30.9.25

"Twin Peaks" - Mark Frost & David Lynch (EUA, 1990-2017)

Sinopse:
A misteriosa morte de Laura Palmer (Sheryl Lee) na pacata cidade de Twin Peaks dá início a uma série de mistérios a serem desvendados pelo agente do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) e pelo xerife local Harry Truman (Michael Ontkean). Enquanto eles investigam, eles acabam percebendo que várias pessoas da cidade estão envolvidas e que segredos obscuros estão por trás do caso.
Comentário: O site Wikipédia nos conta tratar-se de uma mistura de drama, mistério e terror surrealista, criada por Mark Frost e David Lynch. A série estreou nos EUA na ABC em 1990, teve 2 temporadas, mas foi cancelada, retornando ao ar apenas em 2017 para uma terceira temporada no Showtime.
Ambientada na cidade fictícia de Twin Peaks, no noroeste do Pacífico, a série acompanha uma investigação liderada pelo agente especial do FBI Dale Cooper (Kyle MacLachlan) sobre o assassinato da adolescente local Laura Palmer (Sheryl Lee). A narrativa da série se baseia nas características da ficção policial, mas seu tom misterioso, a presença de elementos sobrenaturais e a representação exagerada e melodramática de personagens excêntricos também se inspiram em tropos de terror e novelas americanas. A trilha sonora foi composta por Angelo Badalamenti.
Como, além do seriado, foram lançados 2 longas-metragens, sugere-se a seguinte ordem para ver todo esse material:
1. "Twin Peaks" – Temporada 1 (1990)
A primeira temporada (1990) conta com 8 episódios e mostra a comunidade rural de Twin Peaks sendo abalada pelo assassinato da rainha do baile local, Laura Palmer, removendo a fachada de respeitabilidade que a cidade aparentava ter, revelando as tensões ocultas que fervem sob a superfície. O agente do FBI e o xerife se unem para começar as investigações.
2. "Twin Peaks" – Temporada 2 (1990–1991)
A segunda temporada (1991) conta com 22 episódios. Essa temporada resolve parte do mistério e leva a trama para caminhos mais estranhos e metafísicos, surgindo ameaças que fazem da cidade um lugar perigoso.
3. "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" (1992)
Como a temporada 3 só foi ao ar em 2017, David Lynch, em 1992, lançou um longa-metragem que é uma prequela do seriado com 134 minutos de duração mostrando a investigação do assassinato de Teresa Banks e os últimos sete dias na vida de Laura Palmer. O título original desse filme é "Twin Peaks: Fire Walk with Me".
4. "Twin Peaks: O Mistério" (2014)
Este longa de 90 minutos foi feito com cenas excluídas e filmagens alternativas do longa anterior. Com o título original "The Missing Pieces", ele funciona como uma obra complementar que pode agregar uma ou outra informação ao filme.
5. "Twin Peaks – The Return" - Temporada 3 (2017)
Daí finalmente, em 2017, temos a terceira temporada denominada "Twin Peaks: A Limited Event" ou "Twin Peaks: The Return" composta por 18 episódios. Ela é uma continuação direta da série que se passa 25 anos depois da 2ª temporada.
Além do seriado e dos longas, foram lançados os seguintes livros:
- "O Diário Secreto de Laura Palmer", publicado em 1990 após a exibição da primeira temporada de Twin Peaks. Escrita por Jennifer Lynch, a obra é narrada por Laura Palmer, aprofundando-se na vida da jovem;
- "A História Secreta de Twin Peaks", livro de 2016 escrito por Mark Frost que serve como uma prequel para a terceira temporada da série. A obra se aprofunda nos mistérios da cidade, assim como nas relações dos personagens, sendo uma espécie de ponte entre o final da segunda temporada e o início da terceira, além disso ele é todo construído através de recortes de jornais, relatórios, anotações e fotografias.
- "Twin Peaks: The Final Dossier", livro publicado por Mark Frost em 2017. A obra é uma continuação do livro anterior, servindo como um dossiê final e mais completo desse universo;
- "Twin Peaks: Arquivos e Memórias: Agora Podemos Voltar Ao Lugar Onde Tudo Começou", livro de 2017 do autor Brad Dukes, que reúne depoimentos dos criadores, dos atores e de membros da equipe, além de fotos inéditas da produção e curiosidades, contando a verdadeira história da pacata cidade madeireira escrita e pesquisada por um filho nativo;
- "Dale Cooper: Minha Vida, Minhas Gravações", livro de 1991 de Scott Frost que dá vida ao detetive Dale Cooper, tal como foi construído na série, mostrando sua personalidade enigmática e determinada, com o 'caso Laura Palmer' virando apenas mais um em sua carreira marcada pela obsessão em desvendar crimes insolúveis.
O que eu achei: Trata-se de uma série bem irregular do cultuado diretor de cinema David Lynch em parceria com Mark Frost. O seriado começa muito bem. A temporada 1 (1990) é sensacional, mostra o corpo da jovem Laura Palmer sendo encontrado na cidade interiorana de Twin Peaks e, com a mobilização do xerife local Harry Truman e do agente especial do FBI Dale Cooper começam as apurações. Enquanto eles saem atrás das inúmeras pistas, inclusive algumas que o agente do FBI recebe por sonho, eles vão percebendo que a cidade não é tão pacata assim pois seus habitantes têm segredos nunca antes revelados. A temporada 2 (1990-1991) é problemática. Ela começa bem, mas quando chega na metade ela desanda. Li que um executivo da ABC Entertainment, por conta de questões comerciais, começou a pressionar Lynch a dar uma resposta sobre quem matou Laura Palmer, algo que aparentemente Lynch não pretendia dar. Lynch, vencido, revela a identidade do assassino de Laura no meio da segunda temporada. Após essa revelação, a série fica desnorteada, com os demais episódios recheados por outros casos policiais que correm em paralelo à história principal, durando de um a dois episódios cada um desses casos. Sem surpresa, isso fez com que a audiência despencasse e o seriado foi cancelado. Após o cancelamento, Lynch lança por conta própria um longa-metragem chamado "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" (1992). O filme, que serve como uma prequela da série, é centralizado inteiramente em torno de Laura, sua vida e o assassinato brutal que deu início ao seriado. O filme é excelente, contando com a presença, inclusive, de David Bowie no papel de Phillip Jeffries. Por incrível que pareça, em 2017, 25 anos depois, o seriado é retomado. A temporada 3 denominada "Twin Peaks: O Retorno" é uma continuação direta da série, com os mesmos diretores no comando e com um grande número de atores do original agora bem mais velhos obviamente. Com total liberdade, essa terceira etapa é completamente diferente das anteriores pois Lynch rejeita a narrativa padrão que vinha sendo adotada e cria uma sequência mais parecida com seus longas, fugindo completamente do que seria esperado. Com isso o público teve uma visão dividida desta última parte. Os acostumados com o estilo Lynch de filmar gostaram, mas seu caráter experimental e muitas vezes incompreensível, não agradou a todos pois ele não dá as respostas claras que muitos esperam. De qualquer forma, "Twin Peaks" foi pioneira em misturar gêneros e apresentar uma narrativa não linear e experimental num seriado, abrindo portas para a complexidade evitada na televisão. Sua atmosfera onírica, hipnótica e perturbadora, criou um mundo peculiar deixando um legado importante na cultura pop.

29.9.25

“A Greve” - Sergei Eisenstein (URSS, 1925)

Sinopse:
O suicídio de um operário injustamente acusado de roubo é o estopim para o início de uma greve numa fábrica russa, em 1903. O lento processo de negociação expõe uma série de ações entre grevistas e polícia.
Comentário: Sergei Eisenstein (1898-1948) foi um cineasta letão dos mais importantes da história do cinema. Relacionado ao movimento de vanguarda da arte russa, participou ativamente da Revolução Bolchevique de 1917 e da consolidação do cinema como meio de expressão artística. Sua obra influenciou fortemente os primeiros cineastas devido ao uso inovador da montagem. Assisti dele a obra prima “O Encouraçado Potemkin” (1925), os excelentes "Outubro" (1927), "Alexandre Nevsky" (1938) e "Ivan, o Terrível” Parte I (1944) e Parte II (1958), além do curioso "Que Viva México!" (1932).
Desta vez vou conferir o primeiro filme feito por Eisenstein: “A Greve” (1925), um filme mudo composto por seis atos, feito quando o cineasta tinha apenas 26 anos de idade. Com uma abordagem didática, ele retrata as lutas ocorridas antes da Revolução de outubro de 1917, mostrando uma ocorrência datada de 1903 na qual trabalhadores de uma fábrica se unem contra a exploração e as injustiças em seu meio de trabalho.
Jesse Lisboa do jornal “A Verdade” nos conta tratar-se de um filme “que aborda a luta dos trabalhadores por seus direitos. Esse longa-metragem é um exemplo do cinema soviético da década de 1920, que tinha como objetivo retratar o cotidiano do povo e suas lutas, além de estabelecer referências de montagem no cinema.
O período que se seguiu à revolução de 1917 na Rússia foi marcado pelo Construtivismo Russo, uma iniciativa que defendia a ideia de que o cinema não poderia estar distante do povo, mas sim que deveria ser construído a partir de seu cotidiano. Assim, os cineastas soviéticos procuravam retratar a realidade de forma direta, pondo em questão a luta de classes e a recente revolução. A montagem era a principal ferramenta para a construção de um filme. A sequência de imagens, organizadas a fim de estabelecer relações de causa e efeito, era capaz de transmitir ideias complexas de maneira acessível. Sendo assim, a montagem era vista como uma forma de transformar o cinema em um recurso de agitação e propaganda.
‘A Greve’ é um exemplo dessa abordagem. O filme retrata a morte de um trabalhador, acusado injustamente de roubo, e a consequente greve organizada pelos trabalhadores. É importante evidenciar que o cenário histórico do filme é a Rússia pré-revolucionária, mais especificamente de 1903. O filme começa mostrando uma frase de Lênin, que diz o seguinte: ‘A força da classe trabalhadora é a organização. Sem organização das massas, o proletariado não é nada; organizado é tudo. Ser organizado significa unidade de ação, unidade de atividade prática’. Mais tarde, a narrativa do filme vai sendo construída a partir de uma série de imagens que mostram a opressão dos trabalhadores pela classe dominante e sua luta por seus direitos. A montagem é utilizada de forma a tornar explícita a ideia de que a greve é uma resposta à opressão sentida pelos trabalhadores.
O filme de Eisenstein utiliza metáforas visuais para enfatizar sua mensagem. As imagens dos animais, tão presentes em suas outras obras cinematográficas, são utilizadas aqui para representar a luta dos trabalhadores contra seus opressores. A imagem mais marcante do filme é a cena que fecha o longa, em que é comparado ao abate de um porco com a chacina dos trabalhadores grevistas. Nesta cena, o diretor propõe uma atmosfera de tensão e angústia, transmitindo a ideia de que a luta dos trabalhadores é uma luta pela vida.
Ao final do filme, a frase ‘Lembrem-se camaradas!’ é exibida, destacando o objetivo do filme de transmitir uma mensagem revolucionária para a população soviética, diante de uma recente revolução que pôs fim às antigas opressões do regime czarista. A mensagem final do filme expressa que a luta da classe trabalhadora é uma luta pela justiça e pela democracia proletária!”
O que disse a crítica: Luiz Santiago do Plano Crítico avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: “O fluxo de ideias, a inteligência na composição, plasticidade das cenas (os três diretores de fotografia do filme certamente tiveram um imenso trabalho para capturar as imagens) e o sentido final na mesa de edição fizeram deste filme (...) uma referência não só para o cinema soviético mas para o mundo todo. A obra é rica em sua concepção fílmica e o conceito de exibir uma ideia geral poderia facilmente sair vazia, mas não é isso que acontece. A fita cumpre o seu propósito. Existem exageros de concepção e retratação dos ‘atores históricos’, tanto de um lado quanto de outro, mas isto é apenas parte dos pontos interessantes para os quais podemos fazer a leitura e trazer à discussão e crítica. Em ‘A Greve’ temos o nascimento de um novo modelo de fazer cinema, bem como a origem de uma teoria de montagem que geraria inúmeros descendentes pelas décadas seguintes. Um filme de importância histórica em muitas dimensões”.
Geoff Andrew da Revista Time Out também gostou. Escreveu: “A história em si é simples: trabalhadores entram em confronto violento com patrões e policiais durante uma greve prolongada na fábrica, provocada pela demissão e subsequente suicídio de um deles. Mas os métodos de Eisenstein são complexos e extraordinários: sua decisão de fazer das massas, em vez de qualquer indivíduo, seu herói confere ao filme um alcance verdadeiramente épico; as caricaturas cruéis dos capitalistas burgueses proporcionam humor e uma manipulação emocional efetivamente poderosa; e a edição, rápida, fluida e extremamente precisa, fornece não apenas ritmo, mas uma miríade de significados metafóricos que vão muito além da mera propaganda”.
O que eu achei: Trata-se do primeiro filme feito pelo grande cineasta russo Sergei Eisenstein aos 26 anos de idade. O filme, que é mudo, foi dividido em 6 partes: "Na fábrica tudo está tranquilo" que descreve a vida na fábrica antes da greve, a opressão dos trabalhadores e a falta de condições de trabalho; "O motivo para a greve" que mostra a causa que leva os operários a organizar a greve e o começo da agitação; "A fábrica paralisa" com a greve se iniciando e a produção da fábrica sendo interrompida; "A greve é desencadeada" mostrando a greve se prolongar e a situação se agravar, com os trabalhadores enfrentando privações; "Provocação e desastre" mostrando os agentes provocando o caos e a violência entre os grevistas e, por fim, "Extermínio" mostrando a implantação de leis marciais e a extinção da greve através de atos de violência. A trama se passa na Rússia pré-revolucionária, numa fábrica em 1903 e, apesar de ser o primeiro filme do diretor, já é possível notar uma grande criatividade na montagem, marcando um momento decisivo de evolução do cinema. No elenco estão os atores do Teatro dos Trabalhadores do Proletcult, um movimento iniciado em 1917 que defendia a ideia da criação de uma nova cultura soviética, incluindo a defesa de uma estética marxista para as artes, uma estética de classe verdadeiramente proletária, livre de todos os vestígios da cultura burguesa. O resultado é um filme cheio de energia, sua edição dinâmica continua emocionante até hoje mostrando um conflito de classes não só pelo viés político, mas também por sua humanidade, transparecendo o brilho imaginativo do diretor. Uma pequena pérola dentro da história do cinema. Imperdível.

