8.12.25

“Vá e Veja” - Elem Klimov (URSS, 1985)

Sinopse:
 Bielorrússia, 1943. O jovem camponês Flyora Gaishun (Alexéy Krávchenko) é cooptado por um despreparado grupo de guerrilheiros antinazistas. Em confronto com os alemães, o garoto é deixado para trás e decide retornar ao seu vilarejo. Chegando lá depara-se com o desolador cenário de um massacre. Perturbado, ele passa a vagar sem rumo, presenciando cenas cada vez mais fortes.
Comentário: Elem Klimov (1933-2003) foi um cineasta russo. Ele nasceu em Stalingrado em 1933, em uma família de comunistas convictos. Seu nome Elem é uma referência à tríade Engels, Lênin e Marx. Foi casado com a talentosa cineasta Larisa Sheptiko, ucraniana de nascimento, morta em 1979. Dentre suas produções estão os documentários "Sport, Sport, Sport" (1970) e "And I Still Believe" (1974) feito com mais dois diretores; o curta metragem "Larisa" (1980) e os longas "Welcome, or No Trespassing" (1964), "The Adventures of a Dentist" (1965), "Agony" (1975), "Farewell" (1981) e “Vá e Veja” (1985), que é o primeiro filme que vejo do diretor.
No longa acompanhamos o pré-adolescente Flyora (Alexei Kravchenko). Ele mora com a mãe e as irmãs na Bielorrússia e tem o desejo de se juntar aos partisans – membros de grupos irregulares de resistência que lutam contra uma força de ocupação estrangeira – para lutar contra os alemães. Estamos em 1943 em plena II Guerra Mundial. Flyora até consegue se juntar ao grupo, mas logo de cara acaba abandonado por eles em plena floresta, então ele resolve voltar para casa.
Conta-se que Klimov inspirou-se na sua própria infância para o filme. "Quando era pequeno, eu tinha vivido um inferno", explicou. Ele, a mãe e o irmão mais novo foram evacuados numa jangada através do rio Volga durante a batalha de Stalingrado. "A cidade estava em chamas até o céu. O rio também ardia. Era noite, bombas explodiam e as mães cobriam os filhos com qualquer roupa de cama que tivessem e depois deitavam-se em cima deles. Se eu tivesse incluído tudo o que sabia e mostrado toda a verdade, nem eu teria conseguido assistir".
João Lanari Bo do site Vertentes do Cinema nos conta que "O título é inspirado na Bíblia, Apocalipse 6:1-4: 'E, havendo aberto o quarto selo, ouvi a voz do quarto animal, que dizia: Vem, e vê. E olhei, e eis um cavalo amarelo, e o que estava assentado sobre ele tinha por nome Morte; e o inferno o seguia; e foi-lhes dado poder para matar a quarta parte da terra, com espada, e com fome, e com peste, e com as feras da terra'.
(...) A guerra, da forma como é experimentada pelo adolescente Flyora nos confins da Belarus, é a violência no limite, indescritível – durante três anos de ocupação pelos nazistas, cerca de 1 milhão e 600 mil pessoas morreram, mais de 9 mil assentamentos foram destruídos, 628 aldeias tiveram a população aniquilada – inclusive o vilarejo natal de Ales Adamovich [corroterista do filme]. Em 1940, a população do país alcançava 9 milhões de habitantes: em 1951, 7,7 milhões.
Klimov teve de esperar oito anos para obter aprovação do roteiro – nesse meio tempo, a ex-União Soviética passou da estagnação de Brejnev à vertigem de Gorbachev, que chegou ao poder em 1985. 'Vá e Veja' foi produzido nesse momento de ruptura – e também para comemorar o 40º aniversário da vitória soviética na Grande Guerra Patriótica, como os russos nomeiam a 2ª Guerra.
No Festival de Cinema de Moscou de 1985 recebeu o principal prêmio: mais do que comemorar, entretanto, sua premiação sinalizou o início da glasnot (literalmente 'transparência') na vida política no país dos soviets, ao lado da perestroika ('reestruturação') – e o mundo socialista virou de cabeça para baixo.
No plano cinematográfico, o filme subverte expectativas conservadoras: as crianças não respeitam os mais velhos, a mãe de Flyora fica histérica em sua partida, e partisans pilham os aldeões. Essas transgressões não aconteciam nos filmes de guerra na ex-URSS. No tempo de Stálin, o culto à personalidade deu uma aparência kitsch às narrativas do conflito, onde o líder aparecia como entidade mediúnica a decidir sobre os destinos do povo soviético: depois de sua morte em 1953, com as revelações de Nikita Khrushchov sobre os crimes do regime no 20º Congresso do Partido, em 1956, a ênfase voltou-se para dramas e sofrimentos particulares, inclusive da população civil; com a ascensão de Brejnev em 1964, a Guerra Patriótica enquanto sucesso militar voltou ao primeiro plano, desta feita sem a mediunidade stalinista, mas como plataforma ideológica de união nacional.
