
Comentário: Agnès Varda (1928-2019) foi uma fotógrafa e cineasta belga que se radicou na França. É considerada uma das precursoras da Nouvelle Vague. Seus filmes se notabilizam pela produção caseira e pela pesquisa de uma linguagem extremamente pessoal. Assisti dela o bom “Cléo das 5 às 7” (1962) e os documentários "Ulysse" (1982), "Os Catadores e Eu" (2000), "As Praias de Agnès" (2008) e "Visages, Villages" (2016) em parceria com o fotógrafo JR. Desta vez vou conferir o documentário “Daguerreótipos” (1975).
O historiador, cineasta e professor Charles Musser nos conta em seu site que Varda morou na Rue Daguerre desde 1951. Seu filho Mathieu nasceu nos anos 1970 a partir de uma gravidez de alto risco, principalmente considerando a época. Então filmar a rua onde ela morava permitiu que ela ficasse perto de casa e de seu novo filho - tema esse que tinha um componente doméstico e até mesmo maternal. Em uma narração, ela diz que as pessoas que ela filmou não estavam a mais de 50 metros da porta da frente de sua casa.
Ela e seu marido, o diretor Jacques Demy, eram parceiros próximos, embora não colaborassem juntos como cineastas. Eles, além de morar na Rue Daguerre, possuíam uma sala de edição que também ficava na mesma rua. É interessante observar o fato de que muitas das lojas também são administradas por duplas de marido e mulher e, em alguns casos, suas vidas parecem ecoar as de Varda/Demy. Os alfaiates, que fazem roupas sob encomenda, são mostrados cortando tecidos assim como Varda/Demy cortam seus filmes. Há também os cabeleireiros que têm lojas adjacentes, que compartilham uma porta para a rua: o marido cortando o cabelo dos homens enquanto a esposa corta o das mulheres. Talvez, como os cineastas, eles ora esperem, um tanto entediados e impacientes, pelos clientes, ora se dediquem a turbulências de trabalho intenso.
Este filme, como seria de esperar, é muito consciente e autorreflexivo. É um tanto clichê apontar que as vitrines têm como contrapartida o enquadramento da câmera e a tela do cinema. Quem está na rua olha pelas vitrines e vê os personagens do filme. Mas Varda vai um passo além e usa sua câmera para nos fornecer janelas para seus mundos: descobrimos onde nasceram, como os casais se conheceram e quando chegaram à Rue Daguerre. Conhecemos seus sonhos.
Da mesma forma, é importante saber que Varda era fotógrafa, além de cineasta. Ela provavelmente não foi parar na Rue Daguerre por acaso: que lugar melhor para um fotógrafo se estabelecer do que em uma rua que leva o sobrenome do inventor do primeiro processo fotográfico comercialmente bem-sucedido: Louis-Jacques-Mandé Daguerre (1787-1851)?
O nome do filme também funciona como um trocadilho com o nome daguerreótipo. Como Varda explicita em uma narração no final do filme, seus personagens são tipos típicos da pequena burguesia parisiense; mas seu documentário também nos oferece retratos fotográficos ou daguerreótipos como eram chamados na época do Daguerre. E embora o documentário seja um filme, em vários momentos os personagens de Varda posam para a câmera como se fosse uma câmera fotográfica de meados do século XIX, daquelas de captura bem lenta, assumindo poses formais e estáticas por vários segundos.
Musser também observa que a maioria dos retratados venha de lugares de fora de Paris, nascidos na Europa Oriental, na Argélia ou no sul da França, sugerindo que os daguerreótipos são algo mais do que um retrato rotineiro das tarefas diárias de Varda, mas sim um exame tácito dos limites que as pessoas percorrem para encontrar um lugar ao qual pertençam. Ela faz as mesmas perguntas a todos os lojistas - de onde você veio? quando chegou aqui? por que veio? - revelando que cada um passou por algum tipo de transição para chegar lá. Varda se consolidou ao longo da carreira como a padroeira dos outsiders no cinema e aqui fica claro como ela considerava essas histórias muito comoventes.
O que disse a crítica: Charles Musser achou bom. Escreveu: “Confesso que ‘Daguerreótipos’ ficou gravado na minha mente todos esses anos como uma conquista impressionante, o que não é uma opinião que eu necessariamente compartilhe com outros. O único livro sobre Varda em inglês, ‘Agnès Varda’, de Alison Smith (1998), menciona-o apenas de passagem. Dudley Andrew também tinha suas reservas, considerando-o uma obra menor (...). Do ponto de vista atual, pelo menos podemos ver o filme como uma antecipação dos estágios finais da notável carreira de Varda, já que elementos de ‘Daguerreótipos’ seriam reformulados em seu notável documentário ‘Os Catadores e Eu’ (2000), realizado cerca de 25 anos depois”.