28.9.25

“Blitz” - Steve McQueen (Reino Unido/EUA, 2024)

Sinopse:
A história se passa durante os bombardeios de Londres na Segunda Guerra Mundial. Segue o pequeno George (Elliott Heffernan), um garoto de 9 anos, cujos dias pacíficos em Londres são interrompidos pelo caos do Blitz. Para proteger o filho, sua mãe Rita (Saoirse Ronan) o envia para o campo inglês em busca de segurança. Determinado a retornar para Londres e reunir-se com sua mãe e seu avô Gerald (Paul Weller), George embarca em uma perigosa jornada pelo interior da Inglaterra. Enquanto isso, Rita enfrenta o desespero e a angústia de buscar seu filho desaparecido entre os escombros da cidade bombardeada.
Comentário: Steve McQueen (1969) é um cineasta, produtor, fotógrafo e escultor britânico. Ganhou notoriedade com os longas "Hunger" (2008) e "Shame" (2011), ambos com o ator Michael Fassbender. Assisti dele o ótimo "12 Anos de Escravidão" (2003) que ganhou o Oscar de Melhor Filme. Assisti também ao mediano “As Viúvas” (2018). Desta vez vou conferir “Blitz” (2024).
O título "Blitz" diz respeito à campanha de bombardeamentos aéreos da Segunda Guerra Mundial em que a força aérea alemã (Luftwaffe) atacou o Reino Unido entre setembro de 1940 e maio de 1941, visando forçar o país a render-se. Os ataques atingiram várias cidades britânicas, com Londres sendo o alvo principal, causando milhares de mortes e destruição massiva de infraestruturas. Quem se interessar pelo tema pode assistir na Netflix um documentário chamado "A Grã-Bretanha e a Blitz" (2025) de Ella Wright que mostra em detalhes esse episódio da História.
O filme de McQueen utiliza esse contexto para nos mostrar a história de George, um menino de 9 anos, interpretado pelo ator mirim Elliott Heffernan, que será mandado temporariamente pela mãe para uma região mais segura através de uma operação governamental denominada "Operação Flautista de Hamelin" que, apesar de bem intencionada e muitas vezes bem sucedida, foi marcada por diversos problemas, já que essas crianças eram acolhidas em lares desconhecidos. Hoje se sabe que há até acusações de abuso de sobreviventes da época que ainda aguardam reparação.
O site Mixed Museum nos conta que a inspiração visual do diretor foi "uma fotografia do arquivo do Museu Imperial da Guerra. A imagem mostra um jovem evacuado de ascendência negra, mala na mão, pronto para deixar Londres rumo ao interior. Assim como tantas outras crianças durante a Segunda Guerra Mundial, o menino da foto havia sido enviado para viver com estranhos na Grã-Bretanha rural para escapar do pesado bombardeio das cidades britânicas.
Ocorre que, no filme, George é uma criança negra filha de uma mãe branca, interpretada pela atriz Saoirse Ronan. E esse é um ponto interessante que o site aborda. Baseado nas pesquisas de Chamion Caballero, Lucy Bland e Peter Aspinall vamos saber mais sobre a presença de pessoas mestiças na Grã-Bretanha em tempos de guerra, incluindo as famílias cujos filhos foram evacuados e cujas histórias foram amplamente obscurecidas pelas narrativas e interpretações da Frente Interna.
O site diz: "'Blitz', de McQueen, desafia essas omissões, não apenas ao centralizar a história em George – o personagem inspirado na fotografia – e sua família, mas também através dos personagens negros, asiáticos, mestiços e de outras minorias étnicas que o menino encontra ao longo do filme".
A pesquisa dos autores mostra que "Embora a Grã-Bretanha sempre tenha abrigado comunidades multirraciais, o início do século XX viu seu crescimento substancial, particularmente em algumas das maiores cidades portuárias britânicas. Muitos homens negros, asiáticos, chineses e árabes que lutaram pela Grã-Bretanha durante a Primeira Guerra Mundial, inclusive servindo como marinheiros mercantes, estabeleceram-se nos bairros portuários britânicos. Como cada vez menos mulheres negras, asiáticas, árabes e chinesas migrantes residiam na Grã-Bretanha naquela época, a maioria dos homens se casou e constituiu família com mulheres brancas locais – muitas delas de ascendência irlandesa –, bem como com mulheres mestiças britânicas.
Com o país sofrendo economicamente após a guerra, e com a chegada de homens brancos desmobilizados, a hostilidade contra os homens de outras raças cresceu, com a imprensa, os sindicatos e o governo culpando-os não apenas por 'roubarem' os empregos dos homens brancos, mas também 'suas' mulheres.
As tensões explodiram em 1919 e 1920, quando a violência racial contra os homens e suas comunidades – comumente chamada de 'distúrbios raciais' – eclodiu em nove cidades portuárias britânicas. Essa hostilidade social continuou ao longo da década de 1920, com mulheres brancas em relacionamentos inter-raciais também sendo atacadas – física e moralmente – por prejudicarem a 'superioridade' da 'raça', da nação e do Império britânicos ao se casarem e terem filhos com homens não brancos.
O problema era visto como generalizado, não se limitando apenas às docas. As casas noturnas de Londres foram criticadas por facilitar a miscigenação racial (em uma cena de 'Blitz', a mãe inglesa branca de George, Rita, é mostrada socializando em uma boate com Marcus, seu pai negro granadino – de Granada na África - e outros casais mistos).
A Tottenham Court Road, em particular, tornou-se uma obsessão para a imprensa, com manchetes a denunciando como o 'pior ponto de praga' de Londres, devido ao chamado 'perigo negro' que representava para as mulheres brancas. Inúmeros artigos denunciavam a 'colônia' de 'negros negros como carvão' que administravam cafés e casas noturnas, seduzindo mulheres com jazz e drogas. Esses homens, afirmava a imprensa, eram habilmente apoiados por chineses, que traficavam 'drogas' e também exerciam um 'fascínio misterioso' por mulheres brancas.
'O que é a 'isca amarela?', gritava o Western Daily Press sobre a suposta decadência moral causada pelos bairros chineses de Liverpool, Glasgow e Cardiff, mas principalmente pela 'cancerígena' Limehouse, no leste de Londres. Os relacionamentos inter-raciais, argumentavam os artigos, não eram apenas depravados, mas também causavam agitação social, principalmente devido ao crescente número de bebês depreciativamente chamados de 'mestiços'.
Na década de 1930, um pânico moral generalizado irrompeu sobre o perigo representado para a Grã-Bretanha devido ao que a imprensa chamava de 'ameaça' e 'perigo social' das crianças mestiças. Em todas as cidades portuárias, uma rede de indivíduos – de chefes de polícia a vereadores e cidadãos proeminentes 'preocupados' – criou grupos e encomendou relatórios para lidar com o 'problema', às vezes com o envolvimento do Ministério do Interior. (...)
Essa diversidade racial é frequentemente deixada de fora das narrativas da Frente Interna. McQueen, no entanto, faz várias referências a isso em 'Blitz', além da família de George. McQueen atribui um papel significativo a Ife, um guarda-florestal negro africano, baseado na história real de Ite Ekpenyon. Há muito tempo ele é considerado o único guarda-florestal negro da Grã-Bretanha; no entanto, recentemente descobrimos a história do pai de Kenneth Roberts, John Mathania Roberts, que serviu como guarda-florestal em Staffordshire.
McQueen também inclui uma série de personagens interpretadas por atores com ascendência racial mista. A personagem Doris, de Erin Kellyman, trabalha ao lado de Rita em uma fábrica de armamentos (lembrando as mulheres de Cardiff imortalizadas na foto 'Trouse Girls' de 1936). Celeste interpreta uma cantora de boate no estilo da artista britânica Evelyn Dove.
Steven Graham, Mica Ricketts e Christopher Chung fazem parte de uma gangue multirracial com a qual George se depara. O personagem de Chung faz alusão às antigas famílias anglo-chinesas de Limehouse. Enquanto isso, Graham, de ascendência negra mestiça, falou sobre a história de fundo de seu personagem, Albert, ter sido criado em um asilo vitoriano. Novamente, esta história tem raízes reais; a excelente bolsa de estudos da Professora Caroline Bressey revelou muitas histórias de crianças negras e mestiças que foram criadas no Dr. Barnardo's durante a era vitoriana. (...)
'Blitz', de Steve McQueen, traz essas histórias ocultas aos holofotes, mas o trabalho de descobri-las está longe de terminar. Arquivos estão repletos de relatos que desafiam o que acreditamos saber sobre o passado da Grã-Bretanha, relatos que merecem mais do que notas de rodapé. Mas é por meio da narrativa, seja em filmes, na escrita ou na história oral, que essas vidas nos são trazidas de volta com vivacidade".
O que disse a crítica: Daniel Oliveira do site Cinematório avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Escreveu: "'Blitz' não é sem defeitos. O filme é estruturado numa montagem paralela entre as jornadas de George e de Rita, e a parte da mãe não é tão bem realizada quanto a do filho (...). Há também uma elipse um pouco estranha numa sequência fundamental no clímax do longa que, junto com o personagem de Dickinson e o flashback com a (breve) história do pai de George, sugerem que McQueen deve ter se digladiado com o filme na ilha de montagem e deixado muita coisa de fora. Ainda assim, a produção funciona, não se estendendo para além da conta nem querendo ser mais do que é, triunfando principalmente nos closes e na atuação estupenda do estreante Elliott Heffernan. O ator é um daqueles achados que só um cineasta do calibre de McQueen é capaz de encontrar e, no seu rosto expressivo e inocente, o cineasta escreve a história que quer contar: o momento em que a dita modernidade perde sua inocência, sua infância, dando lugar à tal pós-modernidade e a uma crise de identidade que a humanidade não conseguiu superar até hoje".
Mariano Ojeda do site Omelete avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: "Com alguns personagens que colaboram muito com o desenrolar da história, das crianças que viram amigos circunstanciais de George, até Ife (Benjamin Clémentine) e Jack (Harris Dickinson), o soldado que ajuda Rita na busca por George, 'Blitz' mostra uma cadência excelente quase até o final, quando o drama fica maior que a história, quase transbordando-a. A construção até este momento é excelente, mas ele talvez seja excessivo para o encerramento".
O que eu achei: "Blitz" (2024) de Steve McQueen – diretor do aclamado "12 Anos de Escravidão" (2003) – nos presenteia com essa mega produção cujo título faz referência à palavra 'blitzkrieg', uma tática militar que consiste na realização de ataques rápidos e coordenados, com o objetivo de desmobilizar e derrotar os inimigos. O filme se passa na Inglaterra, local que foi alvo de blitz por parte dos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. É nesse contexto que vamos acompanhar a saga de George, um menino de 9 anos cuja mãe, para tentar resguardar a criança dos perigos dos bombardeios, resolve embarcar o garoto num trem rumo ao interior. Essa operação de fato existiu, era um procedimento oficial denominado "Operação Flautista de Hamelin", uma forma de tentar preservar a vida dos pequenos em casas onde eles eram abrigados por outras famílias, encontrando um pouco de paz em meio ao caos de uma grande guerra. Ocorre que George não está nada satisfeito em ir morar com outra família, então ele, por conta própria, resolve voltar pra casa enquanto Rita, ao saber de sua fuga, parte em sua angustiosa busca pelo paradeiro do seu filho. O filme nos tira então do lugar comum de mostrar a guerra através dos olhos de soldados e, não só nos traz reflexões interessantes sobre esse episódio da História como também nos mostra um menino negro e sua mãe branca, tocando num ponto menos conhecido que foi o da miscigenação ocorrida na Grã-Bretanha durante a Primeira Guerra Mundial quando muitos homens negros, asiáticos, chineses e árabes estabeleceram-se nos bairros portuários britânicos, casando-se e constituindo família com mulheres brancas locais, o que gerou um forte racismo no país. O próprio menino George é mostrado inicialmente com dificuldade para assumir sua identidade enquanto fruto de uma relação interracial, só mais adiante, no filme, é que ele estabelece uma relação positiva com um policial de origem africana e se reconhece como sendo um menino negro. A crítica especializada ficou dividida com o resultado. Os que não gostaram assinalaram o tom melodramático do filme como principal defeito. Eu pessoalmente gostei bastante, até porque não vi nada de tão exagerado ou desproporcional nas abordagens. É um filme triste, lindo, uma aula de História, um retrato bem executado do que a guerra pode provocar nas nossas vidas.

