
Comentário: Marielle Heller (1979) é uma diretora, roteirista e atriz americana. Ela dirigiu longas como "O Diário de Uma Adolescente" (2015) e " Um Lindo Dia na Vizinhança" (2019) e trabalhou como atriz na minissérie "O Gambito da Rainha" (2020). Assisti dela o ótimo "Poderia Me Perdoar?" (2018). Desta vez vou conferir "Canina" (2024).
Cláudio Alves da Magazine HD nos diz "Não foram só os animais que a Humanidade domesticou. Também fizemos isso a nós mesmos, confinando um espírito selvagem às demandas da harmonia doméstica. No entanto, dentro de todos, há uma besta à espera de despertar e se fazer ouvir, de rugir. Ou, como no caso de 'Canina', ladrar.
No seu quarto longa-metragem narrativo, a realizadora Marielle Heller propõe-se a considerar questões de maternidade neste paradigma onde o paradigma da domesticidade é uma prisão autoimposta e reforçada por uma sociedade onde a mulher perde o seu individualismo no momento em que se torna mãe.
Tal como no livro homônimo de Rachel Yoder [no qual o filme se baseia], a protagonista de 'Canina' não tem nome em reflexo dessa mesma dinâmica social. Ela é simplesmente a Mãe. Ela é alguém que, em tempos, foi uma artista plástica, mas agora passa os seus dias a cuidar do filho de dois anos. O marido, simplesmente conhecido como Marido, está sempre fora, trabalhando e viajando, ganhando dinheiro para sustentar este suposto idílio suburbano. Neste dever patriarcal, ele tem pouco tempo para ser pai, forçando ainda mais responsabilidade à esposa cuja identidade se deteriora perante esta subjugação ao papel materno.
Há um forte teor de isolamento no dia a dia dela, como se a criança que ela tanto ama fosse uma corrente a prendê-la a uma existência insuficiente. As ambições artísticas foram forçadas a dissipar, o amor-próprio foi apagado, a capacidade para se expressar amordaçada. De fato, em várias ocasiões, Heller deixa-nos ver a fantasia interior da Mãe, onde ela finalmente diz o que lhe vem à cabeça, sem medo de ofender ou quebrar o espírito das outras mães ao seu redor. Há uma raiva latente, um rosnar implícito naquele descontentamento. Há uma ferocidade também. Há algo dentro dela que quer sair, explodir o normal e extravasar os bons costumes.
Dessa interioridade furiosa emerge algo além do real. Certo dia, a Mãe descobre mamilos crescendo ao longo do torso. Depois vêm pelos, uma fome carnívora, alucinações noturnas e uma estranha afinidade para com um grupo de cães sem dono que andam pelas ruas, livres. Apesar de inicialmente descartar estes fenômenos – ora como uma pré-menopausa oras como psicose – a Mãe depressa aceita que está se transformando em cão. Bem, numa cadela, uma cadela da noite que corre sob a luz da lua e assim se libera do cárcere de ser pessoa. Em resumo, temos aqui um retrato simbólico da depressão pós-parto.
Estas descrições podem sugerir um drama psicológico, mas 'Canina' assemelha-se mais a uma comédia negra com veia satírica. Também é uma oportunidade para Heller brincar com gestos próximos ao terror, nomeadamente aquele subgênero que se costuma descrever como 'body horror'."
O que disse a crítica 1: Mattheus Goto da Veja SP avaliou com 2 estrelas, ou seja, fraco. Escreveu: " O longa tropeça no teor fantástico, sem convencer o espectador a se assustar ou se divertir, mas intriga com a reflexão sobre os instintos animalescos dentro de nós".
O que disse a crítica 2: Nathalia Jesus do site Adoro Cinema avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse: "Apesar de suas qualidades inegáveis, 'Canina' pode não ser para todos os gostos. Sua abordagem experimental e a intensidade de sua mensagem podem afastar espectadores que esperam uma comédia leve ou um filme de terror convencional. A natureza imprevisível do roteiro, com mudanças abruptas de tom, cria uma experiência que pode ser tanto fascinante quanto desconcertante. No entanto, para aqueles que buscam algo mais desafiador e subversivo, péssima notícia: o longa-metragem também não acrescenta tanta profundidade em suas discussões".
