10.11.25

"Dersu Uzala" – Akira Kurosawa (Japão/URSS, 1975)

Sinopse:
O capitão Vladimir Arseniev (Yuri Solomin) é enviado pelo governo soviético para explorar e reconhecer as montanhas da Mongólia, juntamente com uma pequena tropa. Em meio a expedição eles encontram Dersu Uzala (Maksim Munzuk), um caçador que vive apenas nas florestas. Percebendo que Dersu conhece bastante o local, o que pode facilitar o trabalho, o capitão lhe oferece que acompanhe a tropa até o término da missão. É o início de uma forte amizade entre o capitão e Dersu, que aos poucos demonstra suas habilidades.
Comentário: Akira Kurosawa (1910-1998) foi produtor, montador, escritor e pintor japonês mas se destacou como cineasta e roteirista, um dos mais importantes do Japão. Com uma carreira de cinquenta anos, Kurosawa dirigiu em torno de 30 filmes. É amplamente considerado um dos cineastas mais importantes da história do cinema, o que lhe rendeu um Oscar em 1989 pelo conjunto de sua obra. Assisti dele 7 filmes: a obra-prima "Ran" (1985), o ótimo "Céu e Inferno" (1963), os bons “Os Sete Samurais” (1954) e "Yojimbo: O Guarda-Costas" (1961), o mediano “Viver” (1952) e os curiosos "Sonhos" (1990) e "Madadayo" (1993). Desta vez vou rever "Dersu Uzala" (1975).
Arlindenor Pedro do site Outras Palavras nos conta que "Assistir 'Dersu Uzala' é um exercício de reflexão sobre o instinto de sobrevivência natural do ser humano, na verdadeira acepção da palavra. Creio ser esta a obra mais eloquente que o cineasta japonês Akira Kurosawa produziu a respeito do tema. De forma sutil, ele nos faz pensar em nossos limites, propondo situações em que a natureza nos põe à prova, testando nossa habilidade de sobrevivência em um mundo diferente do nosso, onde pouco importa o que aprendemos anteriormente. Em tais condições, seguir os ensinamentos de quem já tem a experiência da adaptação ao ambiente que nos é inóspito torna-se primordial. Ao superarem obstáculos em conjunto, os personagens constroem uma relação de mútuo respeito, na qual o conhecimento é transmitido de forma natural.
(...) O roteiro baseia-se no diário de viagem do explorador e topógrafo do exército tzarista russo Vladimir Arsemiv. Kurosawa e seu roteirista, o soviético Yuri Nagibin, nos colocam frente à oposição de dois mundos. Um é o do capitão Vladmir Arseniev, homem culto e civilizador, detentor do conhecimento do mundo moderno, onde prevalece a razão – em última instância, o conhecimento explícito. Outro, o do mongol Dersu Uzala, um caçador das estepes siberianas, que detém o conhecimento da vida na natureza, empregando-o não para subjugá-la, mas para sobreviver junto a ela, numa harmonia própria do homem natural. A história desenrola-se numa situação em que a natureza se impõe, de forma que o mais simples prevalece perante o mais complexo – pois suas soluções, baseadas na criatividade (em última instância, o que chamamos de conhecimento tácito) são as mais viáveis para o momento. (...)
Dersu Uzala é um filme do renascimento de Kurosawa, após uma tentativa de suicídio, em 1971. Frustrado com seus filmes anteriores, talvez influenciado pela morte do seu irmão, Heigo – que disparou contra o próprio peito após forte processo de depressão, aos 22 anos – o cineasta cortou-se diversas vezes na garganta e pulsos, passando por um difícil período de recuperação. Sobreviveu e aceitou convite do mais importante estúdio da União Soviética (o Mosfilm) para filmar a história do encontro entre o capitão Arseniev e Dersu Uzala. A obra foi realizada em situações dificílimas, em sets de filmagens no interior da Sibéria, onde foi decisiva a infraestrutura colocada à sua disposição pelo governo soviético. Estava concluída em agosto de 1975. (...)
Durante o desenrolar da história vamos nos apaixonando pelo pequeno mongol, que aos poucos mostra como é realmente. Aparece um homem simples, que vive livre na natureza, com pleno conhecimento do ambiente que o cerca. Mas, ao mesmo tempo, um ser temeroso das forças naturais, que não as compreende plenamente. Trata-se, na forma descritiva do diretor, do eterno embate entre o mito e a ciência, ou da razão esclarecida, já tão bem estudada pelos filósofos.
Dersu movimenta-se de acordo com suas tradições e o conhecimento adquirido em sua vivência diária. Arseniev orienta-se por seus livros e pelo que lhe foi transmitido nos bancos escolares e no exército. Dersu respeita o conhecimento do seu amigo, e o capitão se surpreende ao ver naquele homem atributos de alto valor de dignidade, honradez, solidariedade, coragem e determinação, aliados a sua extrema simplicidade. São qualidades cada vez mais esquecidas no mundo civilizado.
Opera-se então um equilíbrio entre os dois mundos e se abre, numa perspectiva russeauniana, a tensão entre o 'homem natural' e a 'civilização'. Desenvolvido por Jean-Jacques Rousseau, em especial no seu 'Discurso Sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade entre Homens', mas presente também nas investigações de filósofos pós-modernos, o tema é de enorme atualidade. Contribui com a reflexão dos que procuram libertar o homem contemporâneo das cadeias impostas pelo reino da mercadoria - onde prevalece o desequilíbrio imposto por uma forma de ser se choca com nossa condição de ser integrado na natureza".