27.9.25

"Echo in the Canyon" - Andrew Slater (EUA, 2018)

Sinopse:
O documentário explora a região de Laurel Canyon, na Califórnia, e sua rica cultura musical, analisando suas raízes nos anos 60 e alguns dos principais nomes que vieram da região para crescer no mundo da música.
Comentário: Richard Propes do site The Independent Critic nos conta que "O nascimento do som da Califórnia é o coração e a alma da estreia na direção de longas-metragens do ex-CEO da Capitol Records, Andrew Slater, o divertido e significativo 'Echo in the Canyon', um lançamento da Greenwich Entertainment (...).
Para quem não sabe exatamente o que significa 'o nascimento do som californiano', 'Echo in the Canyon'  se concentra na cena musical de meados e final dos anos 60 em torno de Laurel Canyon, uma área que, por esse breve período, serviu como o que poderia ser descrito como uma espécie de colônia para nomes como Beach Boys, Byrds, Mamas and the Papas, Buffalo Springfield e muitos outros.
Com Jakob Dylan atuando principalmente como apresentador e entrevistador principal do filme, 'Echo in the Canyon'  examina esse período conversando diretamente com aqueles que o criaram, incluindo nomes conhecidos como Brian Wilson, Roger McGuinn, Michelle Phillips, Graham Nash, Stephen Stills, Jackson Browne, David Crosby e outros. Jakob Dylan, vocalista do The Wallflowers e filho de Bob Dylan, obviamente tem familiaridade suficiente com a época para ser um apresentador bem informado, mas também é um apresentador carismático e envolvente que não parece se importar em ficar em segundo plano em relação aos artistas icônicos que entrevista. 
Para seu crédito, Slater, na maior parte do tempo, deixa a música e os músicos falarem em 'Echo in the Canyon'. Devo confessar que fiquei um pouco chocado no início do filme, quando a entrevista do falecido Tom Petty para o filme surgiu e imediatamente me encheu o coração com um forte sentimento de melancolia. Felizmente, a melancolia não é um sentimento forte ao longo do filme, nem qualquer sentimento de nostalgia. Slater claramente tem uma visão mais elevada para o filme e, na maior parte do tempo, consegue criar um filme que é perspicaz sobre o passado e consciente de como esse passado impactou o futuro.
Sendo parte do que era essencialmente uma colônia musical, os músicos apresentados no filme criaram algo especial, mesmo que tenha durado relativamente pouco. Com a ajuda de uma cena cooperativa de rádio e televisão, esses músicos criaram sons que tendiam a se sobrepor. Alguns podem chamar isso de roubo, suponho, mas era uma parte importante da natureza comunitária da música na época, e a música há muito tempo se tornou melhor por isso. A música estava realmente em algum tipo de transição, existindo em algum lugar entre os saudáveis ​​primeiros Beatles, mas não totalmente pronta para a psicodelia que estava por vir. Os Beach Boys estavam influenciando os Beatles, de fato, ao incentivar sua experimentação, e outros grupos estavam se juntando a esse senso de colaboração e experimentação.
'Echo in the Canyon'  entrelaça entrevistas envolventes e transparentes a essa paisagem musical, contando histórias sobre os instrumentos usados, os casos amorosos, as brigas que nunca se resolveram e muito mais. Juntamente com essas entrevistas, Slater adiciona imagens de shows, passadas e presentes, imagens de estúdio e uma riqueza de reinterpretações impressionantemente produzidas por artistas contemporâneos, incluindo Dylan, Regina Spektor, Cat Power, Beck, Norah Jones e, talvez a mais impressionante, Fiona Apple".
O que disse a crítica: O crítico John McDonald elogiou o documentário em seu site. Disse: "Havia um lado sombrio na era de paz, amor e compreensão que nunca aparece neste documentário, mas talvez esse aspecto tenha sido adequadamente abordado (...) em 'Era Uma Vez... em Hollywood', de Quentin Tarantino. A música pop é, afinal, a música da gratificação instantânea. Em dois minutos e meio, você pode extrair muito sentimento de músicas como California Dreamin' ou God Only Knows. Este filme não tenta ser abrangente, ignorando as partes problemáticas da história e retratando Laurel Canyon como um pequeno pedaço de paraíso musical. Como todas as visões do paraíso, é quase certamente um mito, mas o grande apelo dos mitos é que eles tornam a realidade muito mais palatável".
Graham Fuller do site The Arts Desk não gostou. Escreveu: "'Echo in the Canyon' é um documentário lamentavelmente superficial sobre a vibrante cena musical folk - rock que floresceu no bairro boêmio de Laurel Canyon, em Los Angeles, de 1965 a 1967. Embora contenha imagens vintage inestimáveis ​​dos Beach Boys, Byrds, Buffalo Springfield e Mamas and the Papas, além de entrevistas com alguns membros sobreviventes, estranhamente parece um veículo para Jakob Dylan".
O que eu achei: Do diretor iniciante Andrew Slater, que teve uma carreira musical diversificada, incluindo jornalismo, gestão artística e produção, antes de se tornar diretor executivo da Capitol Records, "Echo in the Canyon" reúne um conjunto impressionante de comentaristas para relembrar este canto ensolarado da música americana: a região de Laurel Canyon, na Califórnia. Ele reúne Eric Clapton, Brian Wilson, David Crosby, Jackson Browne, o falecido Tom Petty e muitos outros. Beck, Cat Power e Regina Spektor se reúnem em uma mansão para discutir o impacto da música, Jakob Dylan, filho de Bob Dylan, conduz as entrevistas e interpreta muitas canções de época. As histórias compartilhadas são sempre interessantes, embora as de Jackson Browne, David Crosby e Tom Petty sejam as mais impressionantes e memoráveis. O filme é lindo de assistir, tem uma pegada descontraída e alegre, é incrivelmente agradável e você provavelmente se pegará cantarolando junto em vários momentos. Vale ver.

23.9.25

"Os Boas Vidas" - Federico Fellini (Itália/França, 1953)

