954). Com a intensificação da Guerra Fria e o medo crescente de um conflito nuclear entre Estados Unidos e União Soviética, surgiram tramas como 'O Dia Seguinte', produção de 1983 que chocou ao reproduzir com realismo os efeitos de uma eventual guerra nuclear.
Com a distensão após a queda dos regimes comunistas, na virada dos anos 1990, porém, as ogivas atômicas deram lugar a outro fantasma nas telas: o terrorismo, que passou a assombrar os americanos a partir do 11 de Setembro. 'Desde o fim da Guerra Fria, a ameaça nuclear infelizmente desapareceu da consciência de muitas pessoas', diz Noah Oppenheim, roteirista de 'Casa de Dinamite'.
O motivo de o novo filme provocar uma renovada reflexão sobre o assunto não é otimista: atualmente, nove países possuem bombas atômicas, e o Relógio do Juízo Final - que marca quanto a humanidade está supostamente próxima da própria aniquilação - nunca esteve tão perto da meia-­noite. Pesou bastante nisso, sobretudo, a guerra entre Ucrânia e Rússia, que intensificou o medo de um embate nuclear - embora o lançamento de uma ogiva seja tratado hoje como uma ação praticamente suicida.
É justamente a possibilidade de um ato desmesurado que embala 'Casa de Dinamite' e torna o filme tão aterrorizante. 'Antes havia um mundo polarizado entre Estados Unidos e Rússia. Hoje, as coisas estão ficando exponencialmente mais complicadas', opina Oppenheim. Não à toa, os agentes do longa se veem em posição periclitante: eles não sabem nem quem lançou a ogiva contra os Estados Unidos, alternando palpites entre Rússia, China e Coreia do Norte. Sem certeza da autoria, qualquer decisão fica mais arriscada, pondo todos numa sinuca de bico entre deixar que uma cidade americana seja exterminada sem resposta ou revidar e transformar o conflito em algo ainda mais catastrófico.
O presidente americano no longa, Idris Elba conta que nunca havia parado para pensar que uma única pessoa tem o poder de iniciar uma guerra e destruir a humanidade. 'Falamos sobre guerra nuclear, mas acho que muita gente não entende realmente o que isso significa', diz o ator.
Bem construído e embasado em extensa pesquisa sobre a segurança americana, o longa mostra Kathryn Bigelow em plena posse de sua maior qualidade: a capacidade de nos fazer refletir sobre a insensatez da guerra e a difícil tarefa de remediar uma escalada quando ela já está posta e se revela imprevisível. Mais que nunca, o velho pesadelo nuclear está de volta".
O que disse a crítica 1: Isabel Wittmann do site Feito por Elas avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse: "Apesar do discurso visual cafona e batido, a história que está sendo contada até que tem suas nuances e nesse caso creio que o mérito esteja, mesmo, no roteiro. O próprio título do filme se explica: estamos morando em um planeta cheio de governantes ególatras que controlam arsenais inimagináveis que podem explodir tudo com todo mundo dentro, e como ficamos nessa situação? O fato de segurar respostas sobre como quem soltou a bomba, se foi um treino, se foi intencional ou não e qual a resposta estadunidense sem dúvida complexifica o filme, tornando-o minimamente menos maniqueísta. Mas não esqueçamos a realidade que a ficção esconde: apenas uma nação disparou uma bomba nuclear na história. Isso filme nenhum consegue mudar. E 'Casa de Dinamite' se permite elaborar cenários interessantes mas, em sua própria ficção, acaba por perder o fôlego na execução".
O que disse a crítica 2: Victor Russo do site Filmes e Filmes avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: "O único pecado do longa está justamente naquilo que é uma de suas maiores virtudes. A fragmentação em diversos pontos de vista é interessante, permite que conheçamos um pouquinho dessas pessoas, sejam as que tomam decisões, sejam aquelas que estão relacionadas a essas de alguma forma. Isso faz com que o discurso conflituoso de Bigelow, tão nacionalista como crítico ao posicionamento bélico e a imposição de poder dos americanos e algumas outras potências, se torne um tanto mais intenso, visto que passamos a nos importar e viver junto com aquelas pessoas em posições de poder, ou também das que vão ser afetadas por aquela bomba e nem sabem, como a filha de um, o marido de outro e por aí vai, além, claro, dos que sabem, mas não têm voz para fazer nada. Só que esse pesar se dilui um pouco na última parte, quando o longa se torna um pouco mais literal em sua relação com a realidade, seguindo um personagem de forma mais íntima, ainda gerando ansiedade, mas não tendo a força dos outros dois capítulos pela repetição do que já sabemos e por uma conclusão que evidentemente era menos importante, sendo previsível qual seria a (boa) escolha de Bigelow para encerrar a obra".
O que eu achei: Apertei o play de "Casa de Dinamite" (2025) por conta da direção assinada por Kathryn Bigelow, cineasta que eu já conhecia pelo oscarizado "Guerra ao Terror" (2008) – sobre o esquadrão antibombas do exército americano - e pelo também ótimo "A Hora Mais Escura" (2012) – sobre a busca pelo líder da Al Qaeda, Osama Bin Laden. Neste a guerra também é tema, só que de forma diferente. A trama começa quando as equipes ligadas à segurança nacional dos EUA percebem que um míssil não identificado foi lançado em direção ao país. Cruzando o céu em alta velocidade, eles têm 18 minutos para decidir o que fazer: deixar esse míssil atingir alguma cidade matando milhares de pessoas ou responder à altura, sem saber quem lançou ou mesmo se o lançamento foi ou não proposital. Esses 18 minutos de tomada de decisão são repetidos diversas vezes ao longo da projeção, pois o que Bigelow e seu roteirista Noah Oppenheim fazem é mostrar os vários pontos de vista desse processo: desde os analistas da linha de frente, passando pelos estrategistas especializados e finalizando no presidente da república que, no fim das contas, é quem dará a palavra final. Tudo isso enquanto essas mesmas pessoas vivem suas próprias vidas, com seus próprios dilemas pessoais e familiares e suas próprias emoções. Sem subestimar o público, aqui não há heróis, histórias de redenção, catarses ou grandes desfechos. E isso pode significar uma grande qualidade, além do bom elenco e da trilha sonora incrível. Outro ponto positivo é que Bigelow se cercou de especialistas no assunto para desenvolver o enredo, então o que vemos é muito provavelmente o que de fato aconteceria nos EUA no caso de um ataque como esse. Por outro lado, rever esses 18 minutos várias vezes torna o filme relativamente monótono. Isso - somado aos kilos de siglas e termos técnicos bem específicos a que somos submetidos - fazem a experiência chegar quase a cansar. Entre qualidades e defeitos, temos ao fim um bom filme, que não chega a ser a última bolacha do pacote (dificilmente concorrerá ao Oscar de Melhor Filme), mas que trata de um assunto relevante – e que deveria ser mais discutido – que é a guerra nuclear. Considerando que vivemos hoje em um mundo onde há atualmente mais de 12 mil ogivas nucleares espalhadas por diversos países ficam as perguntas: estamos preparados para um ataque como esse? O que vai acontecer se alguma dessas ogivas for disparada? Será que os temas guerra nuclear e fim da humanidade já são assuntos normalizados? É um filme que, para o bem ou para o mal, te traz uma tomada de consciência, servindo como um alerta urgente sobre a vulnerabilidade global a ataques nucleares e sobre o despreparo humano para lidar com esse tipo de situação. Vale ver.