O crítico Jim Hoberman sugere que o filme de Klimov revitalizou o mais sagrado dos gêneros soviéticos, o cinema de guerra – e na sequência produziu algo que poderia ser prontamente entendido como aviso contra o apocalipse nuclear que se anunciava com o fim da Guerra Fria. Aviso que pode ser lido nos closes de Flyora, signos de erosão de seu olhar inocente causada pela devastação do entorno, infestada de nazistas bêbados e sádicos. Bombas caem não se sabe de onde: Flyora, de 12 anos, envelhece a olhos vistos, mas junta-se à resistência e sobrevive.
Elem Klimov, que logo depois, em 1986, foi escolhido por seus colegas para ser o líder do Sindicato dos Cineastas, destronando velhos caciques do cinema soviético – nunca mais voltaria a dirigir filmes: 'Vá e Veja' foi o último".
O que disse a crítica 1: João Lanari Bo do site Vertentes do Cinema avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Disse: "'Vá e Veja', o longa que Elem Klimov dirigiu em 1985, é um desses filmes que o passar do tempo só aumenta seu status artístico, mesmo em cima de uma tradição saturada dos mais variados experimentos, como são os filmes de guerra – em particular, a Segunda Guerra Mundial. A brutalidade das situações que descreve, tomadas de fatos reais narrados no livro 'Eu Sou da Vila do Fogo' – escrito, entre outros, pelo corroteirista Ales Adamovich – é extrema, visceral".
O que disse a crítica 2: Lucas Oliveira do site Cinematório também avaliou com 5 estrelas. Escreveu: "Devo confessar que, a partir do terço final do filme, eu já estava em estado completo de catatonia, com os olhos e a boca paralisados, totalmente incapaz de virar o rosto, muito embora o filme apresente uma sequência com potencial de fazer qualquer um desviar os olhos. Aí está um dos tantos fascínios que 'Vá e Veja' me desperta. Este é o tipo de filme que mantém, ao mesmo tempo, um magnetismo e uma repulsa sobre o olhar do espectador. (...) Entretanto, por mais que para analisar seja necessário decompor o filme, pessoalmente acredito ‒ aqui amparado por considerações do crítico francês Marcel Martin ‒ que obras como esta de Klimov guardam algo quase místico que, para além da forma e do conteúdo, sustenta a alma do filme (ou a magia, ou o ser). Algo que eu nunca sei exatamente o que é, mas sei o poder que exerce sobre mim".
O que eu achei: “Vá e Veja” (1985) de Elem Klimov não é apenas um filme sobre a guerra, é uma experiência cinematográfica limite, dessas que deslocam o espectador de maneira quase física. Obra-prima incontestável, o longa desmonta qualquer romantização do conflito ao acompanhar a trajetória de Flyora, um adolescente moldado e psicologicamente destruído pela ocupação nazista em Belarus durante a Segunda Guerra Mundial. O que Klimov constrói é um mergulho perturbador na desumanização provocada pela barbárie, guiado por uma câmera que parece respirar junto com o protagonista, registrando cada etapa de sua perda de inocência com brutal honestidade. O filme foi concebido em um contexto de profunda comoção histórica e pessoal. Baseado em relatos e eventos reais ocorridos em vilarejos da Bielorrússia, devastados por tropas nazistas e grupos colaboracionistas, “Vá e Veja” carrega o peso de uma memória coletiva frequentemente silenciada ou minimizada. Klimov levou anos para conseguir autorização para realizá-lo, enfrentando censura e resistência das autoridades soviéticas, que temiam o impacto psicológico e político da obra. Quando finalmente foi produzido, em meados da década de 1980, já no início da abertura promovida por Mikhail Gorbachev, o filme surgiu como um grito tardio, mas devastador, contra o esquecimento e a simplificação histórica da guerra. Elem Klimov, que já havia demonstrado grande sensibilidade em filmes anteriores, como "Agonia" (sobre Rasputin), atinge aqui seu auge criativo. Curiosamente, “Vá e Veja” seria seu último longa-metragem, quase como um testamento artístico. Cada escolha estética contribui para a experiência traumática: os enquadramentos fechados, o uso quase constante de sons abafados e distorcidos, a progressiva transformação física do jovem ator Alexéy Krávchenko — que parece envelhecer dezenas de anos ao longo da narrativa — e a recusa em oferecer qualquer alívio ou heroísmo clássico. É um cinema de confronto, que obriga quem assiste a encarar o horror sem filtros. Mais do que uma narrativa de guerra, “Vá e Veja” é uma meditação sombria sobre a natureza humana, sobre a fragilidade da infância e sobre a violência como força corrosiva e irreversível. A experiência é dolorosa, mas absolutamente necessária. Poucos filmes conseguem atingir esse grau de impacto e verdade. E é justamente por não fazer concessões - nem ao espectador, nem à história - que ele se consolida como uma das maiores realizações cinematográficas. Filme obrigatório, não morra sem ver.