Sinopse:
 Em Rimini, o acomodado Alberto (Alberto Sordi), o galanteador Fausto (Franco Fabrizi), o intelectual Leopoldo (Leopoldo Trieste), o cantor Riccardo (Riccardo Fellini) e o mais jovem de todos Moraldo (Franco Interlenghi) formam um grupo que nada mais faz do que passar o dia em farras e conquistas amorosas. No entanto, esse modo de vida acaba para Fausto quando engravida a irmã de Moraldo (Leonora Russo).
Comentário: Federico Fellini (1920-1993) foi um diretor e roteirista de cinema italiano. Em uma carreira de quase cinquenta anos, Fellini ganhou a Palma de Ouro por “A Doce Vida”, foi indicado a doze prêmios Oscar e ganhou quatro na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira. No Oscar 1993, em Los Angeles, ele recebeu um prêmio honorário. Ele foi casado com a atriz Giulietta Masina. Assisti dele as obras-primas "A Doce Vida" (1960), "8 ½" (1963) e "Amarcord" (1973), os excelentes "Abismo de um Sonho" (1952), “A Estrada da Vida” (1954) e “Julieta dos Espíritos” (1965) e o curioso "Ensaio de Orquestra" (1978). Vi também o documentário "Os Palhaços" (1970). Desta vez vou conferir “Os Boas Vidas" (1953).
Luiz Santiago do site Plano Crítico nos conta que "Federico Fellini assumiu pela primeira vez a direção de um filme ao lado de Alberto Lattuada, em 'Mulheres e Luzes' (1950). Dois anos depois ele fez o seu primeiro voo solo, em 'Abismo de um Sonho', início interessante para uma carreira no cinema, trazendo uma história com elementos de fantasia, sonho, desejos e relações amorosas… além do delicioso toque metalinguístico, algo que o diretor sempre prezou e que traria à tona na maior parte de suas produções futuras.
'Os Boas Vidas' não estava na pauta de Fellini, quando terminada a produção de 'Abismo de um Sonho'. O roteiro que ele tinha escrito e que foi recusado pelo produtor era o de 'A Estrada da Vida', então taxado de 'muito sério' e escanteado pelo estúdio. Em contrapartida, foi oferecido ao diretor um orçamento para que ele realizasse uma comédia, desafio que ele enfrentaria ao lado de outros dois roteiristas, Ennio Flaiano e Tullio Pinelli.
'Os Boas-Vidas' teve uma acolhida absurdamente calorosa da crítica e do público, sendo indicado ao Oscar de Melhor Roteiro e vencendo o Leão de Prata no Festival de Veneza. A história de um grupo de amigos em uma cidade do interior trazia algumas lembranças caras a Fellini, algo que é ainda ressaltado pela presença de seu irmão no elenco, Riccardo.
De forma geral, 'Os Boas Vidas' mostra a vida adulta dos 'jovens da guerra'. Sem perspectiva ou vontade de emplacar um projeto familiar, esses adultos ociosos e vagabundos alternam um presente cheio de divertimento, bebedeiras, caminhadas nas madrugadas, carnavais, apostas e relacionamentos casuais, enquanto a idade passa e parece que o amadurecimento deles não acompanha essa passagem. Em dado momento do filme um dos personagens diz ao outro: 'nós precisamos casar', tendo em mente aí o poder do matrimônio como possível iniciador de uma vida de trabalho, compromisso e responsabilidade.
Mas para esse grupo, nem o matrimônio parece o início de uma nova fase da vida, basta atentarmos para o casamento de um deles e o modo como levava sua relação com a esposa, vivendo na casa dos sogros e praticamente entregando a criação do filho à família, enquanto sua preocupação essencial é sentir-se jovem, ter casos com diversas mulheres e viver como um solteiro boêmio.
Durante todo o filme - e essa é uma fala que aparece no desfecho, de maneira direta - aparece a possibilidade de deixarem essa cidade, irem para Roma ou outro lugar, onde um possível emprego ou a mudança de ares poderia mudar tudo. Mas apenas dois personagens conseguem livrar-se da comodidade do lugar e da vida fácil e sem muitos desafios.
Todavia, existe também o outro lado, o lado pessoal de cada um, a melancolia e angústia que paira em suas vidas, mesmo em momentos de diversão, como é o caso do carnaval ou o concurso de Miss, no início da fita. Embora rodeados de gente, os boas vidas vivem às voltas com seus interesses particulares, o evidente marasmo e inutilidade de suas existências, excetuando-se aí a personagem de Leopoldo, o escritor, que consegue ter sua comédia lida por um grande ator, mas que foge deste após segui-lo para uma região escura da cidade e julgar ser assediado sexualmente - a fuga é de uma inocência assombrosa para um homem com a idade de Leopoldo, que normalmente diria ao ator que não era homossexual e a coisa então se resolveria ali".
O que disse a crítica: Alexandre Agabiti Fernandez colaborador da Folha SP avaliou como bom. Escreveu: " Terceiro longa de Federico Fellini, "Os Boas-Vidas" (1953) é uma obra satírica, estudo de costumes de certo meio social que já traz os rudimentos do universo do cineasta, apresentado ainda sem a exuberância posterior. (...) Um dos pontos altos de 'Os Boas-Vidas' é a capacidade de Fellini em tornar próximos esses personagens, sem lances de efeito, psicologia ou grandiloquência. Um filme cômico com gosto amargo".
Robledo Milani do site Papo de Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: "Fellini tem consciência dos atos de seus personagens, e não os perdoa facilmente. Riccardo (interpretado pelo próprio irmão do diretor, Riccardo Fellini) é o mais coadjuvante, enquanto Fausto (Franco Fabrizi, que assim como Leopoldo Triste – Leopoldo – e Alberto Sordi – Alberto – se tornaria parceiro frequente em outras obras do cineasta) é o que tem a trajetória mais destacada, envolvendo-se em uma confusão atrás da outra, mesmo após casado. Mas acompanhamos essas trajetórias quase que pela tangencial, de acordo com a posição de Moraldo (Franco Interlenghi), que é parte do problema e também da solução – ele é o único a quem resta alguma esperança. E assim como precisa decidir entre ficar ou partir, também nós somos levados a confrontar nossa inerente comodidade, em um filme sobre o nada que tem muito a dizer".
O que eu achei: "Os Boas Vidas" (I Vitelloni), de Federico Fellini, é um filme que me conquistou profundamente, não apenas pela sensibilidade e humor com que retrata um grupo de amigos à deriva em uma cidade do interior, mas também porque, sendo descendente de italianos, muitas das expressões, hábitos e pequenos gestos mostrados na tela me remeteram às memórias que tenho dos meus antepassados. Há algo de muito familiar na forma como eles falam, se reúnem, brigam e riem – um retrato que, para mim, tem sabor de nostalgia. O título original, "I Vitelloni", refere-se a uma expressão local que significa “alguém imaturo e preguiçoso, sem uma identidade clara ou sem uma ideia do que quer fazer na vida”. A tradução para “Os Inúteis”, em Portugal, e “Os Boas Vidas”, no Brasil, mantém-se fiel ao espírito do filme, que nos mostra esse grupo de jovens sem rumo, mas cheios de humanidade, contradições e sonhos nunca realizados. Fellini os observa com ironia e, ao mesmo tempo, com enorme empatia, criando um retrato que equilibra leveza e melancolia. Além disso, é possível ver aqui o embrião do grande cineasta que Fellini viria a se tornar. "Os Boas Vidas" tem aquele olhar atento para as pequenas grandezas e ridículos da vida, para os personagens que vivem à margem da ação heroica, e que, justamente por isso, revelam tanto sobre o mundo ao seu redor. Um filme belíssimo, cheio de humor e ternura, que consegue transformar a simplicidade do cotidiano em cinema da mais alta qualidade.

21.9.25

"April" - Dea Kulumbegashvili (Geórgia/Itália/França, 2025)

Sinopse:
Nina (Ia Sukhitashvili) é uma talentosa obstetra em uma maternidade no leste da Geórgia. Após um parto difícil, a criança morre, e o pai exige uma investigação sobre os métodos da médica. O escrutínio resultante ameaça trazer à tona a atividade paralela de Nina: dirigir pelo interior até as casas de meninas e mulheres grávidas para realizar abortos não autorizados.
Comentário: Dea Kulumbegashvili (1986) é uma cineasta e escritora nascida na Geórgia, um país situado na Europa Oriental. Assisti dela seu longa de estreia, o ótimo "O Começo" (Beginning), de 2020. Desta vez vou conferir "April" (2025).
Segundo Alexandra Ferraz do site IndieLisboa, "Depois de 'Beginning', o primeiro filme da cineasta georgiana Dea Kulumbegashvili que conquistou uma vitória histórica em San Sebastián (Melhor Filme, Melhor Realizadora, Melhor Argumento e Melhor Atriz), a expectativa era imensa e Kulumbegashvili maravilha de novo: com a sua segunda obra, 'April', arrecadou em Veneza o Prémio Especial do Júri.
O título do filme antecipa um simbolismo inexorável: Abril é o mês da renovação, mas também o mês mais cruel. Através de uma linguagem cinematográfica única e meticulosa, Kulumbegashvili filma a beleza rural da Geórgia, o florescer de árvores e a mudança das estações índices da jornada de autodescoberta da médica obstetra Nina; e mergulha o espectador no estado emocional da sua personagem principal, criando uma atmosfera claustrofóbica e imersiva, onde é tangível a tensão constante em que vive esta mulher que se recusa a ser silenciada pela sociedade patriarcal.
A mais recente obra cinematográfica de Dea Kulumbegashvili desafia convenções e faz uma reflexão profunda sobre o aborto e as ramificações que essa decisão representa, colocando em primeiro plano a autodeterminação do corpo das mulheres, luta que se revela constante e premente.
Produzido por Luca Guadagnino, 'April' é um filme verdadeiramente arrebatador que deixa uma marca indelével e convida o espectador a repensar a autonomia e o direito das mulheres em controlarem os seus próprios corpos e destinos".
O que disse a crítica: Christy Lemire do site Rober Ebert avaliou com o equivalente a 3,75 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: "É o não dito que fala por si em 'April', muitas vezes em tomadas longas e isoladas que duram muito além do ponto de desconforto. Isso é especialmente verdadeiro durante uma cena em que Nina realiza um aborto na mesa da cozinha para uma adolescente surda-muda. A câmera se mantém firme no tronco da jovem e na mão direita que sua mãe segura para confortá-la. O fato de esse procedimento ser necessário em tal cenário soa tanto como um lamento de angústia quanto como um grito de guerra contra a sociedade. Mas também há beleza para ser encontrada aqui, seja um campo de papoulas vermelhas brilhantes, o cinza intenso de uma tempestade que se aproxima ou um céu rosa-púrpura antes do amanhecer após uma noite longa e difícil".
Robledo Milani do site Papo de Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: "Enquanto o drama oficial se desenrola, entre investigações burocráticas e acusações que servem mais para tirar a responsabilidade de si e jogar no colo daquela que, enfim, acredita estar fazendo alguma (...) diferença, 'April' vai chegando ao fim. E Nina, pelo muito que esconde em si, por vezes incapaz de revelar estes segredos até para si mesma, vai se afundando num vazio crescente, fazendo dela mesma o monstro que a persegue. (...) Não será um filme que mudará o mundo. Mas talvez seja o passo necessário para que ao menos a discussão tenha início, e desse enfrentamento não se possa mais fugir".
O que eu achei: Por ter gostado muito do primeiro longa da cineasta georgiana Dea Kulumbegashvili – "Beginning" (2020) – me aventurei em encarar seu segundo filme "April" (2025) – que conta a história de uma competente obstetra chamada Nina que, após perder uma criança em um parto, é acusada de negligência, podendo ter sua vida revirada trazendo à tona sua atividade paralela: ajudar meninas e mulheres grávidas pobres do interior a realizar abortos não autorizados. Um ponto importante neste filme da Geórgia é que lá o aborto é oficialmente legal. Uma mulher pode solicitar a interrupção da gravidez até 12 semanas após seu início, mas, dada a veemência da oposição pública e política à prática, é improvável que encontre uma clínica que concorde em realizá-la. Trata-se, portanto, de um direito ilusório; sua ilusão de 'sim, mas não' é apenas uma das múltiplas maneiras pelas quais a vida das mulheres é restringida e limitada por um mundo que promete mais liberdade do que concede. O filme possui tomadas longas que duram muito além do ponto de desconforto. São imagens de paisagens com flores – afinal abril é o mês da primavera onde tudo renasce -, da chuva caindo ou de Nina fazendo algum procedimento. Muita gente nessas horas vai pensar em desistir, mas essas tomadas longas e paradas não são gratuitas e sim um retrato do marasmo local propositadamente criado para trazer desconforto. Há também no filme a figura de um 'monstro de lama', uma figura enigmática que aparece eventualmente e que representa a lama não só das estradas não asfaltadas onde, em dia de chuva, os carros atolam, mas especialmente a comunidade atolada no machismo, na misoginia e nos preconceitos religiosos e especialmente a vida da própria Nina que está atolada em problemas das mais variadas espécies. Caso você resista e siga em frente será presenteado com uma reflexão inteligente, íntima, visceral e comovente da sexualidade, do desejo, das pressões e repressões, dos condicionamentos e dos mandatos sociais. Assim como no longa anterior, Kulumbegashvili levanta questões perturbadoras sem trazer respostas tranquilizadoras, e supera com sucesso os desafios significativos que se propõe em um filme com múltiplas nuances. Um filme para ser visto sem pressa, com paciência e concentração. Boa pedida.

