28.7.25

“O Medo Devora a Alma” - Rainer Werner Fassbinder (Alemanha Ocidental, 1974)

Sinopse:
Emmi (Brigitte Mira), uma viúva sexagenária, entra em um bar de Munique para escapar da chuva. Ela é convidada por Ali (El Hedi ben Salem), um negro muçulmano 20 anos mais novo que ela, para dançar, o que leva Emmi a se envolver emocionalmente com ele. Mas todos a sua volta questionam e desprezam o relacionamento de ambos.
Comentário: Rainer Werner Fassbinder (1945-1982) foi um cineasta e ator alemão, considerado um dos mais importantes representantes do chamado Novo Cinema Alemão. Apesar de ter morrido cedo, aos 37 anos, ele produziu 43 filmes. Bissexual assumido, predominam em suas obras temáticas relativas à situação de marginalizados ou deslocados na sociedade alemã. Assisti dele os bons "Martha" (1974), "Lola" (1981), "Lili Marlene" (1981) e "O Desespero de Veronika Voss" (1982), além de “A Terceira Geração” (1979) e “Querelle” (1982). Vi também a ótima minissérie “Berlin Alexanderplatz” (1980). Desta vez vou conferir “O Medo Devora a Alma” (1974), muitas vezes traduzido como “O Medo Consome a Alma”.
João Garção Borges do site HD Magazine nos conta que “Rodado em duas semanas, no fim do verão de 1973, com um orçamento nitidamente apertado se comparado com o de outros filmes do realizador, ‘O Medo Devora a Alma’ (...) pode ser visto como a abordagem dura e crua de uma realidade social prevalecente na Alemanha do pós-guerra, a do alegado ‘milagre alemão’, uma realidade cruzada por muitas forças contraditórias de maior ou menor intensidade, mas onde os preconceitos de superioridade racial incutidos anos antes pela ideologia nazi ainda se faziam sentir, mesmo entre aqueles que de um modo ou de outro nunca foram mais do que carne para canhão nas ambições de supremacia imperialista do projeto de erguer um Terceiro Reich em que a raça ariana seria a dona e senhora do mundo.
E como se desenvolve esta análise concreta de uma situação concreta, por parte da realização? Nas primeiras sequências deste filme somos introduzidos aos ambientes muito coloridos de um bar frequentado por imigrantes oriundos do Norte de África, na verdade cores bem saturadas a partir do Eastmancolor, que a direção de fotografia de Jurgen Jurgens polariza com inegável competência. Desde o genérico inicial que a sonoridade da música árabe magrebina [oriunda do Magrebe, ou seja, da região do noroeste da África] vinha adicionando uma pitada de exotismo a esta atmosfera ‘estrangeira’, que pouco depois será o motivo que faz uma senhora, Emmi Kurowsky (Brigitte Mira), nos seus sessenta anos de idade, entrar naquele local onde, manifestamente, não se enquadra cem por cento. E ela sabe disso mesmo porque, segundo diz, entrou para se refugiar da chuva e, já agora, ouvir a música que noutros dias lhe ficara na memória”. É assim que ela conhece Ali (El Hedi ben Salem), um negro muçulmano 20 anos mais novo que ela, que a tira para dançar, o que leva Emmi a se envolver emocionalmente com ele, com todos a sua volta questionando e desprezando esse relacionamento.
“Neste ponto, R. W. Fassbinder desencadeia com extrema economia narrativa os mecanismos ficcionais necessários e suficientes para fazer prevalecer o percurso individual do casal, não isento de altos e baixos, num contexto hostil mas que a certa altura será alterado, apenas porque os que derramaram o seu veneno sobre os dois, os que chamaram os nomes mais impróprios a marido e mulher, reparam que ela, Emmi, lhes pode ser útil. Pedem-lhe mesmo favores que, ao pensarmos nas suas atitudes poucos dias antes, provam ser solicitados por pessoas sem qualquer vergonha na cara. Mesmo o filho que chamou puta à mãe regressa para lhe pedir apoio (...). O merceeiro, vociferando cinicamente uma máxima do seu negócio, a de que ‘a aversão vem em segundo lugar’, sorri-lhe novamente na esperança de recuperar a cliente numa altura em que ele se queixa que as pessoas preferem ir ao supermercado.
