1.8.25

"The Underground Railroad: Os Caminhos Para a Liberdade" - Barry Jenkins (EUA/Reino Unido/Tailândia, 2021)

Sinopse:
 A história se passa em meados de 1800, pouco antes da Guerra Civil americana (1861-1865). Cora (Thuso Mbedo) é uma jovem escrava em uma fazenda na Georgia, e sua vida ficará ainda mais sofrida por estar prestes a atingir a maioridade. Mas seu futuro parece mudar quando Caesar (Aaron Pierre), um escravo recém-chegado da Virgínia, lhe fala sobre a rota de fuga pelas ferrovias subterrâneas.
Comentário: Trata-se de uma minissérie em 10 episódios dirigida pelo norte-americano Barry Jenkins, mesmo diretor dos excelentes longas “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (2016) e “Se a Rua Beale Falasse” (2018).
Mariane Morisawa da Revista Continente nos conta que "No início de sua carreira como cineasta, Barry Jenkins propôs a si mesmo três projetos: um que falasse de sua vivência na infância, uma adaptação de James Baldwin e uma exploração da condição de escravidão nos Estados Unidos. Aos 41 anos, ele já completou os três, com 'Moonlight: Sob a Luz do Luar' (2016) – vencedor de três Oscars, incluindo Melhor Filme –, 'Se a Rua Beale Falasse' (2018) – que deu o Oscar de Atriz Coadjuvante a Regina King – e agora a minissérie 'The Underground Railroad: Os Caminhos Para a Liberdade' (2021). (...)
A oportunidade de adaptar o romance de Colson Whitehead, vencedor do Pulitzer e do National Book Award, surgiu antes mesmo do lançamento de 'Moonlight'. Jenkins se encantou pelo livro, que usa elementos de ficção científica para contar não apenas uma história de pessoas negras escravizadas, como das várias formas de racismo e violência que seres humanos negros sofriam e sofrem nos Estados Unidos.
'Underground Railroad' é o nome dado a um conjunto de caminhos (...) e esconderijos que ajudou milhares a fugirem das fazendas e plantações do sul do país em direção ao norte e ao Canadá. No livro, é transformado em uma ferrovia literal, subterrânea, que carrega com dignidade aqueles que conseguem escapar.
Quando ouviu falar pela primeira vez da 'ferrovia subterrânea', ainda menino, Jenkins foi levado pela imaginação infantil a pensar numa linha real, como no livro. Mas essa não foi a única razão pela qual ele quis adaptar o romance – além de sua qualidade, claro. Houve uma frase em particular: 'Olhe para fora nessa viagem pelos trilhos e você verá a verdadeira face da América'. Se você está no subterrâneo e olha para fora, pensou Jenkins, o que vê? Preto. Havia tantas histórias sobre a experiência negra e como ela se relaciona à fundação dos Estados Unidos que não tinham sido contadas. Sendo assim, será que todos os norte-americanos viram a face real de seu país? Ali, o cineasta soube que tinha de fazer a adaptação, como vemos em algumas de suas entrevistas, que podemos acessar no Youtube ou no material de divulgação do filme. (...)
No caso [do livro] 'The Underground Railroad', lançado no Brasil pela editora Harper Collins, havia também uma certa trepidação, já que se trata de um dos romances mais celebrados dos últimos anos. Mas não só. O cineasta sabia que mostrar o trauma negro na tela é um assunto delicado, e muito se tem discutido sobre isso nos Estados Unidos, que a experiência negra não pode se resumir a histórias de escravização, segregação e brutalidade policial. (...)
E foi por isso que, apesar do medo e dos avisos de amigos e familiares de que não deveria tocar no assunto escravidão, o diretor foi em frente. Porque ele pensou não só em como o assunto era abafado na universidade, mas também na escola. Uma coleção de depoimentos de pessoas escravizadas, realizada na década de 1930, nunca esteve disponível para o aluno Barry Jenkins. Hoje mesmo, há legisladores tentando bloquear o Projeto 1619, lançado por Nikole Hannah-Jones, no 400º aniversário da chegada dos primeiros africanos escravizados às praias dos Estados Unidos. Enquanto há dezenas de produções sobre o Holocausto, existem poucas ainda sobre a escravização de seres humanos africanos que foram fundamentais para a transformação do país numa superpotência mundial. Suas histórias foram apagadas da história com 'H' maiúsculo.
As imagens podiam ser duras, mas eram necessárias, acreditava Jenkins. Por isso, ele optou por uma minissérie em 10 episódios em vez de um filme, a fim de dar espaço para a história e o espectador respirarem. A obra foi lançada toda de uma só vez, mas assistir de uma só vez é opção do espectador – uma opção não-recomendada. Barry Jenkins entende que pode ser demais para alguns, mas também não achava justo esconder a brutalidade e a crueldade do sistema. A questão era como filmar.