3.11.25

“Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida” - Nicholas Meyer (EUA, 1991)

Sinopse:
Depois de vários anos em guerra, a Federação e o Império Klingon preparam-se para uma conferência de paz. Mas a perspectiva é alarmante para Kirk (William Shatner). Quando uma nave Klingon é atacada e a Enterprise é acusada, a guerra volta a reacender-se.
Comentário: Nicholas Meyer (1945) é um cineasta, produtor e roteirista norte-americano. Em sua cinematografia constam filmes como “Um Século em 43 Minutos” (1979), “O Dia Seguinte” (1983), “Volunteers” (1985), “The Deceivers” (1988), “Company Business” (1991) e “Vendetta” (1999). Mas ele ficou especialmente famoso por dirigir dois longas derivados do seriado “Star Trek”: o ótimo “Jornada nas Estrelas II: A Ira de Khan” (1982) já visto e comentado anteriormente e “Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida” (1991) que vou conferir agora.
Apenas relembrando a sequência, o primeiro longa foi “Jornada nas Estrelas: O Filme” (1979) com direção de Robert Wise, um filme que se passava 10 anos após o fim do seriado mostrando uma nave Enterprise mais moderna, reunindo quase todo o elenco. Na trama, o Almirante James T. Kirk (William Shatner) – que nesse momento ocupa um cargo interno administrativo – é chamado às pressas devido sua enorme experiência, para regressar à nova e transformada nave Enterprise para interceptar, examinar e, principalmente, deter uma entidade espacial destrutiva que é avistada aproximando-se da Terra.
O segundo longa “Jornada Nas Estrelas II: A Ira de Khan” (1982) com direção de Nicholas Meyer, mostra Kirk (William Shatner) de volta para seu posto administrativo, enquanto Spock (Leonard Nimoy) é quem está comandando a nave, com muita gente nova na tripulação. A nave está em uma missão relacionada ao dispositivo Gênesis, uma nova invenção que é capaz de semear um planeta árido com abundante natureza. Com isso, uma nave irmã chamada Reliant, sai em busca de planetas sem vida para fazer um teste com esse dispositivo e encontra um que parece estar morto, porém, ao chegar lá eles encontram o planeta habitado por um fora da lei chamado Khan (Ricardo Montalban), que foi exilado anos atrás por Kirk, então o que ele mais quer é vingança. Esse assunto é resolvido, mas termina com a morte de Spock, uma solução encontrada justamente para tirar Spock do elenco já que o ator Leonard Nimoy não queria mais participar desses longas.
O terceiro longa foi “Jornada nas Estrelas III: À Procura de Spock” (1984) que possui o próprio Leonard Nimoy na direção. Ele havia pedido para sair, se arrepende, e assume não só a direção do filme como volta a atuar, numa trama na qual o médico da Enterprise dr. McCoy (DeForest Kelley) herdou a essência de Spock (Leonard Nimoy) antes de sua morte e obviamente Kirk (William Shatner) não poupará esforços para atender um pedido do pai de Spock para que a nave localize o corpo dele em Gênesis para que seja possível ressuscitá-lo (sim, é possível, afinal ele é um vulcano). Claro que tudo isso com os aterrorizantes Klingons à espreita, para ter alguma graça. No elenco pode-se ver o ator Christopher Lloyd como Kruge, um comandante Klingon.
Com o personagem Spock de volta é que lançam “Jornada nas Estrelas IV – A Volta para Casa” (1986), novamente com direção do Nimoy. No longa anterior a tripulação da Enterprise teve que deixar a nave Enterprise para poder explodi-la tendo a bordo os Klingons. Com isso, eles acabaram assumindo a nave deles – uma Ave de Rapina Klingon – com a qual eles terão que voltar à Terra para enfrentar a corte marcial devido aos diversos crimes cometidos para salvar a vida de Spock. Porém, enquanto eles se dirigem à Terra, uma sonda alienígena surge causando inúmeros problemas na Terra, ameaçando destruí-la. Percebendo que eles tentam se comunicar com uma espécie extinta há cerca de 200 anos – as baleias jubarte -, o grupo viaja no tempo até o século XX com a intenção de transportar um casal dos animais marinhos até o presente deles (século XXIII) e evitar a destruição. Com a ajuda de uma cientista especializada em baleias, a Dra. Gillian Taylor (personagem interpretada por Catherine Hicks) eles obtém a ajuda necessária para que tudo dê certo. Ao final ocorre o julgamento da tripulação no qual todos são perdoados por conta da façanha mirabolante que fizeram para salvar a Terra.
