15.11.25

"Os 4 Demônios" – F. W. Murnau (EUA, 1928)

Sinopse:
Quatro órfãos – Charles (Jack Parker/ Charles Morton), Adolf (Philippe de Lacy/ Barry Norton), Marion (Dawn O'Day/ Janet Gaynor) e Louise (Anita Fremault/ Nancy Drexel) - criados por um palhaço idoso (J. Farrell MacDonald), se tornam equilibristas em um circo. Um dia, Charles conhece uma ricaça (Mary Duncan) e se apaixona, deixando Marion enciumada.
Comentário: Friedrich W. Murnau (1888 -1931) foi um dos mais importantes realizadores do cinema mudo, do cinema expressionista alemão e do estilo Kammerspiel. "Nosferatu" (1922), uma adaptação pessoal da novela "Drácula", de Bram Stoker, é o filme mais conhecido da sua obra, juntamente com "A Última Gargalhada" (1924) e "Fausto" (1926). Em 1926, emigrou para Hollywood, onde, antes de morrer prematuramente aos 43 anos, realizaria o aclamado "Aurora" (1927). Assisti dele as obras-primas "Nosferatu" (1922) e "Aurora" (1927), os excelentes “O Castelo Vogelöd” (1921), "A Última Gargalhada" (1924), "Tartufo" (1925), "Fausto" (1926) e "O Pão Nosso de Cada Dia" (1930) e os curiosos “Caminhada Noite Adentro” (1920), “Fantasma” (1922) e "Tabu" (1931). Desta vez vou assistir o que restou do filme "Os 4 Demônios" (1928), um dos mais famosos 'filmes perdidos' de todos os tempos.
Trata-se de um filme de circo ambientado em Paris, que foi a continuação do diretor alemão F. W. Murnau para sua estreia americana, a obra-prima "Aurora" (1927). Até onde sabemos, nem mesmo um minuto do intrigante "Os 4 Demônios" foi visto por muitas décadas - nem a versão muda que estreou em outubro de 1928, nem a versão parcialmente falada com um final diferente que estreou em junho de 1929 filmada depois que Murnau deixou a Fox para o Taiti com Robert Flaherty para fazer "Tabu" (1931).
O filme é considerado perdido – assim como muitos outros desse período – pois usavam filme de nitrato, que é altamente inflamável e se degrada rapidamente. Muitos filmes feitos há um século foram perdidos para sempre devido a técnicas de armazenamento inadequadas em arquivos de estúdio ou incêndios. Somente da filmografia de Murnau, dos 21 filmes que ele rodou, nove estão perdidos:
1919. "O Garoto Vestido de Azul" (Der Knabe in Blau);
1920. "A cabeça de Janus" (Der Januskopf);
1920. "Crepúsculo - Noite - Manhã" (Abend - Nacht - Morgen);
1920. "O Corcunda e a Dançarina" (Der Bucklige und die Tänzerin);
1920. "Satanás" (Satanas) que restou apenas um breve fragmento do filme preservado no arquivo cinematográfico da Cinemateca Francesa;
1921. "Desejo Ardente" (Sehnsucht);
1922. "A Contrabandista" (Marizza) que restaram apenas 13 minutos da duração total de 50 minutos;
1923. "A Expulsão" (Die Austreibung) e 
1928. "Os 4 Demônios" (4 Devils).
No caso de "Os 4 Demônios", o historiador e colecionador de cinema William K. Everson conta que até havia uma cópia em bom estado que a Fox Films emprestou para a atriz Mary Duncan - uma das estrelas do filme. Ela a havia pego emprestada para mostrá-la a um grupo de amigos na Flórida. Como a estrela sabia que se tratava de uma cópia perigosa de nitrato e presumiu que a Fox tivesse outras, o que se diz é que ela simplesmente jogou essa única cópia no oceano.
Frente a isso, o que é possível assistir atualmente é a reconstrução feita pela historiadora de cinema Janet Bergstrom chamada "Murnau's 4 Devils: Traces of a Lost Film" (2003) que se utiliza de fotos, desenhos, esboços, rascunhos de roteiro, plantas arquitetônicas, programas, intertítulos e respostas a questionários de pré-estreia para tentar nos dar uma ideia de como era o filme original cuja trama gira em torno de quatro órfãos – dois irmãos e duas irmãs de pais diferentes - criados por um palhaço idoso, que se tornam equilibristas de sucesso em um circo.