20.9.25

“Daguerreótipos” - Agnés Varda (França, 1975)

Sinopse:
O documentário é um retrato íntimo das pequenas lojas e lojistas da Rue Daguerre em Paris, uma rua pitoresca onde Agnés Varda morou por mais de 50 anos e que carrega o nome do famoso fotógrafo que inventou os primeiros dispositivos fotográficos: os daguerreótipos.
Comentário: Agnès Varda (1928-2019) foi uma fotógrafa e cineasta belga que se radicou na França. É considerada uma das precursoras da Nouvelle Vague. Seus filmes se notabilizam pela produção caseira e pela pesquisa de uma linguagem extremamente pessoal. Assisti dela o bom “Cléo das 5 às 7” (1962) e os documentários "Ulysse" (1982), "Os Catadores e Eu" (2000), "As Praias de Agnès" (2008) e "Visages, Villages" (2016) em parceria com o fotógrafo JR. Desta vez vou conferir o documentário “Daguerreótipos” (1975).
O historiador, cineasta e professor Charles Musser nos conta em seu site que Varda morou na Rue Daguerre desde 1951. Seu filho Mathieu nasceu nos anos 1970 a partir de uma gravidez de alto risco, principalmente considerando a época. Então filmar a rua onde ela morava permitiu que ela ficasse perto de casa e de seu novo filho - tema esse que tinha um componente doméstico e até mesmo maternal. Em uma narração, ela diz que as pessoas que ela filmou não estavam a mais de 50 metros da porta da frente de sua casa.
Ela e seu marido, o diretor Jacques Demy, eram parceiros próximos, embora não colaborassem juntos como cineastas. Eles, além de morar na Rue Daguerre, possuíam uma sala de edição que também ficava na mesma rua. É interessante observar o fato de que muitas das lojas também são administradas por duplas de marido e mulher e, em alguns casos, suas vidas parecem ecoar as de Varda/Demy. Os alfaiates, que fazem roupas sob encomenda, são mostrados cortando tecidos assim como Varda/Demy cortam seus filmes. Há também os cabeleireiros que têm lojas adjacentes, que compartilham uma porta para a rua: o marido cortando o cabelo dos homens enquanto a esposa corta o das mulheres. Talvez, como os cineastas, eles ora esperem, um tanto entediados e impacientes, pelos clientes, ora se dediquem a turbulências de trabalho intenso.
Este filme, como seria de esperar, é muito consciente e autorreflexivo. É um tanto clichê apontar que as vitrines têm como contrapartida o enquadramento da câmera e a tela do cinema. Quem está na rua olha pelas vitrines e vê os personagens do filme. Mas Varda vai um passo além e usa sua câmera para nos fornecer janelas para seus mundos: descobrimos onde nasceram, como os casais se conheceram e quando chegaram à Rue Daguerre. Conhecemos seus sonhos.
Da mesma forma, é importante saber que Varda era fotógrafa, além de cineasta. Ela provavelmente não foi parar na Rue Daguerre por acaso: que lugar melhor para um fotógrafo se estabelecer do que em uma rua que leva o sobrenome do inventor do primeiro processo fotográfico comercialmente bem-sucedido: Louis-Jacques-Mandé Daguerre (1787-1851)?
O nome do filme também funciona como um trocadilho com o nome daguerreótipo. Como Varda explicita em uma narração no final do filme, seus personagens são tipos típicos da pequena burguesia parisiense; mas seu documentário também nos oferece retratos fotográficos ou daguerreótipos como eram chamados na época do Daguerre. E embora o documentário seja um filme, em vários momentos os personagens de Varda posam para a câmera como se fosse uma câmera fotográfica de meados do século XIX, daquelas de captura bem lenta, assumindo poses formais e estáticas por vários segundos.
Musser também observa que a maioria dos retratados venha de lugares de fora de Paris, nascidos na Europa Oriental, na Argélia ou no sul da França, sugerindo que os daguerreótipos são algo mais do que um retrato rotineiro das tarefas diárias de Varda, mas sim um exame tácito dos limites que as pessoas percorrem para encontrar um lugar ao qual pertençam. Ela faz as mesmas perguntas a todos os lojistas - de onde você veio? quando chegou aqui? por que veio? - revelando que cada um passou por algum tipo de transição para chegar lá. Varda se consolidou ao longo da carreira como a padroeira dos outsiders no cinema e aqui fica claro como ela considerava essas histórias muito comoventes.
O que disse a crítica: Charles Musser achou bom. Escreveu: “Confesso que ‘Daguerreótipos’ ficou gravado na minha mente todos esses anos como uma conquista impressionante, o que não é uma opinião que eu necessariamente compartilhe com outros. O único livro sobre Varda em inglês, ‘Agnès Varda’, de Alison Smith (1998), menciona-o apenas de passagem. Dudley Andrew também tinha suas reservas, considerando-o uma obra menor (...). Do ponto de vista atual, pelo menos podemos ver o filme como uma antecipação dos estágios finais da notável carreira de Varda, já que elementos de ‘Daguerreótipos’ seriam reformulados em seu notável documentário ‘Os Catadores e Eu’ (2000), realizado cerca de 25 anos depois”.
Jesse Cataldo da Slant Magazine avaliou com o equivalente à 3,75 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: “‘Daguerreótipos’ tem um título bonitinho e o resultado, a princípio, parece previsivelmente piegas: pequenos retratos de lojistas trabalhando, aconchegados em charmosas lojas especializadas ao longo de uma rua tranquila, com seus defeitos identificados e colecionados. Mas, como muitas das explorações temáticas semelhantes de Varda, o resultado é mais do que parece à primeira vista: uma antropologia casual com uma forte inclinação humanista, resultando em um filme movido mais pela compaixão do que pela curiosidade. E é essa compaixão que eleva o filme, garantindo que o retrato de Varda, típico de um livro de contos de fadas, nunca pareça pretensioso ou manipulador, mesmo quando ela transforma esses indivíduos em figuras de diorama, no que se torna uma investigação sobre o lugar do indivíduo comum: na vida, na comunidade e até mesmo no cinema. Os personagens que ela apresenta (...) recebem atenção total, parte de seu esforço contínuo para destacar figuras marginalizadas”.
O que eu achei: Agnès Varda nasceu em 1928 na Bélgica, mas em 1940, por causa da Segunda Guerra Mundial, sua família se mudou para Sète, uma cidade marítima na França. Em 1951, quando Varda se mudou para a capital para estudar história e fotografia na École des Beaux-Arts, ela morou na Rue Daguerre e permaneceu naquele bairro por mais de 25 anos. Para quem não sabe o nome da rua é uma homenagem à Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), um pintor francês, inventor do primeiro processo fotográfico comercialmente bem-sucedido que, ao invés de receber o nome de 'fotografia' passou a se chamar 'daguerreótipo', palavra que dá título ao filme. No documentário Varda retrata a vida de lojistas e moradores dessa rua, pessoas com as quais ela convivia no dia a dia. Por meio de uma série de vinhetas intimistas, ela explora as rotinas, histórias e relacionamentos de padeiros, açougueiros, alfaiates e outros pequenos empresários locais, oferecendo um registro delicado, sincero e autêntico de uma comunidade enraizada na tradição em meio à paisagem urbana em evolução. São lojas e pessoas que atualmente já não existem mais. A cereja do bolo são as simulações de "daguerreótipos" que Varda produz com sua câmera de filmagem. Numa espécie de reverência à Daguerre, ela pede para esses comerciantes posarem estáticos em frente à filmadora, assim como se fazia antigamente no processo de Daguerre cujo registro da imagem se dava muito lentamente. Esses "retratos" obtidos por ela são de uma poesia inenarrável, transformando o documentário numa reflexão existencial, uma meditação aberta sobre a natureza e o valor da arte e da vida. Imperdível.

15.9.25

“A Mulher na Lua” – Fritz Lang (Alemanha, 1929)

Sinopse:
Georg Manfeldt (Klaus Pohl) é um cientista que descobre a existência de ouro na Lua. Ao apresentar suas ideias à comunidade científica ele é desmoralizado. Vivendo no ostracismo ele possui um único amigo, o sr. Wolf Helius (Willy Fritsch), um industrial da aviação que acredita no cientista e quer levar suas ideias adiante. Ocorre que um grupo de empresários interessado no ouro contrata Walter Turner (Fritz Rasp) para roubar e chantagear Helius. Como se isso não bastasse, Hans Windegger (Gustav von Wangenheim), parceiro de Helius, toma conhecimento das pressões que Helius está sofrendo e acaba se juntando a eles nessa viagem à lua, na qual embarcam também o cientista e a astrônoma Fried Velten (Gerda Maurus), noiva de Windegger.
Comentário: Fritz Lang (1890-1976) foi um cineasta, realizador, argumentista e produtor nascido na Áustria, mas que dividiu sua carreira entre a Alemanha e Hollywood. É considerado uma das maiores figuras do cinema alemão, e o mais notável e proeminente diretor a emergir da escola do expressionismo alemão, juntamente com Friedrich Wilhelm Murnau, muito embora Lang tenha sempre negado qualquer relação com o movimento expressionista. Assisti dele as obras-primas "Dr. Mabuse – Partes 1 e 2” (1922), "Metrópolis" (1927) e "M, O Vampiro de Dusseldorf" (1931), os ótimos "Vive-se Só Uma Vez" (1937) e "Quando Desceram as Trevas" (1944), o mediano "O Segredo da Porta Fechada" (1947) e o curioso “A Morte Cansada” (1921). Desta vez vou conferir “A Mulher na Lua” (1929), baseado na novela de Thea von Harbou de mesmo nome.
Aldo Von Wangenheim da Universidade Federal de Santa Catarina - e curiosamente sobrinho-neto do ator Gustav von Wangenheim que trabalha no filme - nos explica que “O filme de 1929 ‘A Mulher na Lua’ (...) é considerado o primeiro filme de ‘hard science-fiction’, gênero bem mais tarde tornado imortal pelo ultraclássico ‘2001, Uma Odisseia no Espaço’ de Stanley Kubrick (1968).
Em um filme de ‘hard science-fiction’ cria-se um enredo onde é admitido um único item fantasioso (muitas vezes central para a trama, como no caso do ‘monólito’ de Kubrick) e todo o resto se atém o mais fielmente possível aos conhecimentos científicos vigentes na época em que o filme foi produzido. Essa ficção científica ‘séria’ tenta seguir o rigor científico ao extremo, explorando narrativas que são (...) cientificamente plausíveis, ao contrário dos filmes de fantasia como ‘Guerra nas Estrelas’, onde a liberdade criativa da narrativa é grande”.
Jorge Luiz Calife do site Diário do Vale escreveu uma matéria em 2017 comentando que “A Mulher na Lua” é a obra mais profética de Fritz Lang. O texto diz: “Sabem aquela contagem regressiva que antecede o lançamento de todo foguete moderno? 5,4,3… Não foi a Nasa que inventou, foi Fritz Lang que criou esse recurso para aumentar o suspense em seu filme, rodado nos estúdios da UFA, em Berlim. No ano de 1928. Em uma época em que não existiam nem aviões a jato, o cineasta alemão queria mostrar uma viagem à Lua com o maior realismo possível. Para isso ele contratou a consultoria do cientista Herman Oberth, que era um dos maiores especialistas em foguetes da época.
O filme é um melodrama, que envolve um triângulo amoroso durante uma viagem ao espaço. Mas os detalhes técnicos ainda impressionam noventa anos depois. O enorme foguete, de três estágios, é montado verticalmente em um grande hangar. E se desloca sobre uma plataforma móvel até o local do lançamento. Exatamente como o Saturno 5, que lançou a Apollo 11 em 1969, quarenta anos depois. E a separação dos vários estágios, durante a subida, é exatamente como acontece hoje em dia, nos foguetes modernos.
Mas Lang pagou um preço caro pelo realismo do seu filme. Quando Hitler subiu ao poder sua polícia secreta, a Gestapo, mandou confiscar todas as cópias do filme, por acreditar que ele revelava os segredos da tecnologia de foguetes da Alemanha. Tecnologia que foi usada para criar o míssil balístico V-2, usado para bombardear a Inglaterra. Até o belo modelo da espaçonave Friede foi confiscado e destruído durante a guerra.
Durante décadas os amantes do cinema só conheceram uma versão reduzida de ‘A Mulher na Lua’. Uma versão editada (...) distribuída nos Estados Unidos”. A versão original que possui 3h30m só surgiu depois de finalmente encontrarem uma cópia em um clube de cinema de Buenos Aires.
O que disse a crítica: Do site Plano Crítico avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Ele disse que o clima do filme é “essencialmente aventuresco” e que, apesar de boa parte da trama se passar na Terra, “as viradas são bastante efetivas para plantar as resoluções que primordialmente funcionam como o tal mote para o recomeço que o filme tanto acredita. De novo, a inocência acaba se reverberando, desta vez na figura feminina, como símbolo quase angelical para promover de forma ainda mais clara as novas descobertas como libertação da ânsia conflituosa de nossa natureza. E no amor da ciência, Lang nos faz acreditar nessa fantasia”.
O site Palavras de Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveram: “Entre maquetes e cenários curiosos, Lang constrói uma obra que não cai em excessos. (...) Por outro lado, Lang leva o material a sério e contra a ciência perigosa lança personagens carregados de emoção, às vezes até infantis. O excesso de sentimentalismo não se dá ao acaso. O cinema mudo não permite que ele se perca em palavras bobas: está tudo no olhar (...)”.
O que eu achei: Trata-se de um filme mudo, feito na Alemanha, com duração de 2h48m (originalmente tinha 3h30m), do mestre do cinema Fritz Lang, autor de obras como "Dr. Mabuse” (1922), "Metrópolis" (1927) e "M, O Vampiro de Dusseldorf" (1931). Embora sua longa duração pudesse sugerir algo arrastado, "A Mulher na Lua" (1929) revela-se uma obra surpreendentemente dinâmica, dividida em três partes bem distintas: o primeiro terço, na Terra, apresenta os personagens e o projeto da viagem; o segundo, a jornada espacial; e, por fim, a chegada e a permanência na Lua. O que impressiona é como Lang, em pleno cinema mudo, consegue criar uma narrativa de ficção científica envolvente, mesclando aventura, romance e um certo suspense em torno da exploração espacial. A atenção aos detalhes técnicos - fruto de uma pesquisa cuidadosa - torna a experiência ainda mais fascinante, principalmente ao lembrar que o filme foi feito décadas antes da corrida espacial se tornar realidade. Visualmente, o filme é um espetáculo. Os cenários e efeitos especiais, embora datados para os padrões atuais, possuem uma inventividade que mantém seu encanto quase um século depois. E a história, bem estruturada, prende a atenção em todas as etapas, sem jamais perder o ritmo. Assim como Georges Méliès já havia surpreendido à todos com seu curta "Viagem à Lua" (1902), em "A Mulher na Lua", Fritz Lang prova ser um visionário, capaz de unir entretenimento e reflexão num mesmo filme. Para quem aprecia o cinema mudo e as origens da ficção científica no cinema, esta é uma obra indispensável.