O que eu achei: Adaptação do livro "Nightbitch" de Rachel Yoder, "Canina" (2024) aborda a maternidade sob um viés inusitado: o de uma mulher que, após o nascimento do primeiro filho, começa a se transformar literalmente em um cão. A metáfora é potente - a animalização como resposta à sobrecarga emocional e física da maternidade -, mas o filme oscila entre o realismo fantástico e o drama social de modo irregular. Amy Adams, no papel principal, é sem dúvida o grande trunfo do longa. Em meio a uma carreira marcada por papéis de qualidade desigual, ela encontra aqui um personagem à altura de seu talento, expressando com intensidade o cansaço, a frustração e a ambiguidade da maternidade moderna. Sua atuação lhe valeu uma merecida indicação ao Globo de Ouro e é ela quem mantém o filme vivo mesmo quando o roteiro se torna excessivamente explicativo. Marielle Heller, de quem já assisti o ótimo "Poderia Me Perdoar?" (2018), constrói em "Canina" uma reflexão sobre as expectativas sociais impostas às mulheres: a idealização da mãe perfeita, o confinamento doméstico, o esvaziamento da identidade pessoal. O filme acerta ao revelar o lado selvagem e instintivo que a cultura tenta domesticar, mas peca ao tentar racionalizar demais esse processo, como se precisasse justificar o fantástico com um manual biológico sobre hormônios, gravidez e amamentação. Apesar dessas fragilidades, há no filme um toque de humanismo que o redime, conseguindo dar voz ao caos interior de sua protagonista e traduzir o conflito entre o corpo e a norma social. O desfecho - que dizem ser muito diferente da abordagem do livro – é tão simples e conciliador que acaba enfraquecendo a força simbólica da narrativa, meio que se perdendo entre a fábula e a tese. De qualquer forma é um filme curioso que acaba valendo pelo inusitado e pela sensibilidade com que aborda a maternidade contemporânea.
Cláudio Alves da Magazine HD nos diz "Não foram só os animais que a Humanidade domesticou. Também fizemos isso a nós mesmos, confinando um espírito selvagem às demandas da harmonia doméstica. No entanto, dentro de todos, há uma besta à espera de despertar e se fazer ouvir, de rugir. Ou, como no caso de 'Canina', ladrar.
No seu quarto longa-metragem narrativo, a realizadora Marielle Heller propõe-se a considerar questões de maternidade neste paradigma onde o paradigma da domesticidade é uma prisão autoimposta e reforçada por uma sociedade onde a mulher perde o seu individualismo no momento em que se torna mãe.
Tal como no livro homônimo de Rachel Yoder [no qual o filme se baseia], a protagonista de 'Canina' não tem nome em reflexo dessa mesma dinâmica social. Ela é simplesmente a Mãe. Ela é alguém que, em tempos, foi uma artista plástica, mas agora passa os seus dias a cuidar do filho de dois anos. O marido, simplesmente conhecido como Marido, está sempre fora, trabalhando e viajando, ganhando dinheiro para sustentar este suposto idílio suburbano. Neste dever patriarcal, ele tem pouco tempo para ser pai, forçando ainda mais responsabilidade à esposa cuja identidade se deteriora perante esta subjugação ao papel materno.
Há um forte teor de isolamento no dia a dia dela, como se a criança que ela tanto ama fosse uma corrente a prendê-la a uma existência insuficiente. As ambições artísticas foram forçadas a dissipar, o amor-próprio foi apagado, a capacidade para se expressar amordaçada. De fato, em várias ocasiões, Heller deixa-nos ver a fantasia interior da Mãe, onde ela finalmente diz o que lhe vem à cabeça, sem medo de ofender ou quebrar o espírito das outras mães ao seu redor. Há uma raiva latente, um rosnar implícito naquele descontentamento. Há uma ferocidade também. Há algo dentro dela que quer sair, explodir o normal e extravasar os bons costumes.