O quinto longa foi “Jornada nas Estrelas V: A Última Fronteira” (1989), dirigido pelo ator William Shatner que interpreta Kirk na série. Na trama vemos o trio Kirk (William Shatner), Spock (Leonard Nimoy) e McCoy (DeForest Kelley) começando a gozar de umas merecidas férias, mas sendo interrompidos quando são avisados que o vulcano Sybok (interpretado por Laurence Luckinbill) pretende sequestrar a nave Enterprise para ir até o centro da galáxia tentar encontrar uma entidade (interpretada por George Murdock) que ele acredita ser Deus. Sybok, que está num planeta chamado Nimbus III, se associou a três personagens de planetas diferentes – um klingon chamado Korrd, um terráqueo e uma romulana – e, com a ajuda desse trio, ele faz Kirk cair numa arapuca apoderando-se da nave. Juntamente com toda a tripulação da Enterprise ele segue rumo à Sha'ka'ree, no centro da galáxia. Num primeiro momento parece que Deus, de fato, habita o local. Porém, ao se materializar para que eles o vejam, sua personalidade maléfica os faz perceber que ele não é o tal Deus a quem Sybok buscava, finalizando com Sybok morto pela entidade. Kirk, Spock e McCoy voltam para a nave, enfrentam um ataque Klingon, mas acabam salvos por Korrd que intercede a favor deles.
Agora, no sexto e último filme denominado “Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida”, a direção voltou a ficar a cargo de Nicholas Meyer, um cineasta que já havia agradado bastante dirigindo o segundo filme da série. O enredo mostra a tripulação da Enterprise, liderada pelo Capitão Kirk, tentando garantir um acordo de paz entre a Federação e o Império Klingon, que estão em um momento crucial após a queda de sua lua, Praxis. Um atentado contra o chanceler klingon Gorkon (interpretado por David Warner) coloca Kirk e McCoy como suspeitos e inicia uma conspiração que ameaça levar os dois mundos de volta à guerra. A tripulação precisa descobrir a verdade por trás do atentado antes que seja tarde demais.
A trama parece um reflexo da vida real na época do lançamento do filme (1991) ecoando a situação da então União Soviética, que em 1989 já havia sofrido o fim da Cortina de Ferro - com a Queda do Muro de Berlim – mas cuja dissolução final ocorreu justamente em 1991.
No elenco além do David Warner, temos a presença de Christopher Plummer como General Chang, o chefe de estado klingon.
O que disse a crítica 1: Daniel Fontana do site Formiga Elétrica gostou muito. Disse: "A resolução do conflito, com um belo arco dramático de Kirk e o último passeio da Enterprise, são alguns dos momentos mais legais de toda essa trajetória histórica".
O que disse a crítica 2: Ritter Fan do site Plano Crítico avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: "'Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida' é a grande e pomposa despedida que a tripulação original da NCC-1701 merecia no cinema (...). Gene Roddenberry [o criador do seriado], tenho certeza, ficou orgulhoso".
O que eu achei: Muito emocionante o último longa feito após o seriado "Star Trek / Jornada nas Estrelas" (1966-1969) encerrar sua trajetória na televisão. O sexto e último filme "A Terra Desconhecida" (1991), dirigido por Nicholas Meyer, acerta em cheio ao dar um desfecho digno e sensível à tripulação clássica da USS Enterprise. O filme combina aventura espacial, intriga política e um tom de despedida que o torna especialmente tocante para os fãs da saga. Dá um aperto no coração ver os personagens com a idade mais avançada, enfrentando uma nova e última missão com o peso da passagem do tempo. Kirk, Spock, McCoy, Uhura, Sulu (que neste longa possui sua própria nave já que foi promovido ao cargo de capitão da USS Excelsior) - e todos os demais companheiros de jornada - exercem seus papéis com a mesma bravura e humor que marcaram décadas de história da ficção científica. Nicholas Meyer, que já havia dirigido o segundo longa "A Ira de Khan" (1982), demonstra novamente seu talento em equilibrar ação e emoção, fazendo deste último filme uma homenagem calorosa à tripulação original. A bela cena final, com os atores assinando seus nomes na tela, é um gesto simples e comovente de despedida, que sintetiza a importância simbólica desses personagens para toda uma geração. Outro momento de sensibilidade é a dedicatória ao criador da série, Gene Roddenberry, que faleceu em outubro de 1991, apenas dois meses antes do lançamento do longa. O tributo reforça o espírito humanista e visionário que sempre sustentou o universo "Star Trek". Com ritmo, emoção e respeito por sua própria mitologia, "Jornada nas Estrelas VI: A Terra Desconhecida" é uma despedida à altura dos heróis que levaram o público “onde nenhum homem jamais esteve”. Um final grandioso e comovente que, com certeza, Roddenberry aprovaria.