14.9.25

"Better Man – A História de Robbie Williams" - Michael Gracey (Reino Unido/ EUA/China/França/Austrália, 2024)

Sinopse:
 
Cinebiografia do cantor britânico Robbie Williams (Jonno Davies/Robbie Williams) mostrando a história da ascensão, a queda e a ressurreição inesperada do cantor, que hoje é consagrado como um dos artistas britânicos mais vendidos de todos os tempos.
Comentário: Michael Gracey (1997) é um cineasta australiano que começou sua carreira trabalhando com efeitos visuais, videoclipes e publicidade. Ele é mais conhecido por dirigir os filmes "O Rei do Show" (2017) inspirado na vida do empresário circense americano Phineas Taylor Barnum e "Pink: All I Know So Far" (2021), um documentário sobre a cantora e compositora norte-americana Pink. "Better Man - A História de Robbie Williams" (2024) é o primeiro filme que vejo dele.
O site GShow nos conta que "A escolha de retratar Robbie Williams como um chimpanzé em sua cinebiografia tem chamado a atenção do público. 'Better Man - A História de Robbie Williams', (...) narra a trajetória do artista desde sua infância e revela a forma como ele se vê: um macaco performático.
Nascido em Londres em 1974, Robbie Williams iniciou a carreira aos 16 anos no grupo Take That, uma boyband britânica que vendeu mais de 50 milhões de cópias em apenas cinco anos de existência. O cantor lançou sua carreira solo em 1995 e se tornou um dos maiores nomes da música pop com hits como 'Feel', 'Rock DJ' e 'Angels', que ganhou uma versão brasileira na voz do grupo KLB.
A canção 'Sexed Up' foi um sucesso especial no Brasil como tema do casal Marina (Paloma Duarte) e Diogo (Rodrigo Santoro) na novela 'Mulheres Apaixonadas'. A obra também ganhou uma versão interpretada por Leonardo com o título 'Eu Sei Que Te Perdi'.
Apesar de todo o sucesso, Robbie se sentia como um macaco de circo durante o auge da fama: era vigiado e pressionado a entreter o público. A revelação inspirou o diretor Michael Gracey a usar computação gráfica para transformar o ator Jonno Davies, intérprete de Williams, em um chimpanzé. O resultado garantiu a 'Better Man' uma indicação ao Oscar 2025 de Melhores Efeitos Visuais.
Com um olhar único para a vida de um ídolo pop, o longa promete emocionar o público com um espetáculo que passa pela montanha-russa dos altos e baixos que o astro britânico viveu em seus 35 anos de carreira".
O que disse a crítica: Nathalia Jesus avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse: "Se você é fã de Robbie Williams ou aprecia filmes que exploram os altos e baixos de figuras públicas de maneira criativa, 'Better Man' é uma boa pedida. Inclusive, é um filme tão honesto que não permite que o cantor seja visto somente pela ótica romântica aplicada em produções cinematográficas que contam com seus biografados na produção - porque, sim, o cantor está envolvido diretamente na obra, mas nem por isso ele é retratado como um mocinho defendido incondicionalmente pelo roteiro. No entanto, se o que você busca é uma biografia mais tradicional e coesa, que explore as profundezas emocionais do personagem sem distrações, pode ser que o filme deixe a desejar".
Caio Coletti do site Omelete avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: "O roteiro assinado por Gracey com os estreantes Oliver Cole e Simon Gleeson acerta em cheio ao fazer dos altos e baixos da vida do popstar britânico (...) uma espécie de ode às incongruências da instituição da fama como a conhecemos desde meados do século XX. Narrativamente, 'Better Man' abraça o amor absurdo que temos pela celebridade, a validação que encontramos no aplauso do outro, o anseio insaciável que nutrimos por ouvir que somos especiais, que somos alguém, que nossa identidade existe também nos olhos de quem nos vê".
O que eu achei: Trata-se da cinebiografia do cantor e compositor Robbie Williams. O diretor Michael Gracey, que já se dedicou anteriormente a retratar o empresário circense americano Phineas Taylor Barnum e a cantora e compositora Pink, desta vez resolveu contar a vida deste cantor que se tornou um expoente da música pop da Inglaterra. Numa narrativa linear que obedece à cronologia dos acontecimentos, o longa parte de sua infância e segue rumo à atualidade, mostrando desde sua vida junto a sua mãe e avó, seus atritos com o pai, seu envolvimento com as drogas, seu ingresso na boyband Take That até culminar na sua carreira solo. O curioso do filme é que como o diretor ouviu uma declaração do próprio cantor dizendo que ele se sentia como um macaco de circo – pelo fato de ser vigiado e pressionado a entreter o público – ele resolveu transformar o ator Jonno Davies, intérprete de Williams, em um chimpanzé. A computação gráfica foi tão bem feita que o longa foi indicado ao Oscar de Efeitos Visuais. Essa alteração foi o pulo do gato para tirar a cinebiografia do lugar comum. Então não espere ver o próprio Robbie Williams em cena ou algum galã o representando. O máximo que você terá dele será a voz que não só narra a história como também dubla o primata. Mesmo que você não seja fã do artista, "Better Man" vai te fisgar e te prender até o fim. É um filme diferente, estranho, divertido, um truque que tinha tudo para dar errado, mas que deu super certo. Vale ver.

9.9.25

"Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" – David Lynch (EUA/França, 1992)

Sinopse:
O agente do FBI Chet Desmond (Chris Isaak) e seu parceiro Sam Stanley (Kiefer Sutherland) investigam o assassinato da garçonete Teresa Banks (Pamela Gidley), em uma pequena cidade do estado de Washington. Após descobrir uma pista do misterioso crime, Chet desaparece a alguns quilômetros da cidade de Twin Peaks. Um ano depois, outra morte parece estar conectada a este acontecimento: o assassinato de Laura Palmer (Sheryl Lee), uma adolescente viciada em drogas que vive seus últimos dias entre indecisões amorosas que a levam a alternar como amantes dois colegas de escola: o problemático Bobby (Dana Ashbrook) e o introspectivo James (James Marshall).
Comentário: David Lynch (1946-2025) foi um diretor, roteirista, produtor, artista visual, músico e ator norte-americano. Conhecido por seus filmes surrealistas, ele desenvolveu um estilo cinematográfico próprio. Assisti dele: a obra-prima "O Homem Elefante" (1980), os ótimos "A Estrada Perdida" (1997), "Cidade dos Sonhos" (2001) e "Império dos Sonhos" (2006), o bom “Veludo Azul” (1986), o mediano "Coração Selvagem" (1990), os curiosos "Eraserhead" (1977) e “What Did Jack Do?” (2017) e o não tão interessante “Duna” (1984). Assisti também às temporadas 1 e 2 do seriado "Twin Peaks" (1990-1991) feito em parceria com Mark Frost.
O longa é uma prequela da série de televisão "Twin Peaks" que foi ao ar inicialmente nos anos 1990 e 1991. Como a série foi cancelada por falta de audiência devido a desentendimentos de Lynch com um executivo da TV, Lynch resolveu aproveitar a história desenvolvida no seriado – sobre o assassinato de uma jovem moradora da cidade americana de Twin Peaks – para fazer esse longa que se passa temporalmente antes do seriado.
Nele vamos ver como começou a investigação do FBI sobre o assassinato de Teresa Banks (Pamela Gidley) – ela é citada no seriado - e, em seguida, vamos saber como foram os últimos sete dias da vida de Laura Palmer (Sheryl Lee), uma estudante popular, porém problemática, do ensino médio.
O site Wikipédia nos conta que embora a maior parte do elenco [do seriado] tenha reprisado seus papéis no filme, muitas cenas relativamente leves com moradores da cidade foram cortadas. Além disso, o astro principal da série, Kyle MacLachlan (Dale Cooper), pediu que seu papel fosse reduzido, e a personagem Donna Hayward, interpretada por Lara Flynn Boyle, não quis prosseguir, então foi substituída por Moira Kelly.
Sherilyn Fenn (que interpretava Audrey Horne no seriado) e Richard Beymer (que fazia o papel de Benjamin Horne) também não quiseram participar do filme. As ausências foram inicialmente atribuídas a conflitos de agenda, no entanto, Fenn acrescentou em 1995 que não quis retornar porque "estava extremamente decepcionada com a maneira como a segunda temporada saiu dos trilhos".
"Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" estreou no Festival de Cinema de Cannes de 1992 na competição pela Palma de Ouro. O filme foi notoriamente polarizador: Lynch disse que o filme foi vaiado em Cannes, e a imprensa americana em geral o criticou. O filme foi controverso por sua representação franca e vívida do relacionamento entre pai e filha, sua relativa ausência de personagens favoritos dos fãs e seu estilo surrealista. O filme foi um fracasso de bilheteria na América do Norte, mas se saiu melhor no Japão e na França. Devido à má recepção, os planos para uma sequência foram [a princípio] abandonados.
Lynch e Mark Frost [que dirigia a série junto com Lynch] só receberam financiamento para produzir uma terceira temporada da série de TV bem depois desse filme, em 2017. E apenas em 2019, o British Film Institute reviu o longa e o classificou como o quarto melhor filme da década de 1990.
O que disse a crítica: Renato Cabral do site Papo de Cinema avaliou com 2,5 estrelas, ou seja, regular. Disse: "Um tanto repudiada pelos fãs mais fervorosos do diretor, a produção começa quando dois detetives recebem a missão de investigar a morte de Teresa Banks, ela que tinha um estilo de vida similar ao de Laura. De uma hora para outra, porém, Lynch decide esquecer a investigação de Teresa para entrar no mundo de Laura. Não existem grandes sutilezas, o diretor pouco se importa com pontos soltos ou em retornar mais à frente aos personagens da trama inicial. É uma introdução desleixada da parte de Lynch, já que ele não a desdobra ou a explora da melhor forma possível. Não são cenas de uma apresentação gratuita, mas, vistas no geral, acabam soando enfadonhas e mal trabalhadas".
Luiz Santiago do site Plano Crítico avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: " A nossa sorte é que mesmo diante do caos, há informações valiosas fornecidas ao público da série, porém, quem nunca viu o programa simplesmente estará diante de um enigma. Este é um filme para iniciados e isso faz dele uma porta de entrada para a discussão de alguns mistérios de 'Twin Peaks'. Pena que a intenção inicial, de ser um 'primeiro contato' para novos espectadores, não tenha sido alcançada. A despeito disso, a obra ainda é uma marca interessante na filmografia de David Lynch".
O que eu achei: David Lynch, com seu talento inconfundível para transitar entre o onírico e o perturbador, entrega em "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" uma obra que transcende a simples ideia de um filme derivado de série. Realizado logo após o cancelamento da segunda temporada do seriado "Twin Peaks" (1990-1991), o longa não é um epílogo, mas um mergulho visceral naquilo que a televisão apenas insinuou: a tragédia íntima e sufocante de Laura Palmer, figura central do mistério que cativou milhões de espectadores. É fundamental assistir às duas temporadas do seriado antes de encarar o filme, pois apenas assim é possível compreender toda a carga emocional e a complexa rede de simbolismos que Lynch orquestra aqui. O filme, em vez de responder a todas as perguntas deixadas pelo seriado, aprofunda-se no terror psicológico e na atmosfera de pesadelo, mostrando sem filtros a espiral de desespero e vulnerabilidade que levou Laura ao seu destino fatal. A direção de Lynch brilha ao equilibrar momentos de beleza melancólica com explosões de horror surreal. A fotografia de Ron Garcia e a trilha sonora hipnótica de Angelo Badalamenti contribuem para uma imersão total, transformando a história de Laura numa espécie de lamento trágico envolto em mistério e dor. Sheryl Lee, no papel de Laura Palmer, oferece uma performance extraordinária, carregada de emoção e intensidade, que amplia tudo o que sabíamos sobre a personagem. Se na série Laura era um enigma, aqui ela ganha vida, humanidade e um peso dramático raramente visto em personagens antes apenas idealizados pela narrativa. Mais do que um complemento ao seriado, "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer" é um capítulo essencial para compreender a obra de David Lynch como um todo. É um filme que desafia o espectador, que exige entrega total e que permanece na mente muito depois de sua conclusão. Um trabalho sombrio e inesquecível que transforma a mitologia de "Twin Peaks" em algo ainda mais profundo e arrebatador.