(...) De igual modo, a realização encontra a coragem para se referir a este estado de coisas, não num país imaginado mas no centro fulcral do modo de ser e estar de uma boa parte da pequena-burguesia alemã. Não estamos no domínio do conflito de classes e das contradições entre ideologias inimigas. Aqui, os inimigos estão ao nosso lado, vivem no mesmo prédio; o seu pensamento, herdado de um passado recente onde imperava a ideia de uma raça superior, passa despercebido por entre os pingos da chuva, mas em boa verdade contamina a democracia que dizem respeitar mas com a qual não lidam bem, sempre que sentem o medo, a ameaça real ou imaginária do outro que não corresponde ao seu reflexo no espelho. Por isso, acabam comendo do mesmo prato da economia política que os populistas da extrema-direita, influenciando os destinos de um país cujo passado não fora flor que se cheire".
Vale observar que a trama foi baseada no tumultuado relacionamento romântico real entre o diretor Fassbinder e o ator El Hedi ben Salem, que trabalha no filme no papel de Ali. No elenco estão também Brigitte Mira, Barbara Valentin, Irm Hermann e o próprio Rainer Werner Fassbinder.
O que disse a crítica: Luiz Santiago do site Plano Crítico avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Disse: “Brutal, de certa forma profético e dirigido com uma precisão quase irritante - a composição dos quadros são como pequenos palcos para cada ‘ato’ do longa, com destaque para o apartamento de Emmi e o bar Asphalt -, ‘O Medo Devora a Alma’ é um notável filme sobre a humanidade e os sentimentos humanos dentro de uma comunidade e sob influências históricas sobre as quais não tem controle. Seu enredo é cada vez mais atual e seu final, um dos mais tocantes da história do cinema. Fassbinder realiza aqui uma obra-prima simples e ao mesmo tempo poderosa e atemporal. Uma película difícil de ser esquecida”.
Bernardo D. I. Brum do site Cineplayers também avaliou com 4,5 estrelas. Escreveu: “O ritmo lento é minucioso em destruir uma sociedade ocidental supostamente livre e democrática; é nítido nessa obra (...) o homem não apenas como vítima social, mas também como catalisador da própria desgraça. O flagelo nazista ainda açoitava a Alemanha dos anos setenta – a sociedade onde vivem é autoritária, racista, indiferente aos anseios e receios dos indivíduos – tornando seus próprios indivíduos aberrações, com vergonha de si mesmos, que passarão a obra toda tentando achar um correspondente, alguém que os compreenda – muitas vezes para se frustrar no final. Se Herzog punha o desejo e o sonho acima da racionalidade e da realidade em seus filmes brutais e Wenders contemplava melancolicamente a angústia dos indivíduos que atravessavam estradas que não davam em lugar nenhum, Fassbinder é a terceira via do cinema alemão, a ressaca moral furiosa, as escolhas erradas pagas ainda em vida, o encontro inevitável com a própria destruição”.
O que eu achei: O enredo apresenta a história do casal Emmi (Brigitte Mira) e Ali (El Hedi bem Salem, companheiro de Fassbinder); ela é alemã, ex-hitlerista, viúva e faxineira, e ele é marroquino, vinte anos mais jovem que ela, solteiro e mecânico de automóveis. Eles vão iniciar um romance que tem tudo para dar errado por conta da violência do preconceito e da xenofobia na Alemanha na década de 1970. O filme só não é o melhor de Fassbinder, por conta de algumas reviravoltas relativamente inverossímeis. Mesmo assim, ainda vale ver pela atualidade do tema abordada de forma autêntica, amplificando todas as forças opressivas que conspiram contra esse casal.