2.11.25

“Canina” - Marielle Heller (EUA, 2024)

Sinopse:
Uma mulher (Amy Adams) interrompe sua carreira após se tornar mãe. Focada agora em cuidar da criança (Arleigh Snowden/Emmett Snowden) em tempo integral, ela assume o papel de dona de casa enquanto seu marido (Scoot McNairy) está sempre ausente por conta de suas longas e frequentes viagens de negócios. Vivendo em uma casa suburbana, o estresse da nova rotina começa a afetar sua sanidade, e ela passa a acreditar que está se transformando em um cachorro.
Comentário: Marielle Heller (1979) é uma diretora, roteirista e atriz americana. Ela dirigiu longas como "O Diário de Uma Adolescente" (2015) e " Um Lindo Dia na Vizinhança" (2019) e trabalhou como atriz na minissérie "O Gambito da Rainha" (2020). Assisti dela o ótimo "Poderia Me Perdoar?" (2018). Desta vez vou conferir "Canina" (2024).
Cláudio Alves da Magazine HD nos diz "Não foram só os animais que a Humanidade domesticou. Também fizemos isso a nós mesmos, confinando um espírito selvagem às demandas da harmonia doméstica. No entanto, dentro de todos, há uma besta à espera de despertar e se fazer ouvir, de rugir. Ou, como no caso de 'Canina', ladrar.
No seu quarto longa-metragem narrativo, a realizadora Marielle Heller propõe-se a considerar questões de maternidade neste paradigma onde o paradigma da domesticidade é uma prisão autoimposta e reforçada por uma sociedade onde a mulher perde o seu individualismo no momento em que se torna mãe.
Tal como no livro homônimo de Rachel Yoder [no qual o filme se baseia], a protagonista de 'Canina' não tem nome em reflexo dessa mesma dinâmica social. Ela é simplesmente a Mãe. Ela é alguém que, em tempos, foi uma artista plástica, mas agora passa os seus dias a cuidar do filho de dois anos. O marido, simplesmente conhecido como Marido, está sempre fora, trabalhando e viajando, ganhando dinheiro para sustentar este suposto idílio suburbano. Neste dever patriarcal, ele tem pouco tempo para ser pai, forçando ainda mais responsabilidade à esposa cuja identidade se deteriora perante esta subjugação ao papel materno.
Há um forte teor de isolamento no dia a dia dela, como se a criança que ela tanto ama fosse uma corrente a prendê-la a uma existência insuficiente. As ambições artísticas foram forçadas a dissipar, o amor-próprio foi apagado, a capacidade para se expressar amordaçada. De fato, em várias ocasiões, Heller deixa-nos ver a fantasia interior da Mãe, onde ela finalmente diz o que lhe vem à cabeça, sem medo de ofender ou quebrar o espírito das outras mães ao seu redor. Há uma raiva latente, um rosnar implícito naquele descontentamento. Há uma ferocidade também. Há algo dentro dela que quer sair, explodir o normal e extravasar os bons costumes.
Dessa interioridade furiosa emerge algo além do real. Certo dia, a Mãe descobre mamilos crescendo ao longo do torso. Depois vêm pelos, uma fome carnívora, alucinações noturnas e uma estranha afinidade para com um grupo de cães sem dono que andam pelas ruas, livres. Apesar de inicialmente descartar estes fenômenos – ora como uma pré-menopausa oras como psicose – a Mãe depressa aceita que está se transformando em cão. Bem, numa cadela, uma cadela da noite que corre sob a luz da lua e assim se libera do cárcere de ser pessoa. Em resumo, temos aqui um retrato simbólico da depressão pós-parto.
Estas descrições podem sugerir um drama psicológico, mas 'Canina' assemelha-se mais a uma comédia negra com veia satírica. Também é uma oportunidade para Heller brincar com gestos próximos ao terror, nomeadamente aquele subgênero que se costuma descrever como 'body horror'."
O que disse a crítica 1: Mattheus Goto da Veja SP avaliou com 2 estrelas, ou seja, fraco. Escreveu: " O longa tropeça no teor fantástico, sem convencer o espectador a se assustar ou se divertir, mas intriga com a reflexão sobre os instintos animalescos dentro de nós".
O que disse a crítica 2: Nathalia Jesus do site Adoro Cinema avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse: "Apesar de suas qualidades inegáveis, 'Canina' pode não ser para todos os gostos. Sua abordagem experimental e a intensidade de sua mensagem podem afastar espectadores que esperam uma comédia leve ou um filme de terror convencional. A natureza imprevisível do roteiro, com mudanças abruptas de tom, cria uma experiência que pode ser tanto fascinante quanto desconcertante. No entanto, para aqueles que buscam algo mais desafiador e subversivo, péssima notícia: o longa-metragem também não acrescenta tanta profundidade em suas discussões".
O que eu achei: Adaptação do livro "Nightbitch" de Rachel Yoder, "Canina" (2024) aborda a maternidade sob um viés inusitado: o de uma mulher que, após o nascimento do primeiro filho, começa a se transformar literalmente em um cão. A metáfora é potente - a animalização como resposta à sobrecarga emocional e física da maternidade -, mas o filme oscila entre o realismo fantástico e o drama social de modo irregular. Amy Adams, no papel principal, é sem dúvida o grande trunfo do longa. Em meio a uma carreira marcada por papéis de qualidade desigual, ela encontra aqui um personagem à altura de seu talento, expressando com intensidade o cansaço, a frustração e a ambiguidade da maternidade moderna. Sua atuação lhe valeu uma merecida indicação ao Globo de Ouro e é ela quem mantém o filme vivo mesmo quando o roteiro se torna excessivamente explicativo. Marielle Heller, de quem já assisti o ótimo "Poderia Me Perdoar?" (2018), constrói em "Canina" uma reflexão sobre as expectativas sociais impostas às mulheres: a idealização da mãe perfeita, o confinamento doméstico, o esvaziamento da identidade pessoal. O filme acerta ao revelar o lado selvagem e instintivo que a cultura tenta domesticar, mas peca ao tentar racionalizar demais esse processo, como se precisasse justificar o fantástico com um manual biológico sobre hormônios, gravidez e amamentação. Apesar dessas fragilidades, há no filme um toque de humanismo que o redime, conseguindo dar voz ao caos interior de sua protagonista e traduzir o conflito entre o corpo e a norma social. O desfecho - que dizem ser muito diferente da abordagem do livro – é tão simples e conciliador que acaba enfraquecendo a força simbólica da narrativa, meio que se perdendo entre a fábula e a tese. De qualquer forma é um filme curioso que acaba valendo pelo inusitado e pela sensibilidade com que aborda a maternidade contemporânea.