8.9.25

“Jornada nas Estrelas IV – A Volta para Casa” - Leonard Nimoy (EUA, 1986)

Sinopse:
Marcados como fugitivos pela própria Federação que juraram proteger, os tripulantes da Enterprise voltam para a Terra para enfrentar a corte marcial por crimes cometidos ao salvar a vida de Spock (Leonard Nimoy). Em seu caminho, contudo, descobrem que o planeta está sendo devastado por uma gigantesca sonda alienígena, que exige uma resposta de uma forma de vida há muito extinta da Terra: as baleias jubarte. Dentro da nave klingon capturada, Kirk (William Shatner) e sua tripulação devem voltar no tempo para salvar a Terra.
Comentário: Leonard Nimoy (1931-2015) foi um ator norte-americano que ficou muito famoso por fazer o icônico papel de Spock no seriado “Jornada nas Estrelas” (Star Trek) que foi ao ar de 1966 a 1969. Porém sua vida profissional não se resume a isso. Ele também atuou na série clássica “Missão Impossível”, além de aparecer em episódios de “Agente 86” e “Bonanza” e, após sua aposentadoria, dedicou-se a diversos projetos artísticos explorando a poesia, a escrita, a pintura e a fotografia. Como diretor, assisti dele o bom longa “Jornada nas Estrelas III: À Procura de Spock” (1984) e, desta vez, vou conferir este outro longa que saiu logo na sequência chamado “Jornada nas Estrelas IV – A Volta para Casa” (1986).
Trata-se do quarto longa-metragem lançado após a série original “Star Trek” (Jornada nas Estrelas), que foi ao ar de 1966 a 1969, terminar.
Apenas relembrando a sequência, o primeiro longa foi “Jornada nas Estrelas: O Filme” (1979) com direção de Robert Wise, um filme que se passava 10 anos após o fim do seriado mostrando uma nave Enterprise mais moderna, reunindo quase todo o elenco. Na trama, o Almirante James T. Kirk (William Shatner) – que nesse momento ocupa um cargo interno administrativo – é chamado às pressas devido sua enorme experiência, para regressar à nova e transformada nave Enterprise para interceptar, examinar e, principalmente, deter uma entidade espacial destrutiva que é avistada aproximando-se da Terra.
O segundo longa “Jornada Nas Estrelas II: A Ira de Khan” (1982) com direção de Nicholas Meyer, mostra Kirk (William Shatner) de volta para seu posto administrativo, enquanto Spock (Leonard Nimoy) é quem está comandando a nave, com muita gente nova na tripulação. A nave está em uma missão relacionada ao dispositivo Gênesis, uma nova invenção que é capaz de semear um planeta árido com abundante natureza. Com isso, uma nave irmã chamada Reliant, sai em busca de planetas sem vida para fazer um teste com esse dispositivo e encontra um que parece estar morto, porém, ao chegar lá eles encontram o planeta habitado por um fora da lei chamado Khan (Ricardo Montalban), que foi exilado anos atrás por Kirk, então o que ele mais quer é vingança. Esse assunto é resolvido, mas termina com a morte de Spock, uma solução encontrada justamente para tirar Spock do elenco já que o ator Leonard Nimoy não queria mais participar desses longas.
O terceiro longa foi “Jornada nas Estrelas III: À Procura de Spock” (1984) que possui o próprio Leonard Nimoy na direção. Ele havia pedido para sair, se arrepende, e assume não só a direção do filme como volta a atuar, numa trama na qual o médico da Enterprise dr. McCoy (DeForest Kelley) herdou a essência de Spock (Leonard Nimoy) antes de sua morte e obviamente Kirk (William Shatner) não poupará esforços para atender um pedido do pai de Spock para que a nave localize o corpo dele em Gênesis para que seja possível ressuscitá-lo (sim, é possível, afinal ele é um vulcano). Claro que tudo isso com os aterrorizantes Klingons à espreita, para ter alguma graça. No elenco pode-se ver o ator Christopher Lloyd como Kruge, um comandante Klingon.
Com o personagem Spock de volta é que lançam “Jornada nas Estrelas IV – A Volta para Casa”, novamente com direção do Nimoy. No longa anterior a tripulação da Enterprise teve que deixar a nave Enterprise para poder explodi-la tendo a bordo os Klingons. Com isso, eles acabaram assumindo a nave deles – uma Ave de Rapina Klingon – com a qual eles terão que voltar à Terra para enfrentar a corte marcial devido aos diversos crimes cometidos para salvar a vida de Spock. Porém, enquanto eles se dirigem à Terra, uma sonda alienígena surge causando inúmeros problemas na Terra, ameaçando destruí-la. Percebendo que eles tentam se comunicar com uma espécie extinta há cerca de 200 anos – as baleias jubarte -, o grupo viaja no tempo até o século XX com a intenção de transportar um casal dos animais marinhos até o presente deles (século XXIII) e evitar a destruição.
O que disse a crítica: O site Formiga Elétrica gostou. Escreveram: “Nosso vulcano favorito voltou à direção e mostrou uma evolução e tanto, com uma trama mais leve e com vários momentos de humor. Nimoy estava bastante à vontade no comando desta aventura, aproveitando uma preocupação da época em que foi produzida: a extinção das baleias. Diversão garantida com o choque cultural entre a turma do futuro e o povo da década de 1980, com uma história simples, porém bem amarrada”.
Ritter Fan do site Plano Crítico avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: “’Jornada nas Estrelas IV: A Volta para Casa’ é, talvez, a culminação cinematográfica da Tripulação Original da Enterprise e de todo o sonho utópico de Gene Roddenberry. Usando artifício clássico da ficção científica com uma premissa para lá de estranha, o filme traz o difícil, mas sempre almejado equilíbrio perfeito entre comédia e sci-fi, abrindo espaço para seu elenco mostrar o que tem de melhor e, no processo, surpreender o espectador”.
O que eu achei: Entre os vários filmes da franquia "Jornada nas Estrelas", este de número IV denominado "A Volta para Casa", dirigido por Leonard Nimoy, se destaca por sua leveza, humor e mensagem ecológica, oferecendo uma experiência diferente sem perder a essência da saga. O filme mistura ficção científica e crítica ambiental de forma inteligente, com a tripulação da Enterprise viajando ao passado para salvar a Terra de uma ameaça inesperada - e tudo isso com um toque bem-humorado que conquista facilmente o público. O roteiro é ágil e divertido, equilibrando tensão e comicidade, enquanto o elenco, já entrosado e carismático, brilha ao explorar situações cotidianas do século XX com a ingenuidade e estranheza típicas dos personagens que vivem no século XXIII. Nimoy demonstra habilidade na direção ao manter o ritmo fluido e ao valorizar o tema da preservação ambiental, algo incomum na ficção científica da época, mas que ressoa ainda hoje. Embora alguns efeitos especiais mostrem a idade do filme, o charme do enredo, o humor afiado e a química do elenco fazem de "Jornada nas Estrelas IV - A Volta para Casa" uma aventura envolvente e divertida para os fãs da franquia e para quem gosta de boa ficção científica com consciência ecológica.

7.9.25

"História & Geografia" - Bernardo Quesney (Chile, 2023)

