26.7.25

“Santo Forte” - Eduardo Coutinho (Brasil, 1999)

Sinopse:
 
Em 5 de outubro de 1997, uma equipe de cinema entra na favela Vila Parque da Cidade, situada na Gávea, zona sul do Rio de Janeiro. Os moradores assistem à missa celebrada pelo Papa no Aterro do Flamengo. Em dezembro, a equipe volta à favela para descobrir como seus moradores vivem a experiência religiosa. Católicos, umbandistas ou evangélicos, todos eles têm em comum a crença numa comunicação direta com o mundo espiritual através da intervenção, em seu cotidiano, de santos, orixás, guias ou do Espírito Santo.
Comentário: Eduardo Coutinho (1933-2014) foi um cineasta e jornalista brasileiro. É considerado por muitos como o maior documentarista da história do cinema do Brasil. Assisti dele os excelentes "Cabra Marcado Para Morrer" (1984), “O Fio da Memória” (1991), “Edifício Master” (2002) e “Jogo de Cena” (2006). Todos sensacionais. Desta vez vou conferir um documentário feito por ele em 1992 chamado “Santo Forte” (1999).
Eduardo Valente do site Contracampo nos conta que “O filme (...) opta pela radicalização do discurso no sentido contrário de Fé. É um filme sobre as pessoas e como elas lidam com sua fé. As pessoas têm nome, têm endereço, têm cara, têm personalidade. As pessoas conversam com o diretor sobre os mais variados assuntos, as mais diferentes formas como a fé está presente no seu cotidiano. (...)
[Com isso], não se pode dizer que o tema do seu filme seja só a fé. O tema deste filme (como de todos seus outros) é a vida de exclusão de parte da sociedade brasileira. Seu filme fala de uma favela, e ao falar dela fala de todos os pobres brasileiros, e dos seus pensamentos e sentimentos. Ao falarem de fé, eles acabam falando de muito, muito mais. Revelam suas relações com a elite, sua autoimagem, as relações entre si, a visão de futuro, passado e muito presente. Refletem o rosto de um país, hoje.
O filme de Coutinho foi gravado em vídeo. Talvez por isso possa passar tanto tempo com cada pessoa, tantas horas de conversa sobre tudo, que levam a momentos raros de revelação que não se consegue em minutos. Claro que não se deve menosprezar o poder de Coutinho como entrevistador, pois ele quase hipnotiza o entrevistado e o espectador com sua fala mansa, suas perguntas bem colocadas. Por tudo isso, ‘Santo Forte’ acaba revelando um paradoxo típico dos novos tempos. A liberdade de aprofundar-se que o vídeo lhe dá faz de ‘Santo Forte’ um produto muito mais cinematográfico do que Fé. Estamos opondo cinematográfico à ideia de televisão, que é quase sempre corrida e superficial. Com isso, somos pegos de surpresa nos limites de suporte dos filmes de hoje. Vemos que o ser ‘cinematográfico’ já não fala mais de bitolas nem de estilos (enquanto Fé tem inúmeras cenas de multidão em exterior, ‘Santo Forte’ passa-se quase todo entre 4 paredes), mas de aproximação com o assunto.
Além do suporte, existe algo mais do formato de ‘Santo Forte’ que revela sua proposta. Nele, a interação da equipe de filmagem com os entrevistados é explicitada. Não só ouvimos as perguntas, mas vemos a equipe chegando, sua recepção, o pagamento do cachê aos entrevistados. Com isso, Coutinho quer quebrar a tal barreira do distanciamento. Deixar claro ao espectador que aquelas pessoas estão se expondo a uma câmera, conscientemente. Isso tem efeitos nos entrevistados, claro. Quais são, não se pode concluir, mas é tolo achar que as pessoas agem da mesma maneira em frente a uma câmera. Por isso o diretor gosta de dizer que o filme não é sobre a fé, mas sobre uma equipe de filmagem gravando um documentário sobre a fé. O reconhecimento desta reflexividade é básico no mundo de hoje.