Dessa interioridade furiosa emerge algo além do real. Certo dia, a Mãe descobre mamilos crescendo ao longo do torso. Depois vêm pelos, uma fome carnívora, alucinações noturnas e uma estranha afinidade para com um grupo de cães sem dono que andam pelas ruas, livres. Apesar de inicialmente descartar estes fenômenos – ora como uma pré-menopausa oras como psicose – a Mãe depressa aceita que está se transformando em cão. Bem, numa cadela, uma cadela da noite que corre sob a luz da lua e assim se libera do cárcere de ser pessoa. Em resumo, temos aqui um retrato simbólico da depressão pós-parto.
Estas descrições podem sugerir um drama psicológico, mas 'Canina' assemelha-se mais a uma comédia negra com veia satírica. Também é uma oportunidade para Heller brincar com gestos próximos ao terror, nomeadamente aquele subgênero que se costuma descrever como 'body horror'."
O que disse a crítica 1: Mattheus Goto da Veja SP avaliou com 2 estrelas, ou seja, fraco. Escreveu: " O longa tropeça no teor fantástico, sem convencer o espectador a se assustar ou se divertir, mas intriga com a reflexão sobre os instintos animalescos dentro de nós".
O que disse a crítica 2: Nathalia Jesus do site Adoro Cinema avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse: "Apesar de suas qualidades inegáveis, 'Canina' pode não ser para todos os gostos. Sua abordagem experimental e a intensidade de sua mensagem podem afastar espectadores que esperam uma comédia leve ou um filme de terror convencional. A natureza imprevisível do roteiro, com mudanças abruptas de tom, cria uma experiência que pode ser tanto fascinante quanto desconcertante. No entanto, para aqueles que buscam algo mais desafiador e subversivo, péssima notícia: o longa-metragem também não acrescenta tanta profundidade em suas discussões".
O que eu achei: Adaptação do livro "Nightbitch" de Rachel Yoder, "Canina" (2024) aborda a maternidade sob um viés inusitado: o de uma mulher que, após o nascimento do primeiro filho, começa a se transformar literalmente em um cão. A metáfora é potente - a animalização como resposta à sobrecarga emocional e física da maternidade -, mas o filme oscila entre o realismo fantástico e o drama social de modo irregular. Amy Adams, no papel principal, é sem dúvida o grande trunfo do longa. Em meio a uma carreira marcada por papéis de qualidade desigual, ela encontra aqui um personagem à altura de seu talento, expressando com intensidade o cansaço, a frustração e a ambiguidade da maternidade moderna. Sua atuação lhe valeu uma merecida indicação ao Globo de Ouro e é ela quem mantém o filme vivo mesmo quando o roteiro se torna excessivamente explicativo. Marielle Heller, de quem já assisti o ótimo "Poderia Me Perdoar?" (2018), constrói em "Canina" uma reflexão sobre as expectativas sociais impostas às mulheres: a idealização da mãe perfeita, o confinamento doméstico, o esvaziamento da identidade pessoal. O filme acerta ao revelar o lado selvagem e instintivo que a cultura tenta domesticar, mas peca ao tentar racionalizar demais esse processo, como se precisasse justificar o fantástico com um manual biológico sobre hormônios, gravidez e amamentação. Apesar dessas fragilidades, há no filme um toque de humanismo que o redime, conseguindo dar voz ao caos interior de sua protagonista e traduzir o conflito entre o corpo e a norma social. O desfecho - que dizem ser muito diferente da abordagem do livro – é tão simples e conciliador que acaba enfraquecendo a força simbólica da narrativa, meio que se perdendo entre a fábula e a tese. De qualquer forma é um filme curioso que acaba valendo pelo inusitado e pela sensibilidade com que aborda a maternidade contemporânea.