1.11.25

"Valsa com Bashir" - Ari Folman (Israel/França/Alemanha, 2008)

Sinopse:
Em um bar, um amigo conta ao diretor Ari Folman sobre um sonho constante que tem, no qual é perseguido por 26 cães ferozes. Através da conversa eles concluem que a imagem tem ligação com sua missão na Primeira Guerra do Líbano, no início dos anos 80, quando Folman defendia o exército de Israel. Por não se lembrar de quase nada do evento, ele passa a buscar e entrevistar seus velhos companheiros da época.
Comentário: Baseado na HQ homônima de Ari Folman e David Polonsky, a animação conta, no formato de documentário animado, as tentativas do diretor Ari Folman, um veterano da Guerra do Líbano de 1982, de recuperar as suas memórias perdidas dos eventos que marcaram o massacre de Sabra e Shatila, cidades que ficam a oeste de Beirute, no Líbano.
A resenha da HQ nos diz que "Certa noite em Beirute, no ano de 1982, em plena Guerra do Líbano, enquanto soldados israelenses patrulhavam a cidade, membros da milícia cristã invadiram os campos de refugiados de Sabra e Chatila e iniciaram o massacre de centenas, senão milhares, de palestinos.
Ari Folman era um desses soldados israelenses, mas por mais de vinte anos não conseguiu lembrar nada daquela noite nem das semanas que a antecederam. Até o pesadelo de um amigo perturbá-lo e engendrar nele a necessidade de escavar a verdade e responder à questão crucial: o que ele estava fazendo nas horas da carnificina?
Desafiando a amnésia coletiva de amigos e colegas do exército, Folman remonta, pedaço por pedaço, cândida e dolorosamente, a história da guerra e seu lugar nela. Aos poucos o vazio na sua mente é preenchido por cenas de combate e patrulha, miséria e carnificina, bem como por sonhos e alucinações.
Soldados são perseguidos por pesadelos e inexplicáveis flashbacks – cães ferozes e ameaçadores com dentes arreganhados e olhos que lançam faíscas; a imagem recorrente de três rapazes saindo nus do mar para vagar até o campo de batalha em Beirute. Tanques esmagam carros e prédios com indiferença letal; franco-atiradores liquidam homens montados em jumentos, dentro de carros, bebendo café; um soldado dança em meio a uma chuva de balas; o som de um rock enche o ar, e, então, os sinalizadores amarelos.
As lembranças se acumulam até que Ari Folman alcança Sabra e Chatila e sua investigação chega ao terrível fim. O resultado é uma reconstrução absorvente, uma minuciosa investigação sobre a inconfiável natureza da memória e, sobretudo, uma poderosa denúncia da estupidez das guerras".
Lançado em 2008 durante o Festival de Cannes, a animação foi indicada ao BAFTA e ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, além ganhar um Globo de Ouro na mesma categoria.
O que disse a crítica 1: Paulo Camargo da Revista Escotilha gostou. Disse: "O cineasta Ari Folman teve muita coragem ao escolher para o seu terceiro longa-metragem, a animação 'Valsa com Bashir' (2008), um tema tão pessoal: a Guerra do Líbano de 1982. Ex-soldado do Exército israelense, o diretor foi instigado a desenterrar suas memórias do sangrento embate por um companheiro de tropa que o procurou para uma conversa, em 2006. (...) Corajoso, Folman demonstra lucidez ao igualar o massacre dos palestinos ao de seu próprio povo, descrevendo e mostrando o ocorrido, que pode ter deixado cerca de 3,5 mil mortos. Fez um filme importantíssimo".
O que disse a crítica 2: Tom Ze do site Cineset também gostou. Escreveu: Tenho "dois comentários a serem feitos: o primeiro, quanto ao impacto que as cenas reais do massacre colocadas ao final de Valsa com Bashir exercem sobre os espectadores. Por mais cruéis e ‘realistas’ que possam ser as imagens animadas, elas não são potencialmente superiores em dramaticidade e ‘chamada à realidade’ do que aquelas poucas imagens reais nos últimos segundos do filme que nos são apresentadas, por mais que sejam conhecidas pela ampla divulgação do massacre. (...) O outro comentário diz respeito à postura política de Israel no conflito: no filme parece que a ação do exército israelense só ocorreu para conter os 'excessos' praticados por membros da Falange libanesa (milícia da extrema direita cristã) nos campos de refugiados civis palestinos de Sabra e Chatila após a morte do presidente Bashir Gemayel. No entanto, sabe-se – e os comentários anexos ao DVD do filme sugerem – que o exército de Israel, sob o comando de Ariel Sharon, tinha pleno conhecimento do que ocorreria naqueles campos e ajudou estrategicamente a construir o massacre. Se Ari Folman parecia esquecido disto, ele teve a ousadia e a superioridade em contribuir, à sua maneira, para a recuperação da memória histórica a partir da recomposição de sua própria participação com um filme inteligente, revelador e humanístico".
O que eu achei: Trata-se de uma animação baseada na HQ homônima de Ari Folman e David Polonsky sobre a Guerra do Líbano ocorrida nos anos 80, na qual Folman esteve presente como soldado do exército israelense. Por não se lembrar de quase nada do que ocorreu em Beirute, Folman recorreu a seus ex-companheiros como forma de, aos poucos, reconstituir suas lembranças como quem monta um quebra-cabeças. Esse processo de procura pelos seus companheiros da época, que ocorreu na vida real, é o seu mote central, então o longa acaba sendo informativo do ponto de vista histórico. Por outro lado, ele trata também de memória, já que esse esquecimento por parte do diretor se transforma numa espécie de processo psicanalítico com ele percebendo que as diversas lacunas que haviam em sua mente acabavam sendo preenchidas por memórias criadas ou reinterpretações dos fatos, que pouca ou nenhuma relação tinham com a realidade. Apesar da animação ser de 2008 é aterrador ver o massacre ocorrido na época nos campos de refugiados civis palestinos de Sabra e Chatila após a morte do presidente Bashir Gemayel (daí o título 'Valsa com Bashir'). Passaram-se 17 anos desde então e basta a gente abrir os jornais para ver esses mesmos palestinos hoje vivendo uma situação de massacre por Israel. Ou seja, essa perseguição e desejo pelos seus territórios já vem de longa data. Apesar do longa ser um pouco arrastado, não deixa de ser curioso ver um soldado israelense tendo a coragem e a superioridade em contribuir, à sua maneira, para a recuperação da memória histórica. Há uma passagem final que ele teve a dignidade de substituir os desenhos – maravilhosos por sinal – por filmagens reais de inúmeros palestinos tentando voltar para suas casas e se deparando com escombros e gente morta. Essas imagens são muito potentes e organizam uma espécie de 'mea culpa' por parte desse soldado que, anos depois, caiu na real do que, de fato, representava essa guerra. É uma animação indicada obviamente para adultos e que lembra em alguns aspectos a também autobiográfica "Persépolis" (2007) da quadrinista e cineasta iraniana Marjane Satrapi.