Jesse Cataldo da Slant Magazine avaliou com o equivalente à 3,75 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: “‘Daguerreótipos’ tem um título bonitinho e o resultado, a princípio, parece previsivelmente piegas: pequenos retratos de lojistas trabalhando, aconchegados em charmosas lojas especializadas ao longo de uma rua tranquila, com seus defeitos identificados e colecionados. Mas, como muitas das explorações temáticas semelhantes de Varda, o resultado é mais do que parece à primeira vista: uma antropologia casual com uma forte inclinação humanista, resultando em um filme movido mais pela compaixão do que pela curiosidade. E é essa compaixão que eleva o filme, garantindo que o retrato de Varda, típico de um livro de contos de fadas, nunca pareça pretensioso ou manipulador, mesmo quando ela transforma esses indivíduos em figuras de diorama, no que se torna uma investigação sobre o lugar do indivíduo comum: na vida, na comunidade e até mesmo no cinema. Os personagens que ela apresenta (...) recebem atenção total, parte de seu esforço contínuo para destacar figuras marginalizadas”.
O que eu achei: Agnès Varda nasceu em 1928 na Bélgica, mas em 1940, por causa da Segunda Guerra Mundial, sua família se mudou para Sète, uma cidade marítima na França. Em 1951, quando Varda se mudou para a capital para estudar história e fotografia na École des Beaux-Arts, ela morou na Rue Daguerre e permaneceu naquele bairro por mais de 25 anos. Para quem não sabe o nome da rua é uma homenagem à Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), um pintor francês, inventor do primeiro processo fotográfico comercialmente bem-sucedido que, ao invés de receber o nome de 'fotografia' passou a se chamar 'daguerreótipo', palavra que dá título ao filme. No documentário Varda retrata a vida de lojistas e moradores dessa rua, pessoas com as quais ela convivia no dia a dia. Por meio de uma série de vinhetas intimistas, ela explora as rotinas, histórias e relacionamentos de padeiros, açougueiros, alfaiates e outros pequenos empresários locais, oferecendo um registro delicado, sincero e autêntico de uma comunidade enraizada na tradição em meio à paisagem urbana em evolução. São lojas e pessoas que atualmente já não existem mais. A cereja do bolo são as simulações de "daguerreótipos" que Varda produz com sua câmera de filmagem. Numa espécie de reverência à Daguerre, ela pede para esses comerciantes posarem estáticos em frente à filmadora, assim como se fazia antigamente no processo de Daguerre cujo registro da imagem se dava muito lentamente. Esses "retratos" obtidos por ela são de uma poesia inenarrável, transformando o documentário numa reflexão existencial, uma meditação aberta sobre a natureza e o valor da arte e da vida. Imperdível.
O historiador, cineasta e professor Charles Musser nos conta em seu site que Varda morou na Rue Daguerre desde 1951. Seu filho Mathieu nasceu nos anos 1970 a partir de uma gravidez de alto risco, principalmente considerando a época. Então filmar a rua onde ela morava permitiu que ela ficasse perto de casa e de seu novo filho - tema esse que tinha um componente doméstico e até mesmo maternal. Em uma narração, ela diz que as pessoas que ela filmou não estavam a mais de 50 metros da porta da frente de sua casa.
Ela e seu marido, o diretor Jacques Demy, eram parceiros próximos, embora não colaborassem juntos como cineastas. Eles, além de morar na Rue Daguerre, possuíam uma sala de edição que também ficava na mesma rua. É interessante observar o fato de que muitas das lojas também são administradas por duplas de marido e mulher e, em alguns casos, suas vidas parecem ecoar as de Varda/Demy. Os alfaiates, que fazem roupas sob encomenda, são mostrados cortando tecidos assim como Varda/Demy cortam seus filmes. Há também os cabeleireiros que têm lojas adjacentes, que compartilham uma porta para a rua: o marido cortando o cabelo dos homens enquanto a esposa corta o das mulheres. Talvez, como os cineastas, eles ora esperem, um tanto entediados e impacientes, pelos clientes, ora se dediquem a turbulências de trabalho intenso.
Este filme, como seria de esperar, é muito consciente e autorreflexivo. É um tanto clichê apontar que as vitrines têm como contrapartida o enquadramento da câmera e a tela do cinema. Quem está na rua olha pelas vitrines e vê os personagens do filme. Mas Varda vai um passo além e usa sua câmera para nos fornecer janelas para seus mundos: descobrimos onde nasceram, como os casais se conheceram e quando chegaram à Rue Daguerre. Conhecemos seus sonhos.
Da mesma forma, é importante saber que Varda era fotógrafa, além de cineasta. Ela provavelmente não foi parar na Rue Daguerre por acaso: que lugar melhor para um fotógrafo se estabelecer do que em uma rua que leva o sobrenome do inventor do primeiro processo fotográfico comercialmente bem-sucedido: Louis-Jacques-Mandé Daguerre (1787-1851)?