Sinopse:
Gioconda Martínez (Amparo Noguera) é uma adorada atriz cômica de televisão que decide retornar à sua cidade natal, San Felipe, para encenar uma peça baseada no poema "La Araucana" sobre a conquista do Chile. Ela espera recuperar o reconhecimento artístico que acredita ter perdido, mas que na verdade nunca teve.
Comentário: Bernardo Quesney (1989) é um cineasta chileno. Ele estreou como diretor aos 22 anos com “Efeitos Especiais” (2011). Em 2014 escreveu e dirigiu “Desastres Naturais”. Dirigiu mais de 30 videoclipes no Chile, Argentina, México e Espanha. "História & Geografia" (2023) é o primeiro filme que vejo dele.
Sofía García-Huidobro do site Diario Financiero nos conta que tudo acontece em San Felipe. Bernardo Quesney (32 anos) nasceu e cresceu nesta cidade da V Região, foi lá que ele conheceu seus amigos Milton Mahan e Mariana Montenegro, ex-integrantes da dupla chilena indie Dënver e foi lá que ele filmou seu mais recente filme "História & Geografia".
Em entrevista o cineasta chileno explicou que o filme é sobre uma atriz madura chamada Gioconda Martínez (interpretada por Amparo Noguera), reconhecida por interpretar personagens cômicas na televisão e que, buscando fazer algo 'mais sério', decide encenar uma peça que aborde a temática mapuche, tendo como texto base o poema épico "La Araucana" de Alonso de Ercilla, publicado entre 1574 e 1589, que relata a primeira fase da Guerra de Arauco entre espanhóis e mapuches. Esse poema ainda é ensinado nas escolas, mas agora é lido como uma versão romantizada da conquista.
Decisões como a escalação de atores haitianos para interpretar os personagens mapuches da peça, somadas a uma série de erros, revelam a falta de conhecimento da personagem sobre o assunto e a levam a todo tipo de situações ridículas. Ela também dialoga com a realidade local já que a peça será encenada na cidade de San Felipe que, desde 2016, vem acolhendo inúmeros haitianos que se estabelecem ali com sonhos, muitas vezes não realizados, de uma vida melhor.
"O filme faz piada com muitas coisas, mas não se trata apenas de fazer piada com as coisas; trata-se de tentar entender. É uma comédia, mas tem mais uma pegada de humor constrangedor", explica o diretor, que trabalhou com o escritor e roteirista Simón Soto e foi aconselhado por Diego Ayala.
"Ser ator é um pesadelo: o processo de seleção de elenco é assustador, o salário geralmente não é tão bom, você é rotulado e as pessoas te julgam. Conheci muitos atores, e eles enfrentam uma onda de inseguranças. Um projeto termina e eles se sentem vazios; não sabem o que vem a seguir. Sofrem com a exposição, mas ainda gostam" diz Quesney. "Além disso, a profissão é cruel especialmente com as mulheres. Enquanto os protagonistas homens podem ter 55 anos, mas suas parceiras estão cada vez mais jovens". Essa insegurança pode se traduzir em comportamentos erráticos como os da personagem Gioconda Martínez em "História & Geografia".
No elenco, além de Amparo Noguera, estão os atores Catalina Saavedra, Paulina Urrutia, Pablo Schwarz e Paloma Moreno, além de vários personagens secundários interpretados por moradores de San Felipe que participaram de um casting local.
O que disse a crítica: Mao Osório do site La Fuga gostou. Disse: "Em linhas gerais, 'História & Geografia' aborda o problema da representação como uma das causas centrais da desconexão entre a arte e seu público. A escolha de 'La Araucana', de Alonso de Ercilla, como obra fundadora da nação chilena não é acidental; o filme sugere que esta obra, mais do que um relato histórico, é uma poesia épica, sublinhando um conflito de representação desde as origens do Chile como nação. Ao trazer este texto para o presente, o filme não apenas expõe tensões culturais atuais, mas também nos convida a questionar como as narrativas oficiais moldam nossa percepção da arte e da identidade".
O site Infobae também gostou. Escreveram: "A narrativa de Quesney se destaca por sua originalidade, abordando com ousadia e humor temas históricos e culturais delicados, convidando à reflexão sobre a identidade chilena a partir de uma perspectiva inovadora e provocativa. Assim, este filme se apresenta não apenas como uma obra de entretenimento, mas também como um veículo de diálogo e introspecção. Utilizando cenários naturais da pitoresca cidade de San Felipe (região de Valparaíso, centro do Chile), 'História & Geografia' conseguiu capturar a beleza da paisagem e a essência de sua cultura, promovendo assim um intercâmbio enriquecedor entre tradição e inovação artística".
O que eu achei: Por conta de uma indicação dada pelo diretor Walter Salles, resolvi assistir o longa "História & Geografia" (2023) do chileno Bernardo Quesney. O filme fala sobre os problemas que você se arruma ao abraçar a profissão de ator. Os constrangimentos já começam no casting, aquele momento no qual você se submete a um teste de elenco onde será julgado pela sua atuação. Se reprovado você lida com a frustração e a sensação de tempo perdido, se aprovado segue para a atuação propriamente dita onde, não só o diretor do espetáculo te julga, mas seus colegas, o público e a crítica especializada. Ao terminar o trabalho vem o vazio, a falta de rumo, a ansiedade e a depressão. Fora os problemas com a fama que faz com que sua vida seja vasculhada, exposta, julgada e talvez cancelada. O próprio diretor concedeu uma entrevista dizendo que é inacreditável como muitos gostam de levar essa vida. Na trama a atriz Gioconda Martínez (interpretada por Amparo Noguera), filha de um dramaturgo, atinge a fama conseguindo um papel num seriado humorístico contextualizado no final da ditadura chilena no qual ela diz basicamente uma única fala: 'Deus dá o pão a quem não tem dentes'. O seriado é de péssimo gosto e seu papel é constrangedor, fazendo com que sua fala repetida inúmeras vezes vire um bordão. Com isso, quando o seriado acaba, ela fica marcada por esse personagem popular e sem rumo. Famosa, mas incompetente, ela sai batendo cabeça à procura de um novo papel. Ao ser reprovada em todos e vendo que atores e diretores mais consagrados a evitam, ela resolve voltar à sua cidade natal para dirigir uma peça baseada no romance "La Araucana" de Alonso de Ercilla que conta, de forma fantasiosa e poética, as origens do Chile como nação. O filme, catalogado como comédia, poderia ter seu gênero ampliado para 'comédia cáustica desoladora' frente às escolhas equivocadas que Gioconda fará no decorrer de sua empreitada. O longa consegue mesclar humor afiado com uma reflexão sobre a história chilena, especialmente em temas como a conquista e a cultura mapuche, expondo ironias como o progressismo superficial, o fetichismo indígena e a desconexão cultural entre a elite e o público de massa. Além disso a narrativa foca intensamente a autoindulgência artística e as contradições do sistema cultural chileno. Entretanto, embora o humor funcione bem, os elementos mais dramáticos nem sempre alcançam a mesma força, deixando o drama e a tensão social vividos pela atriz de lado, finalizando como um filme regular cujo maior valor é abordar de forma espirituosa os temas propostos.

6.9.25

“Persépolis” - Marjane Satrapi & Vincent Paronnaud (França/EUA, 2007)

Sinopse:
Marjane Satrapi é uma garota iraniana de 8 anos que sonha em se tornar uma profetisa para poder salvar o mundo. Querida pelos pais e adorada pela avó, Marjane acompanha os acontecimentos que levam à queda do Xá em seu país, juntamente com seu regime brutal. Tem início a nova República Islâmica, que controla como as pessoas devem se vestir e agir. Isto faz com que Marjane seja obrigada a usar véu, o que a incentiva a se tornar uma revolucionária.
Comentário: Pablo Villaça do site Cinema em Cena nos conta que “’Persépolis’ é uma animação que inclui estupro, morte de manifestantes em uma passeata, execução de presos políticos e uma conversa entre Deus e Marx. Não é, portanto, um filme feito para crianças, mas sim para adolescentes e adultos (...).
Adaptado e dirigido por Vincent Paronnaud e Marjane Satrapi a partir da graphic novel autobiográfica (dividida em quatro volumes) escrita por esta última, ‘Persépolis’ segue a trajetória de amadurecimento de sua protagonista a partir de seu relacionamento conturbado com seu país, o Irã, cuja história mais recente é recapitulada numa maravilhosa sequência estrelada por bonecos de papel, quando vemos o futuro Xá Reza Pahlevi entregar o petróleo de seu país à Inglaterra em troca do apoio para subir ao poder – o que não impediu que ele fosse eventualmente substituído pelo filho ainda mais repressor. E é assim que chegamos a 1979, quando a pequena Marjane, aos 9 anos de idade, testemunha o golpe que levaria o Aiatolá Khomeini ao controle da recém-declarada (com apoio da população) República Islâmica – o que conduziria o Irã a um estado ainda maior de repressão e medo, além de uma longa e sangrenta guerra com o Iraque de Saddam Hussein.
Narrado a partir do infantil ponto de vista da protagonista, o filme acompanha todos estes acontecimentos com um ar de mistério e até fantasia que os tornam ainda mais assustadores, embora a incapacidade da garota de absorver a gravidade de tudo permita que ela também os enxergue de forma distanciada, através de um véu de ingenuidade que traz até mesmo um forte e bem-vindo senso de humor à narrativa. Assim, a preferência de Marjane por representantes da música ocidental, proibida no Irã, levam a divertidas buscas de fitas no mercado negro (...) e a confrontos que beiram o absurdo graças à sua jaqueta que traz uma afirmação hilária naquele contexto. E se fiz ‘Persépolis’ parecer uma obra séria e sombria nos parágrafos anteriores, perdoem-me, pois o fato é que o longa jamais deixa de provocar o riso graças à sua abordagem sempre inventiva.
Construído com claras influências expressionistas (em certo momento, há uma referência especialmente eficaz a ‘O Grito’, de Munch), o filme investe num preto-e-branco marcante – e mesmo as cenas ambientadas no presente são coloridas em tons nada intensos. Da mesma maneira, o design de produção contribui para que mergulhemos na realidade entristecida e opressora de um país que encontra, na repressão, uma maneira cruel de manter-se estável (...).
Enriquecido pela maravilhosa dublagem da pequena Gabrielle Lopes, que empresta sua voz à versão infantil de Marjane, ‘Persépolis’ também conta com um elenco de peso que traz Chiara Mastroianni como a protagonista na adolescência e em sua fase adulta; Catherine Deneuve como sua mãe; e a veterana Danielle Darrieux no papel da divertida, sensata, forte e cativante avó da menina”.
O filme recebeu uma indicação ao Oscar e uma ao European Film Awards de Melhor Filme. Ganhou o Prêmio do Público de Melhor Filme Estrangeiro, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
O que disse a crítica: Pedro Butcher da Folha SP avaliou com bom. Disse: “É raro ver no cinema uma representação tão honesta das vicissitudes da adolescência, sublinhadas, aqui, por uma transformação histórica que torna tudo mais difícil. A autora foi acusada de desprezar o Irã e bajular a França, país onde mora até hoje - uma reação exagerada que procura diminuir a maior qualidade de ‘Persépolis’, que é sua recusa a cair na esparrela de defender formas de opressão em nome de ‘diferenças culturais’. Satrapi não se omite e paga um preço por isso. ‘Persépolis’ é, sim, crítico ao Irã, mas, ao contrário do que pregam seus detratores, defende a diferença”.
Neusa Barbosa do Cineweb avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: “O filme tem uma pegada feminista, inevitável no contexto que retrata. Por sorte, Marjane teve pais com cultura e dinheiro suficiente para preservar sua liberdade, educando-a longe do país naquele momento extremo – embora ao preço inegável, para a menina, de crescer sozinha em ambientes não raro hostis a estrangeiros, especialmente uma iraniana. O fundamentalismo da Europa ocidental também existe e, como se sabe, seu alvo preferencial é voltado a muçulmanos. Mesmo lidando com vários temas densos, o filme consegue ser divertido em vários momentos. E, o que é melhor, sem fazer concessões comprometedoras”.
O que eu achei: Muito interessante conhecer a história recente do Irã através de uma animação. O filme se baseia na HQ homônima escrita por Marjane Satrapi que nasceu em 1969 no Irã e passou sua infância e parte da juventude no país, presenciando, junto com seus pais, a chamada Revolução Iraniana de 1979. Com isso vamos observar como o país que vivia uma monarquia autocrática pró-Ocidente comandada pelo Xá Reza Pahlevi se transforma, com a ajuda da população, numa república islâmica teocrática sob o comando do aiatolá Khomeini, piorando sobremaneira o que já não era bom. A utilização do véu pelas mulheres, os novos conteúdos ensinados nas escolas, a perseguição política aos opositores do regime e as consequências da Guerra Irã-Iraque são tratados pela autora com um aguçado senso de humor em muitas passagens, mostrando uma perspectiva feminista de oposição à opressão sofrida pelas mulheres. Frente a isso seus pais optaram por enviá-la para fora do país. Era melhor ficar longe dela do que vê-la crescer num ambiente tão hostil. Conta-se que Marjane – que hoje vive na França - a princípio escreveu essa autobiografia sem grandes pretensões, apenas para que seus amigos conhecessem sua história. No fim a HQ fez tanto sucesso que traduziram para diversas línguas, inclusive o português, e acabou virando filme. Em tempo, o título "Persépolis" – cuja a tradução seria Cidade Persa - se refere a uma das capitais do Império Aquemênida. Sua construção, começada por Dario I em 512 AC, continuou ao longo de dois séculos até à conquista do Império persa por Alexandre Magno. Atualmente é um importante sítio arqueológico e Patrimônio Mundial da UNESCO. Uma animação para adultos e adolescentes bastante recomendada para quem quiser conhecer um pouco mais sobre o Irã. Boa pedida.