11.8.25

"O Amuleto de Ogum" - Nelson Pereira dos Santos (Brasil, 1974)

Sinopse:
No sertão, Maria (Maria Ribeiro) leva seu filho Gabriel (Ney Sant’Anna) a um centro de umbanda, a fim de “fechar seu corpo”. Dez anos mais tarde e já protegido a partir do uso do amuleto, o rapaz chega ao sul para encontrar-se com Dr. Severiano (Jofre Soares), chefe de uma quadrilha que lhe acolhe por indicação de uma importante figura. Lá conhece Eneida (Anecy Rocha), companheira do criminoso com quem se envolve.
Comentário: Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) foi um diretor, produtor e roteirista brasileiro, considerado um dos fundadores do movimento Cinema Novo. Sua produção atravessa um período de 60 anos na história do Brasil com obras como “Rio, 40 Graus” (1955) e “Memórias do Cárcere” (1984) dentre outras. Assisti dele o bom “Vidas Secas” (1963) e desta vez vou conferir “O Amuleto de Ogum” (1974).
Arthur Tuoto nos conta em seu site que "'O Amuleto de Ogum' (1974) é um dos filmes mais marcantes [de Nelson Pereira dos Santos] porque harmoniza a típica liberdade formal (a câmera na mão, a abordagem ríspida e documental com seu espaço) com as peculiaridades de um filme de gângster.
O filme narra a história de Gabriel (Ney Sant’anna), um jovem vindo do nordeste que chega na Baixada Fluminense para trabalhar para Severiano (Jofre Soares). Assim que o protagonista se transforma em capanga e assassino, descobre-se que ele tem o corpo fechado.
Além de uma contextualização crua que concilia a realidade violenta do ambiente com uma história de teor universal (Gabriel se envolve com a mulher de seu chefe e cria-se uma espécie de guerra de facções), o filme integra um elemento místico que o torna ainda mais incomum. Como não existe jeito de derrotar o personagem por meios físicos, o chefão Severiano parte para o terreno do sobrenatural.
A umbanda é retratada no filme com o mesmo realismo de todos os outros elementos. Não existe um julgamento moral, mas uma apropriação gráfica que se desenvolve junto com a história. A forma direta com que Santos aborda as cenas torna os momentos místicos ocasiões memoráveis. A sequência em que o personagem de Jofre Soares está incorporado é registrada com extravagância. Uma câmera na mão que acompanha a instabilidade do transe e uma lente grande-angular que, sugestivamente, distorce o espaço.
O filme inteiro possui uma lógica inflamada que não faz qualquer rodeio. Em uma das cenas mais marcantes, os capangas de Severiano torturam crianças que estavam trabalhando para Gabriel. Existe uma constante brutalidade que dialoga tanto com o período histórico da obra (a ditadura militar) como com uma desumanização que é implícita ao gênero policial. O protagonista se torna uma máquina de matar.
O transe místico é também um transe pelo sangue. Apesar do aspecto cru de toda a abordagem, as matanças possuem um quê ritualístico. Mata-se sem muita cerimônia, mas existe uma excentricidade particular nas cenas. Algo que fica entre o jocoso (como nos primeiros trabalhos de Gabriel como assassino) e um maneirismo formal assumido: a sequência final – o embate entre o anti-herói e o vilão – assume uma variedade de alterações imagéticas (desfoque na imagem, aparições de Severiano como um fantasma onipresente) que proclama um delírio completo entre o esotérico e a violência franca.
Enquanto 'Boca de Ouro' (1963) – a adaptação de Santo da peça de Nelson Rodrigues – é um filme de crime, na medida do possível, mais clássico, até noir em certo sentido, 'O Amuleto de Ogum' (1974) é uma obra muito independente em suas construções estéticas. Santos media as heranças do filme de gângster (a violência gráfica e realista remete a certas obras do cinema pré-code norteamericano da década de 30) dentro de uma iconografia brasileira absolutamente franca. O que resulta numa obra única que, a todo momento, conjuga o alucinado com a brutalidade, o imaginário religioso com a impiedosa realidade".
Em depoimento do próprio diretor para o Jornal do Brasil, a aproximação com a umbanda foi fundamental no processo de realização. Ele declarou que consultou vários terreiros de umbanda e pediu permissão para fazer o filme. Foi nessas andanças que ele conheceu Erley, que interpreta o pai de santo que toma conta de Gabriel. Ele é um babalaô e estava sempre dando as dicas necessárias. Segundo ele, o objetivo era mostrar a umbanda sem os equívocos que existem quando ela é vista como uma crendice popular, como folclore.
No elenco temos: Ney Sant’Anna (filho de Nelson Pereira), Anecy Rocha (irmã de Glauber Rocha), Jofre Soares, Maria Ribeiro, Emmanuel Cavalcanti e Jards Macalé, dentre outros. A trama se baseia no argumento original de Francisco Santos, vindo a receber diversos prêmios, dentre eles o troféu de Melhor Filme no Festival de Gramado em 1975 e o Prêmio Governador do Estado de São Paulo na Categoria Roteiro no mesmo ano.
O que disse a crítica: José Geraldo Couto da Folha SP gostou bastante. Disse: "O que introduz um componente inequivocamente brasileiro e popular nessa história é o fato de Gabriel ter o 'corpo fechado' graças à proteção de Ogum. Em seu aspecto documental, de retrato da miséria na periferia de uma grande cidade, o filme é um dos mais atuais do diretor. Há uma sequência em particular – cortada pela censura na época do lançamento – que parece saída dos jornais de hoje: os meninos do bando de Gabriel são torturados e mortos, um a um, pelos métodos mais cruéis possíveis. O segredo da força de 'O Amuleto de Ogum' reside talvez nisso: na forma crua e despojada com que Nelson Pereira flagrou um certo universo popular, naquilo que tem de sórdido, mas também no que tem de sublime".
O jornal O Estado de SP também gostou. Escreveram: "Nelson fez filmes muito diferentes entre si. 'Vidas Secas' levou-o nas veredas do sertão para se tornar um marco da chamada estética da fome. Com 'O Amuleto de Ogum', ele celebrou o sincretismo. É um filme que possui uma vitalidade extraordinária".
O que eu achei: Me aproximar da filmografia de Nelson Pereira dos Santos tem sido prazeroso. Se eu já havia gostado de "Vidas Secas" (1963), desta vez a grata surpresa foi “O Amuleto de Ogum” (1974). A história é narrada em Caxias do Sul (RS) pelo cego Firmino (Jards Macalé), um violeiro nordestino. Ele conta que uma mulher chamada Maria, após perder seu marido e filho numa emboscada, levou Gabriel, seu filho mais jovem, até um terreiro de umbanda para 'fechar seu corpo'. Quando ele cresce ele migra para a Baixada Fluminense onde conhece o Dr. Severiano (Jofre Soares), que é quem vai lhe inserir no mundo do crime. O pulo do gato nesse roteiro é justamente o fato de Gabriel ser 'imortal', pois como ele carrega consigo o amuleto de Ogum, ele se transforma numa peça-chave da criminalidade, o que impregna o longa de uma brasilidade que o diretor soube aproveitar como ninguém. Atenção ao elenco que conta com Ney Sant’Anna (filho de Nelson Pereira) no papel de Gabriel e com Anecy Rocha (irmã de Glauber Rocha) no papel de Eneida.