31.10.25

“O Método Kominsky” - Chuck Lorre (EUA, 2018-2021)

Sinopse:
Sandy Kominsky (Michael Douglas) é um ator que, por muitos anos, tentou alcançar a fama em Hollywood, mas teve apenas um breve momento de sucesso. Ele agora se dedica a treinar artistas iniciantes, desenvolvendo e aplicando uma metodologia própria. Para isso, a ex-estrela conta com o apoio de Norman Newlander (Alan Arkin), seu agente de longa data e melhor amigo.
Comentário: Trata-se de uma série americana com 22 episódios subdivididos em 3 temporadas. O criador é o escritor, diretor, produtor e compositor americano Chuck Lorre (1952) responsável por seriados como "Dois Homens e Meio" (Two and a Half Men), "Big Bang: A Teoria" (The Big Bang Theory) e "Jovem Sheldon" (Young Sheldon) dentre outros.
Isabela Boscov da Revista Veja nos conta que "Sandy Kominsky (Michael Douglas) ainda tem uma vaga pretensão a tigrão, mas a próstata já não ajuda: a cada cinco minutos ele tem que ir ao banheiro e esperar que duas ou três gotinhas se dignem a sair. Num bar cheio de gente mais jovem, ele perde a paciência; os jorros que os rapazes produzem ao seu lado lhe parecem uma provocação pessoal. É hora de ter um urologista só seu. Ou ao menos um urologista emprestado por seu agente e melhor amigo/inimigo, Norman (Alan Arkin), mais velho, mais regrado, mas ainda mais infeliz que Sandy.
Norman acabou de perder a mulher com quem foi casado a vida inteira e, de tão sem saber o que fazer, continua conversando com ela normalmente, embora saiba que isso é doidice. Conversa, por exemplo, sobre que atitude tomar em relação a Phoebe (Lisa Edelstein), a filha já cinquentona mas ainda sem pé nem cabeça, frequentadora habitual – e fracassada – de rehabs [programas de reabilitação para drogados]. Ou sobre se deve ou não emprestar uma bolada a Sandy para que ele possa quitar sua dívida com o fisco (desde que seu contador morreu, Sandy não declara imposto de renda) e evitar assim a perda do estúdio em que ensina arte dramática a jovens esperançosos em Hollywood – e principalmente evitar que Mindy (Sarah Baker), a filha de Sandy, tão dedicada e sofredora, se arruíne junto com ele.
Envelhecer não é fácil. Não só os problemas da juventude e da meia-idade se arrastam e até se agravam, como novos e humilhantes problemas vêm fazer companhia a eles.
(...) Repleta de humor e, às vezes, de tristeza, 'O Método Kominsky', da Netflix, ao mesmo tempo prova e nega a sua tese. Prova porque Douglas, com 74 anos, e Arkin, com 84, não estão falando de velhice, doença e perda de orelhada, mas sim com conhecimento de causa – e porque, convenhamos, não há muita dificuldade em demonstrar que essa história de 'melhor idade' é conversa para boi dormir. A melhor idade, argumentam Douglas, Arkin e o criador da série, Chuck Lorre, é aquela em que não se é lembrado da própria mortalidade várias vezes ao dia. Por outro lado, 'O Método Kominsky' parcialmente desmente a sua tese dando papéis tão ricos a dois atores vastamente vividos, experientes e talentosos, mas já numa fase da carreira em que é raro ser protagonista.
Chuck Lorre (...) em geral é adepto de um humor mais direto que o de 'O Método Kominsky'. Mas, aos 66 anos, também ele já dobrou mais uma curva e pensou em mais duas ou três coisas a respeito da vida – manifestas, por exemplo, no senso de absurdo mas também respeito que marcam até personagens secundários como o antiquíssimo garçom que arrasta os pés no restaurante que Norman e Sandy frequentam. Ou no cansaço ainda terno com que Sandy enfrenta as classes lotadas de jovens que ainda creem, como ele próprio acreditou um dia, que vão fazer e acontecer.
Lorre, porém, marca mais um ponto ao não se apoiar demais na obsessão de Hollywood com a juventude. Até no título dos episódios, formulados à maneira das marcações de cena dadas para um ator num ensaio ou numa aula – 'Um Ator Desconversa', 'Uma Viúva se Aproxima' –, ele rumina aqui sobre um aspecto bem mais interessante da trajetória de seus protagonistas, ou de qualquer um que se veja no mesmo estirão que eles: no momento em que se desiste de participar do drama cotidiano, aí que se perdeu não só a batalha como a própria guerra".
Apesar do personagem Norman (Alan Arkin) ter sido desenvolvido para seguir até o fim, a terceira temporada acabou sendo rodada sem o ator. Patrícia Kogut do site O Globo nos conta que "por razões alheias à pandemia de covid (o anúncio foi feito antes dela), ele decidiu deixar o projeto. Não precisa ser o espectador mais desconfiado do mundo para imaginar que a série tinha sofrido um baque irrecuperável". Entretanto, ela diz "que os roteiristas deram uma rasteira nesse vácuo tão radical. E [que a terceira temporada] merece toda a sua atenção.
De muitas maneiras, Norman seguiu na trama. É uma presença incorpórea, mas forte. O personagem faleceu, mas até isso está em sintonia com a história. Afinal, 'O Método Kominsky' trata - sem meias palavras - dos aspectos menos dignos, digamos, do envelhecimento. E fala da morte. Enfrenta sem aliviar assuntos tabu, como algumas doenças. Faz isso com um certo humor judaico, mordaz e muitas vezes autodepreciativo. É comédia leve, mas nem tanto. Verdades são ditas. Seus heróis dignificam a decrepitude ao debochar dela".
Em nota: Alan Arkin faleceu na vida real. Ele deixou a série em 2021, mas acabou morrendo de ataque cardíaco em 2023 aos 89 anos.
O que eu achei: Apesar do tema do seriado ser a terceira idade, tratando de assuntos como viuvez, problemas de saúde e morte, a abordagem consegue ser leve e engraçada. Nos papéis principais estão os atores Michael Douglas, nascido em 1944 (quando o seriado começou ele estava com 74 anos) e Alan Arkin, nascido em 1934 (quando o seriado começou ele estava com 84 anos). Michael Douglas interpreta Sandy Kominsky, um ator que, por muitos anos, tentou alcançar a fama em Hollywood, mas teve apenas um breve momento de sucesso. Ele monta uma escola e se dedica a treinar artistas iniciantes, desenvolvendo e aplicando uma metodologia própria (o tal método Kominsky). Ele já se casou três vezes e tem uma filha que o ajuda a administrar a escola. Alan Arkin interpreta Norman Newlander, seu agente de longa data e melhor amigo. Ele acabou de perder a esposa, precisa se adaptar à vida de viúvo, ao mesmo tempo que precisa cuidar da filha viciada e ajudá-la a abandonar as drogas. A dupla possui uma química excelente. Alan Arkin tem aquele humor refinado enquanto Michael Douglas mostra a maturidade de um bom ator. Os diálogos entre os dois são impagáveis. Uma pena que Alan Arkin não prosseguiu na terceira e última temporada que foi ao ar em 2021. Dizem que ele pediu para sair antes da pandemia de covid começar, muito provavelmente por conta da idade e da saúde, já que, em 2023 ele veio a falecer de ataque cardíaco. Claro que sua saída fez total diferença no tom do seriado. Chuck Lorre, criador da série, teve que se virar nos 30 para dar um fim digno aos personagens, incrementando o elenco com nomes como Kathleen Turner (que já foi par romântico do Michael Douglas em diversos longas), Morgan Freeman e Haley Joel Osment (o garoto do filme "O Sexto Sentido"). Vai agradar especialmente quem já estiver na terceira idade, mas é também uma boa opção para quem estiver procurando um seriado rápido (são 22 episódios com menos de 30 minutos cada um), emocionante, engraçado e finalizado.  Boa pedida.