"Dersu Uzala" foi o primeiro filme do diretor falado em língua não japonesa (é integralmente falado em russo) . Premiado em diversos festivais, o loga ainda recebeu o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 1976.
O que disse a crítica 1: Ritter Fan do site Plano Crítico avaliou o filme com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Disse: " A tocante história do experiente caçador do povo Goldi que forma laços de amizade com um capitão do exército russo que está nas inóspitas terras do leste da Rússia em 1902 consegue ficar ainda mais poderosa por ser baseada quase que integralmente em fatos reais. E claro, apesar de já ter sido levada às telas antes pelo cineasta soviético Agasi Babayan, a narrativa se beneficiou muito do estilo Kurosawa de filmar [que se beneficia das] famosas panorâmicas que evocam ainda mais os temas do filme que não só se relacionam com a amizade e a velhice como, também, com a integração com a natureza e com a invasão da chamada 'civilização'. (...) 'Dersu Uzala' é um dos filmes mais bonitos já feitos e mostrou a todos que, mesmo desiludido, traído e desesperançoso, Kurosawa foi um dos maiores diretores que já existiram".
O que disse a crítica 2: Bruno Carmelo do site Papo de Cinema também avaliou com 5 estrelas. Escreveu: "Kurosawa oferece uma dezena de cenas de plasticidade inacreditável, focando-se na pequeneza dos seres humanos diante da natureza. A conversa da dupla diante do Sol e da Lua ao mesmo tempo; o colapso do capitão em plena tempestade de areia, em contraluz, e a correnteza cada vez mais violenta dentro de uma mesma cena de poucos cortes transparecem a admiração e o respeito pela natureza, sem idealizá-la. O discurso jamais soa ingênuo, do tipo que atribui virtudes morais às árvores e animais, porém o diretor estabelece uma noção de espaço onde as regras humanas não valem mais. (...'Dersu Uzala' apresenta a nostalgia de um cinema de aventuras pré-heroísmo, uma narrativa anticolonialista sobre exploradores, e um cinema épico incapaz de sobrepor o homem à natureza".
O que eu achei: “Dersu Uzala” (1975) é uma das mais belas e comoventes obras de Akira Kurosawa, um filme que transcende fronteiras, gêneros e idiomas para se tornar uma profunda meditação sobre a relação entre o homem e a natureza, a amizade e o tempo. Realizado em coprodução entre o Japão e a União Soviética, o longa marca um momento de virada na carreira do diretor japonês: após um período de crise pessoal e profissional, Kurosawa renasce artisticamente com um filme de imensa serenidade e sabedoria. Baseado nos diários reais do explorador russo Vladimir Arseniev, o filme narra o encontro entre o capitão e topógrafo do Exército Imperial e o caçador nômade Dersu Uzala, um homem simples, intuitivo e profundamente conectado à natureza das florestas da Sibéria no início do século XX. O que começa como uma relação de mera utilidade – o guia que conhece o terreno – transforma-se numa amizade de respeito mútuo e admiração, onde Arseniev aprende com Dersu uma filosofia de vida baseada na harmonia com o mundo natural. O personagem-título é interpretado magistralmente por Maksim Munzuk, ator e músico da República da Tuva (então parte da URSS). Munzuk, pouco conhecido fora de seu país antes deste papel, empresta a Dersu uma humanidade tocante e autêntica, sua presença carrega algo de ancestral, como se o próprio espírito da floresta habitasse nele. É notável como seu desempenho se equilibra entre a ternura, a sabedoria e a melancolia, compondo um retrato que raramente o cinema conseguiu captar com tamanha pureza. A cinematografia é outro triunfo. Kurosawa, filmando em 70 mm, transforma a paisagem siberiana em protagonista: a vastidão dos campos, o brilho da neve, o reflexo da luz nas águas dos rios, tudo é captado com rigor pictórico e profundo respeito. O diretor, que sempre teve um olhar épico e humanista, encontra aqui um equilíbrio entre a grandiosidade da natureza e a pequenez do homem diante dela. Além de seu valor artístico, “Dersu Uzala” também preserva a memória de um homem real. Vladimir Arseniev (1872–1930) foi de fato um explorador e geógrafo russo, autor dos relatos que inspiraram o filme. Sua contribuição é considerada tão importante que, em 1952, uma cidade na região do Primorsky Krai, no Extremo Oriente russo, recebeu o nome de Arseniev em sua homenagem. Conta-se que na colina de Uvalnaya há monumentos erguidos à ele e ao seu guia Dersu. Hoje, a cidade é um centro industrial e cultural da região. Em resumo, “Dersu Uzala” é mais do que um encontro entre dois homens, é o encontro entre dois mundos: o da civilização e o da natureza, o do conhecimento técnico e o da sabedoria instintiva. Kurosawa filma essa dualidade sem juízo moral, apenas com compaixão e espanto. O resultado é uma obra-prima de simplicidade e profundidade universal, um testamento à fragilidade e à dignidade do ser humano em meio ao infinito natural. Um filme para ser visto com calma, como se caminhasse pela floresta ao lado de Dersu, ouvindo o vento e aprendendo, por um instante, a ser parte do mundo, não seu dono. Seria um pecado morrer sem ver. Se jogue.