O nome do filme também funciona como um trocadilho com o nome daguerreótipo. Como Varda explicita em uma narração no final do filme, seus personagens são tipos típicos da pequena burguesia parisiense; mas seu documentário também nos oferece retratos fotográficos ou daguerreótipos como eram chamados na época do Daguerre. E embora o documentário seja um filme, em vários momentos os personagens de Varda posam para a câmera como se fosse uma câmera fotográfica de meados do século XIX, daquelas de captura bem lenta, assumindo poses formais e estáticas por vários segundos.
Musser também observa que a maioria dos retratados venha de lugares de fora de Paris, nascidos na Europa Oriental, na Argélia ou no sul da França, sugerindo que os daguerreótipos são algo mais do que um retrato rotineiro das tarefas diárias de Varda, mas sim um exame tácito dos limites que as pessoas percorrem para encontrar um lugar ao qual pertençam. Ela faz as mesmas perguntas a todos os lojistas - de onde você veio? quando chegou aqui? por que veio? - revelando que cada um passou por algum tipo de transição para chegar lá. Varda se consolidou ao longo da carreira como a padroeira dos outsiders no cinema e aqui fica claro como ela considerava essas histórias muito comoventes.
O que disse a crítica: Charles Musser achou bom. Escreveu: “Confesso que ‘Daguerreótipos’ ficou gravado na minha mente todos esses anos como uma conquista impressionante, o que não é uma opinião que eu necessariamente compartilhe com outros. O único livro sobre Varda em inglês, ‘Agnès Varda’, de Alison Smith (1998), menciona-o apenas de passagem. Dudley Andrew também tinha suas reservas, considerando-o uma obra menor (...). Do ponto de vista atual, pelo menos podemos ver o filme como uma antecipação dos estágios finais da notável carreira de Varda, já que elementos de ‘Daguerreótipos’ seriam reformulados em seu notável documentário ‘Os Catadores e Eu’ (2000), realizado cerca de 25 anos depois”.
Jesse Cataldo da Slant Magazine avaliou com o equivalente à 3,75 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: “‘Daguerreótipos’ tem um título bonitinho e o resultado, a princípio, parece previsivelmente piegas: pequenos retratos de lojistas trabalhando, aconchegados em charmosas lojas especializadas ao longo de uma rua tranquila, com seus defeitos identificados e colecionados. Mas, como muitas das explorações temáticas semelhantes de Varda, o resultado é mais do que parece à primeira vista: uma antropologia casual com uma forte inclinação humanista, resultando em um filme movido mais pela compaixão do que pela curiosidade. E é essa compaixão que eleva o filme, garantindo que o retrato de Varda, típico de um livro de contos de fadas, nunca pareça pretensioso ou manipulador, mesmo quando ela transforma esses indivíduos em figuras de diorama, no que se torna uma investigação sobre o lugar do indivíduo comum: na vida, na comunidade e até mesmo no cinema. Os personagens que ela apresenta (...) recebem atenção total, parte de seu esforço contínuo para destacar figuras marginalizadas”.
O que eu achei: Agnès Varda nasceu em 1928 na Bélgica, mas em 1940, por causa da Segunda Guerra Mundial, sua família se mudou para Sète, uma cidade marítima na França. Em 1951, quando Varda se mudou para a capital para estudar história e fotografia na École des Beaux-Arts, ela morou na Rue Daguerre e permaneceu naquele bairro por mais de 25 anos. Para quem não sabe o nome da rua é uma homenagem à Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), um pintor francês, inventor do primeiro processo fotográfico comercialmente bem-sucedido que, ao invés de receber o nome de 'fotografia' passou a se chamar 'daguerreótipo', palavra que dá título ao filme. No documentário Varda retrata a vida de lojistas e moradores dessa rua, pessoas com as quais ela convivia no dia a dia. Por meio de uma série de vinhetas intimistas, ela explora as rotinas, histórias e relacionamentos de padeiros, açougueiros, alfaiates e outros pequenos empresários locais, oferecendo um registro delicado, sincero e autêntico de uma comunidade enraizada na tradição em meio à paisagem urbana em evolução. São lojas e pessoas que atualmente já não existem mais. A cereja do bolo são as simulações de "daguerreótipos" que Varda produz com sua câmera de filmagem. Numa espécie de reverência à Daguerre, ela pede para esses comerciantes posarem estáticos em frente à filmadora, assim como se fazia antigamente no processo de Daguerre cujo registro da imagem se dava muito lentamente. Esses "retratos" obtidos por ela são de uma poesia inenarrável, transformando o documentário numa reflexão existencial, uma meditação aberta sobre a natureza e o valor da arte e da vida. Imperdível.