27.10.25

“São Paulo, Sociedade Anônima” - Luiz Sérgio Person (Brasil, 1965)

Sinopse:
Carlos (Walmor Chagas) trabalha  no controle de qualidade da indústria automobilística. Ao ser demitido, ele vira gerente de uma fábrica de autopeças dirigida por um empresário pouco honesto (Otelo Zeloni). Sua vida amorosa se divide entre três mulheres: uma moça burguesa e ambiciosa com quem se casa (Eva Wilma), outra disposta a se entregar para subir na vida (Darlene Glória) e uma intelectual depressiva,  amarga e existencialista (Ana Esmeralda). Progressivamente ele vai se angustiando com os rumos de sua vida.
Comentário: Luiz Sérgio Person (1936 –1976) é um diretor de cinema e teatro, roteirista, produtor e ator brasileiro, que morreu prematuramente num acidente de carro. Sua obra possui diversas facetas, destacando-se a abordagem sociológica e a artística. Ele é pai da jornalista Marina Person. Na sua filmografia constam filmes como “O Caso dos Irmãos Naves” (1967), “Panca de Valente” (1968), “Cassy Jones, o Magnífico Sedutor” (1972) e o documentário “Vicente do Rego Monteiro” (1974). “São Paulo, Sociedade Anônima” (1965) é o primeiro filme que vejo dele.
João Mauro Cursi do site Revista Nostalgia nos conta que “’São Paulo, Sociedade Anônima’ (1965), (...) é um filme que se localiza historicamente numa situação muito peculiar do cinema brasileiro. Lançado em 1965, o longa não compõe exatamente nem a constelação de obras do Cinema Novo, nem do Cinema Marginal, movimentos brasileiros que caracterizam o nosso cinema moderno. Mesmo assim, o modernismo se exibe formalmente, com a câmera na rua e um pequeno grau de experimentalismo na montagem, e tematicamente, em uma autocrítica da classe média da época. Além disso, se os filmes do Cinema Marginal, ou mesmo ‘Terra em Transe’ (1967, Glauber Rocha) avançam na exposição das questões sociopolíticas do período, Luíz Sérgio Person as concentra psicologicamente na figura de Carlos (Walmor Chagas), protagonista de ‘São Paulo, Sociedade Anônima’.
Em meados dos anos 60, o mundo conhecia as ruas de Paris através dos filmes de Godard, Truffaut, Varda e companhia. A liberdade que o cinema moderno descobria, filmando nas ruas e gravando som direto, se traduzia nos personagens da Nouvelle Vague que caminhavam livres pela Champs-Élysées. O Brasil, no entanto, não tem Paris, nossa metrópole é São Paulo e, em 1965, é uma São Paulo cuja sensação de liberdade é sufocada pelo trânsito e pelo governo militar recém instaurado. Ao caminhar pelas ruas cheias da metrópole brasileira, a liberdade dá lugar à claustrofobia, que sufoca com ajuda da fumaça dos automóveis. Em um claro aceno a Eisenstein, Person intercala planos de engrenagens aos planos das caminhadas de Carlos, expressando a dura forma com a qual o personagem se relaciona com o ambiente da metrópole e com os transeuntes.
É curioso como, apesar disso, a cidade ainda parece exercer alguma atração sobre Carlos. Na verdade, o filme atinge uma certa indiferença entre as cenas que expõem o sofrimento e alegria do protagonista. A montagem evita uma construção dramática enquanto a não-linearidade narrativa iguala a dramaticidade dos planos e cenas, de forma que não há privilégio concedido para as cenas individualmente. Vemos a morte de Hilda (Ana Esmeralda), ex-amante de Carlos, na parte inicial do filme, sem nem sabermos quem ela é. Esse deslocamento narrativo da sua morte limita o envolvimento emocional, é mais uma cena colocada ao lado de muitas outras, cuja importância não é comunicada ao espectador. Por outro lado, vemos Carlos correndo na praia e cantando no carro em família - cenas em que ele parece genuinamente feliz, mas neutralizadas da mesma forma pela montagem.
O ápice dessa desdramatização através da montagem é o casamento entre Carlos e Luciana (Eva Wilma), sendo quase todo elipsado e só o vemos representado em tela por fotos. Se a não-linearidade narrativa torna os planos indiferentes através da montagem, a substituição de planos por fotos elimina ainda mais a ação do filme e constitui uma rejeição ainda mais radical do drama, que no cinema é construído sobretudo por meio do movimento das imagens. Essa escolha estilística opera em contraste com a representação visual das ruas de São Paulo, cujo problema é movimento demais, mas atinge um resultado expressivo semelhante: pelo excesso ou pela ausência, o movimento da vida de Carlos se revela angustiante. Essa angústia, contudo, não é caracterizada por uma potente emoção romântica, mas pela indiferença emocional do protagonista.
Carlos é, portanto, avatar de contradição - contradição psicológica e contradição de classe. Se o personagem sofre com a imagem do maquinário que opera, também explora trabalhadores quando lhe convém. É importante lembrar que o cinema brasileiro dos anos 60 é realizado sobretudo por cineastas de classe média, que após um momento inicial do Cinema Novo, empreendem uma fase autocrítica do movimento em que a contradição entre a realidade e a ideologia da classe média são tema central. ‘São Paulo, Sociedade Anônima’ se insere nesse contexto, apesar da estética que se aproxima do vindouro Cinema Marginal e do deslocamento geográfico do Rio para SP. Desse cenário de contradição, o final não deixa dúvidas: na tentativa repentina de fugir, a carona que Carlos pega o leva de volta à Metrópole - todos os caminhos levam a São Paulo. Por meio da indiferença provocada pela montagem não-linear e pela liberdade que se faz ausente das ruas de São Paulo, Person entrega uma obra onde a vida da metrópole paulistana é levada à exaustão pelo seu movimento incessante, do qual não há fuga”.
O que disse a crítica 1: Gabriel Carvalho do site Plano Crítico avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: “Na área das interpretações o longa-metragem dá algumas derrapadas. (...) O argumento envolvendo a figura da intelectual Hilda (Ana Esmeralda) traz a depressão e a loucura próximas à busca da identificação com o abstrato, com a arte, sem, de fato, encontrar-se para si mesma justificativas diante de tantas problemáticas. Já Walmor Chagas consegue sair um pouco dessa fragilidade na direção de atores, transmitindo muito bem seus pesares, suas alegrias – poucas a serem mencionadas – e seus desvios morais. Contudo, mesmo que não esteja quebrando a quarta parede, como faz com certa inconstância, o espírito do voice-over acaba misturando-se com os diálogos de fato, revelando uma poesia expositiva de pensamentos. Uma bela poesia, entretanto”.
O que disse a crítica 2: Renato Silveira do site Cinematório avaliou o filme com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “Meu professor de sociologia (...) na faculdade me disse certa vez que um dos grandes perigos que o indivíduo da sociedade urbana e consumista corre é confundir ‘utilidade’ com ‘felicidade’. É um pensamento que não se aplica apenas aos tempos de hoje, quando ele se encontra intensificado. Vem de longa data e ‘São Paulo, Sociedade Anônima’ o reflete bastante. O valor do filme é ainda maior quando pensamos que, numa época em que a principal preocupação era o desenvolvimentismo, Person virou sua câmera para o homem e viu que dentro dele havia uma revolução contida, suprimida por um maquinário impessoal que o enxergava como mera peça para seu funcionamento”.
O que eu achei: “São Paulo, Sociedade Anônima” (1965) é minha primeira experiência com um filme do Luiz Sérgio Person. O longa tece um retrato sombrio e preciso da transformação urbana e humana em São Paulo durante o boom industrial da era JK. O protagonista, Carlos (interpretado pelo Walmor Chagas), é um homem que tem a sorte - ou o azar - de viver o período do crescimento automobilístico que se deu entre o final dos anos 1950 e começo dos 60 e sua decadência pessoal é mostrada nesse contexto, com a modernização do país servindo de pano de fundo. Perdido entre o tédio e a angústia, Carlos atormenta e é atormentado: pela esposa, pelas ex-namoradas, pelo cúmplice no trabalho. Sua vida se desenrola em torno de uma estrutura essencialmente egoísta, um circuito fechado em que o massacre cotidiano é retribuído com mais massacre. O personagem é o produto e, ao mesmo tempo, a vítima de um sistema que devora tudo: a cidade, o tempo, os afetos. O que mais me chamou a atenção, entretanto, é que tecnicamente, o filme é impecável. A narrativa entrecortada e a montagem criativa reforçam o descompasso interno do protagonista. Person usa a câmera com domínio e precisão, enquanto a trilha sonora, cuidadosamente construída, intensifica a sensação de aprisionamento e desorientação. Outro ponto forte do filme é que ele funciona como registro histórico de uma São Paulo dos anos 60, ainda relativamente tranquila para os padrões atuais, mas já prenhe do caos e da devoração que a caracterizariam nas décadas seguintes, capturando o espírito da cidade, esse organismo vivo, caótico e impiedoso, que oferece oportunidades e consome seus habitantes no mesmo movimento, resultando num retrato cruel, mas lúcido, do preço humano da industrialização e da mecanização das relações sociais. Um bom filme que com certeza vale ser visto.