'The Underground Railroad' é a história de Cora (Thuso Mbedu). Nascida numa fazenda no estado da Geórgia, ela foi abandonada pela mãe Mabel (Sheila Atim) e desprezada até pelos seus pares. Caesar (Aaron Pierre), que um dia vislumbrou a liberdade, mas foi traído, tenta convencê-la a fugir. Cora só se convence ao ver uma cena insuportável – e, para o espectador, é igualmente difícil. Ainda assim, é nítido que Jenkins evita o prolongamento além do necessário, a violência extrema o tempo todo. A vítima daquela violência mantém sua dignidade. Indignos são os brancos, os donos da fazenda, os espectadores voluntários. A situação fica muito evidente – e tem de ser, porque Cora decide, a partir dali, que é melhor morrer tentando fugir do que ficar. E, assim, Jenkins prefere justamente mostrar o terror e a raiva no rosto de quem é obrigado a assistir, ou seja, os outros escravizados. (...) Seu compromisso era recontextualizar como o norte-americano vê esse período de sua história e como pessoas negras como ele mesmo enxergam seus ancestrais.
Cora e Caesar escapam, tendo no encalço o caçador de escravos Ridgeway (Joel Edgerton) e seu fiel escudeiro, o pequeno menino negro Homer (Chase Dillon), provavelmente o personagem mais inescrutável de 'The Underground Railroad'. Ridgeway está particularmente interessado em capturar Cora, porque vê na fuga de sua mãe, Mabel, um grande fracasso de sua carreira – ou talvez seja melhor chamar de missão. A relação de Cora com a mãe é uma das maneiras pelas quais a minissérie diverge de tantos outros filmes e séries anteriores. A razão maior da vida de Cora é provar para a mãe que ela era merecedora de ter sido salva e que, mesmo tendo sido abandonada por Mabel, é capaz de conquistar sua liberdade sozinha. Cora tem, pois, um conflito além da sua vontade e uma necessidade de escapar da escravização.
A maior parte dos episódios recebe o nome da parada onde Cora se encontra: Geórgia, Carolina do Sul, Carolina do Norte, Tennessee, Indiana. Em cada passo, há violências, preconceitos e humilhações de diferentes tipos. Mas também esperanças, alegrias, amores, aliados, alguns deles brancos, mas em sua maioria negros, como Royal (William Jackson Harper). E natureza. Barry Jenkins sempre foi um cineasta muito sensorial e aqui não é diferente. As paisagens, os sons e a música evocam atmosferas, texturas. (...)
'The Underground Railroad' é uma minissérie sobre fantasmas. Sobre pessoas que estavam lá, que construíram o país, mas que não tiveram direito a nomes próprios, a nacionalidades, a tradições, a amores, a cuidar de seus filhos, a funerais dignos. Que foram apagadas da história. Mas que vivem em seus descendentes, na força de sua cultura e na sua resiliência para sobreviver então, e agora, a tudo isso".
A série ganhou o Globo de Ouro 2022 na Categoria Melhor Série Limitada, Série Antológica ou Telefilme.
O que eu achei: Ótima a minissérie em 10 episódios "The Underground Railroad: Os Caminhos Para a Liberdade" (2021) do já conhecido diretor Barry Jenkins, famoso por longas excelentes como “Moonlight: Sob a Luz do Luar” (2016) e “Se a Rua Beale Falasse” (2018). O que ele fez aqui foi adaptar o livro "The Underground Railroad", escrito em 2016 pelo romancista afro-americano Colson Whitehead que ganhou o Prêmio Pulitzer de Ficção. Os juízes do prêmio declararam o romance 'uma combinação inteligente de realismo e alegoria que combina a violência da escravidão e o drama da fuga em um mito que fala à América contemporânea'. A parte da alegoria diz respeito justamente ao que o título sugere: 'The Underground Railroads' cuja tradução literal seria 'As Estradas de Ferro Subterrâneas', já que as rotas de fuga que os escravos fugidos do sul dos EUA utilizavam em meados do século XIX rumo ao norte do país, não eram ferrovias e nem subterrâneas. Elas até eram underground (no sentido de clandestinas), mas em cima da terra, formando uma rede de pessoas abolicionistas que ajudavam escravos a se libertar de seus proprietários, auxiliando na travessia de lugares onde o conflito racial era mais intensificado, garantindo abrigo em suas propriedades, por exemplo. No livro – e também no seriado – essa rede é transformada numa verdadeira ferrovia subterrânea cujo trem, em cada episódio, passa por um estado escravagista. Assim vamos acompanhando a fuga da escrava Cora que a mãe abandonou e que agora, ao atingir a maioridade, vê a vida se complicar e começa sua fuga saindo da Geórgia para a Carolina do Sul, depois para a Carolina do Norte, Tennessee e Indiana, em busca de liberdade. O resultado é tão bom que, apesar de todo sofrimento que Cora terá que enfrentar e da dureza das cenas que serão mostradas, a fotografia escura e deslumbrante não te fará desgrudar os olhos. Ao final fica a pergunta: se as rotas de fuga representavam para os negros escravos um caminho para onde fugir, será que esse suposto destino representaria, de fato, um lugar para ficar? Atenção à música que acompanha os créditos finais chamada "This is America" de Childish Gambino (pseudônimo do artista Donald Glover) que fez sucesso na indústria musical e rapidamente conquistou a atenção da cena hip-hop, se tornando um nome de peso do gênero. A canção trata da problemática de ser negro na América. Vale a pena assistir o videoclipe para entender a escolha da música.