Há também memórias e elementos do famoso trapezista da história do circo Alfredo Codona, que realizou seu perigoso triplo salto mortal como dublê e trabalhou como consultor para Murnau.
Então, embora não possamos ver o filme em si, este ensaio audiovisual apresenta materiais ricos que documentam sua produção e recepção, nos aproximando do mundo do filme e da experiência de Murnau.
O filme originalmente tinha 1h40m de duração e era dividido em duas partes, tendo no elenco da primeira parte: J. Farrell McDonald (o palhaço), Anders Randolf (Cecchi), Jack Parker (Charles), Philippe de Lacy (Adolf), Dawn O'Day (Marion), Anita Fremault (Louise) e no elenco da segunda parte: Janet Gaynor (Marion), Charles Morton (Charles), Nancy Drexel (Louise), Barry Norton (Adolf), Mary Duncan (la Signora). Além de contar com cerca de 1.260 figurantes. 
O que disse a crítica: O site Kinemastik gostou, disseram: "O filme de Bergstrom narra e reconta a fábula do filme e se envolve cada vez mais em seu tom e estilo (presumidos) e, efetivamente borra a linha divisória entre documentário e ficção de forma contida e sensível. Ele quase involuntariamente assume se tornar o material real, mas nunca esquece seu caráter substitutivo".
O que eu achei: O documentário "Murnau’s 4 Devils: Traces of a Lost Film" (2003) dirigido por Janet Bergstrom é uma verdadeira arqueologia cinematográfica - e, justamente por isso, uma oportunidade única de entrever um filme que o tempo apagou quase por completo. “Os 4 Demônios” (1928) de F. W. Murnau sobrevive apenas nos relatos dispersos, em algumas imagens fixas e em documentos de produção raríssimos; é um daqueles casos emblemáticos em que a cinefilia precisa imaginar o que a história não conseguiu preservar. Bergstrom assume esse desafio e constrói um trabalho rigoroso, delicado e estimulante. O filme funciona como uma reconstrução possível do longa perdido. A diretora mobiliza uma impressionante variedade de materiais – fotografias de bastidores, desenhos de cenários, esboços de roteiro, plantas arquitetônicas dos sets, páginas de programa e até intertítulos recuperados – para recompor não apenas a narrativa de "Os 4 Demônios", mas também o clima, a estética e as ambições formais de Murnau nesse projeto. Em vez de tentar “refazer” o filme, Bergstrom opta por um gesto mais honesto e revelador: oferecer ao espectador as pistas, fragmentos e indícios que nos permitem imaginar o que deveria ter sido. A narração é sóbria, informativa, mas sem sufocar o caráter evocativo das imagens. Percebe-se, em cada segmento, o cuidado em contextualizar tanto a carreira de Murnau quanto sua relação com a Fox Film, num momento em que o diretor buscava equilibrar a própria visão artística com as exigências do estúdio. A reconstrução mostra também o quanto "Os 4 Demônios" parecia expandir a preocupação do cineasta com espaços altamente estilizados e com a psicologia intensificada pelos enquadramentos e movimentos de câmera, uma marca já presente em obras anteriores como "A Última Gargalhada" (1924) e "Aurora" (1927). O documentário tem, ainda, o mérito de fazer o espectador pensar sobre a fragilidade do patrimônio cinematográfico. Ao ver os restos materiais do filme, somos lembrados do quanto a história do cinema é feita também de ausências e de como essas ausências moldam nossa compreensão da evolução estética e técnica da arte. "Murnau’s 4 Devils: Traces of a Lost Film" é uma experiência de ressurreição parcial, uma ponte entre o que se perdeu e o que ainda podemos reconstruir com sensibilidade e pesquisa. Para quem se interessa por Murnau, pela história do cinema mudo ou pela preservação cinematográfica, trata-se de uma oportunidade rara - talvez a única - de ter uma ideia concreta do que foi "Os 4 Demônios", um filme que sobrevive, agora, sobretudo na força de suas próprias lacunas.