O filme de Coutinho tem uma espontaneidade inegável, não a de algo que acontece apesar de uma equipe de filmagem estar ali, que é impossível. Mas a de que acontece quando se sabe que a equipe está ali. Não há dúvida de que há pesquisa por trás do filme, que há horas de montagem na opção por este recorte. Mas, ainda assim, o filme de Coutinho se fez nas filmagens, pelas pessoas envolvidas. O filme todo está no que se fala, e quem tem a voz são as pessoas. Ao mostrar a equipe, Coutinho faz dos entrevistados o verdadeiro centro do filme. (...)
A relação não racional de Coutinho com a fé faz muito mais sentido do que a de Fé. Ela chega ao ponto em que não vemos nenhuma cena das descritas pelas pessoas. Num golpe de mestre final, mais do que não ver as ações, ele nos mostra cômodos vazios. Nestes, que poderiam passar quase desapercebidos, está toda a ideologia do filme: a fé não se pode filmar. Ela está dentro das pessoas, e é vivida por elas. Mostrar os ritos tem valor sim, quiçá antropológico. No entanto, não se pode passar o sentimento da fé. Este está em cada palavra dita em ‘Santo Forte’. E em cada cômodo vazio, onde o espectador pode inserir sua própria fé. Coutinho soluciona a velha dúvida: se a câmera não pode acreditar que vai ‘retratar o mundo’, qual a função do documental?? Simples: introduzir, aceitando sua limitação, e deixar o resto para a consciência e imaginação de cada um”.
O que disse a crítica: Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: “’Santo Forte’ utiliza as três vertentes religiosas mais disseminadas no Brasil para discutir, a partir do então oportuno momento, a função da crença na vida das pessoas, ainda que não o faça sem certa redundância. Sofredores que encontram na devoção a base para o dia a dia não se importam em batizar os filhos pela manhã com as bênçãos do padre e à noite num cenário repleto de fumaças e das bebidas favoritas dos Pretos Velhos. Tal contradição não lhes incomoda, pois seu pacto é com própria fé com a qual abrandam boa parte da carga cotidiana”.
Matheus Fiore do site Plano Aberto avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “Coutinho consegue explorar toda a diversidade religiosa de um povo tão plural quanto o nosso sem nunca arrancar palavras, apenas abrir caminho para que elas saiam naturalmente da boca de seus personagens. ‘Santo Forte’ é mais do que um registro da pluralidade cultural de nosso país, é também a constatação de que a fé permeia cada nível da existência da nossa sociedade. É uma obra que revela o quanto a religião vai além da ligação entre o divino e o mundano, e faz parte de nossa formação identitária, da construção do rosto de um país”.
O que eu achei: A mestiçagem no Brasil refere-se à mistura de diferentes grupos étnicos e raciais, principalmente indígenas, africanos e europeus, que ocorreu ao longo da história do país. Essa mistura resultou em uma sociedade com características únicas e diversas, fazendo com que um cidadão se declare católico romano, ao mesmo tempo em que ele frequenta a igreja evangélica e a doutrina espírita, especialmente as de origem africana como umbanda e candomblé, acreditando piamente na reencarnação. No documentário, Eduardo Coutinho entrevista um recorte específico de pessoas: todos são moradores da comunidade Vila Parque da Cidade, situada na Gávea, no estado do Rio de Janeiro. Mas vi ali minha bisavô italiana que viu Cosme & Damião no seu quarto, vi minhas tias – uma mãe de santo oriunda do RJ, a outra católica fervorosa que não perdia uma missa no domingo – e vi a mim mesma que ao mesmo tempo que duvido de tudo, fui batizada, fiz primeira comunhão, e rezo pra Xangô na certeza de sua existência. É um documentário muito familiar que com certeza vai fazer você reconhecer alguém de seu relacionamento ou a si mesmo. Se jogue.