26.10.25

"A Colheita" - Athina Rachel Tsangari (Reino Unido/Alemanha/EUA/França/Grécia, 2024)

Sinopse:
Idade Média. Em uma remota vila na fronteira entre a Escócia e a Inglaterra, Walter Thirsk (Caleb Landry Jones) testemunha o colapso de sua comunidade quando a chegada de um cartógrafo sinaliza planos para transformar as terras comunais de agricultura em pastagens privadas para ovelhas. Durante uma semana caótica as antigas estruturas sociais irão desmoronar para dar lugar à modernidade.
Comentário: Athina Rachel Tsangari (1966) é uma cineasta grega da chamada Estranha Onda Grega (Greek Weird Wave), caracterizada por uma leva de filmes realizados no contexto da crise econômica grega e marcados por humor ácido e protagonistas excêntricos. Ela desenvolveu sua carreira entre a Grécia - onde abriu sua produtora - e os EUA - onde estudou e agora leciona cinema. Seu primeiro longa-metragem foi "The Slow Business of Going" (2000), depois vieram "Chevalier" (2015) e a minissérie britânica "Trigonometry" (2020). "A Colheita" é o primeiro filme que vejo dela.
José Vieira Mendes do site Cinema Metrópolis nos conta que "Athina Rachel Tsangari regressa à grande tela com 'Colheita' e, aviso já, não é um filme para estômagos frágeis nem para fãs de cinema ‘quentinho’ que acaba bem. É um faroeste pastoral niilista [doutrina filosófica que indica pessimismo e ceticismo extremos], tão estranho que faz os filmes do Lanthimos parecerem matinés familiares.
Baseado no romance de Jim Crace, o filme acompanha, em sete dias, a lenta e dolorosa destruição de uma aldeia isolada, sem explosões, sem reviravoltas dignas de um thriller, mas com acusações de bruxaria, disputas de terra e uma sensação constante de que ninguém vai sair dali inteiro.
Logo na abertura, Tsangari avisa ao que vem: uma mão ergue-se do trigo como quem pede socorro. Línguas lambem pedras (porque copos são para fracos). Caleb Landry Jones desfila uma capa azul que parece cosplay de samurai renascentista, tudo ao som de rock progressivo romeno. É o tipo de cinema que tanto pode provocar fascínio místico como um ataque de riso nervoso.
O elenco mistura habitantes locais da Escócia com nomes conhecidos: Harry Melling, por exemplo, que já não é o simpático primo do Harry Potter, mas sim alguém que parece pronto para cometer um crime a cada plano. Caleb Landry Jones encarna um protagonista trágico, frágil, que nos apetece abraçar… e empurrar dali para fora antes que seja tarde demais.
A fotografia é de tal forma cuidada que a lama brilha como pintura a óleo e o trigo ganha um erotismo esquisito. Comparações com 'Midsommar - O Mal Não Espera a Noite', de Ari Aster, são inevitáveis, mas aqui não há florzinhas nem festivais de coroa na cabeça: há lama, suor, vento e uma paisagem tão bonita quanto ameaçadora. É folk horror na versão punk, sem filtro, sem verniz e com cheiro de terra molhada.
O design sonoro, assinado por Nicolas Becker ('O Som do Silêncio'), transforma cada grão de terra e cada sopro de vento numa experiência física, quase tátil.
E, como não podia deixar de ser, há a política. Tsangari não poupa recados: o cinema grego está a definhar, sem apoio estatal, sobrevivendo graças a produtores resilientes como Christos V. Konstantakopoulos. Enquanto Hollywood despeja milhões para filmar explosões turísticas, as histórias sobre comunidades reais, filmadas na lama, lutam para existir".
O que disse a crítica 1: Pedro Bradshaw do site The Guardian avaliou com 1 estrela, ou seja, ruim. Escreveu: "Trata-se de um cansativo filme folk sem terror, ambientado em uma vila medieval pitorescamente imaginada na fronteira entre a Escócia e Mummerset, com muitas cenas de paisagens na hora dourada e closes oníricos de insetos: um pastiche bucólico sem lugar com atividades de efeito rural. (...) O ritmo lento e invariável e as atuações sem direção e sem potência tornam esta experiência exasperante: um filme superficial e sem direção, que parece desconcertantemente pouco convincente e inautêntico a cada momento. Mesmo quando a história se desenvolve em um confronto melodramático, uma exibição hedionda de patriarcado, crueldade e violência sexual, todos parecem entediados e meio adormecidos, e Tsangari não consegue dar vida a essa peculiar obra-prima [o livro homônimo de Jim Grace no qual o filme se baseia]".
O que disse a crítica 2: Luiz Santiago do site Plano Crítico avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: "'A Colheita' versa sobre mudanças forçadas. Seu enredo é amparado por um fato histórico (privatização de terras comunitárias), num contexto de relação entre donos de latifúndios e pequenos produtores ou simples camponeses que, até hoje, vemos existir na maior parte dos países. A relação dos indivíduos com a terra, de maneira prática ou mesmo espiritual, também se insere no filme, e toda a base cultural é igualmente posta na mira dessa mudança repentina, a começar pela adequação secular de Mestre Kent, deixando suas vestes (do tipo túnica) para adotar a camisa e a calça com babados, como mandava a ordem masculina. Os cânticos, as danças, as máscaras, os saberes e a forma de viver e conviver dos camponeses perdem significado com a chegada do primo empreendedor, o proclamado 'herdeiro legítimo' daquelas terras. A colheita, aqui, transforma-se na despedida de uma Era e início de uma nova fase que nunca mais seria barrada".
O que eu achei: "A Colheita" (2024), novo longa da diretora grega Athina Rachel Tsangari, começa prometendo muito mais do que entrega. Ambientado em uma comunidade situada na fronteira entre a Escócia e o fictício condado de Mummerset (na Inglaterra), o filme apresenta um grupo de habitantes que vive em harmonia com a natureza: cultivando, colhendo e criando ovelhas em um equilíbrio quase idílico. Essa paz, porém, se desfaz quando o primo da esposa do mestre Charles Kent (Harry Melling), líder viúvo da comunidade, envia um cartógrafo para mapear as terras, reivindicando-as como herdeiro legítimo. A partir desse momento, tudo muda: o uso coletivo é substituído pela propriedade privada, e os moradores se veem obrigados a abandonar o lugar que antes era de todos. A proposta é, sem dúvida, interessante. Tsangari pretende representar a transição histórica das terras de uso comum para o regime de propriedade privada na Irlanda e na Inglaterra, um tema com relevância social e histórica, que poderia render um grande filme. No entanto, apesar da boa fotografia em 16mm, que confere tons suaves e belas texturas às imagens, e do bom elenco, o roteiro não sustenta o impacto que o tema exige. O ritmo é lento e arrastado, e há uma sensação de que todos os personagens estão entediados dentro do próprio filme. Mesmo as qualidades técnicas - os enquadramentos precisos, o som hiper-realista e o uso interessante da película analógica - acabam desperdiçadas diante de um roteiro frágil, com diálogos escassos e por vezes desconexos. Falta profundidade, faltam conflitos verdadeiros, falta vida. O resultado é um filme admirável apenas do ponto de vista estético, mas vazio de emoção e densidade. "A Colheita" tenta capturar um momento de transformação histórica, mas termina presa à própria formalidade resultando numa colheita magra onde as próprias ideias expostas não florescem. Se mesmo assim for ver, atenção à personagem chamada Senhora Balden que eventualmente solta uma ou outra frase em português no filme. Ela é interpretada pela atriz britânica (que também é cineasta e dramaturga), com ascendência brasileira, Thalissa Teixeira.