
Comentário: Mike Leigh (1943) é um cineasta, escritor e diretor de teatro britânico. Assisti dele três filmes excelentes: “Segredos e Mentiras” (1996), "O Segredo de Vera Drake" (2004) e "Mr. Turner" (2014). Desta vez vou conferir "Verdades Difíceis" (2024).
O site The Conversation nos diz "Se você pedisse a um programa de computador para criar um título para um novo filme de Mike Leigh, ele não encontraria nada melhor do que 'Verdades Difíceis' (Hard Truths). Fazendo eco ao título de seu primeiro filme de 1971, 'Bleak Moments', 'Verdades Difíceis' representa uma variação do tema recorrente do veterano diretor britânico sobre as ilusões que nos mantêm a um passo do desespero.
Com uma longa produção inicialmente adiada pelo lockdown, 'Verdades Difíceis' também é o retorno de Leigh a um cenário doméstico contemporâneo após os dramas históricos 'Mr. Turner' (2014) e 'Peterloo' (2018).
O filme é centrado em Pansy (Marianne Jean-Baptiste), uma mulher de meia-idade que vive com o marido Curtley (David Webber), um encanador, e seu filho adulto monossilábico, Moses (Tuwaine Barrett). Pansy está irritada, embora nunca fique claro exatamente o motivo da irritação. Jean-Baptiste retrata Pansy como uma fonte constante de exasperação. O filme é pontuado por suas longas tiradas, nas quais ela repreende qualquer um que se intrometa em sua solidão: vendedores, motoristas impacientes, uma raposa de jardim e, mais frequentemente, sua família próxima e perplexa.
'Verdades Difíceis' é uma comédia dramática sobre depressão. Não ouvimos falar de nenhum diagnóstico, nem de qualquer dificuldade ou infortúnio específico sofrido por Pansy. Em certo momento, a irmã de Pansy, Chantelle (Michele Austin), implora: 'Por que você não consegue simplesmente se divertir?', ao que Pansy responde com um frustrado 'Não sei'. Ao se recusar a oferecer qualquer explicação, o filme exibe um traço também característico da depressão, em que a pessoa é incapaz de encontrar sentido em sua vida.
Essa monotonia corre o risco de tornar 'Verdades Difíceis' uma experiência difícil de assistir. Mas ela se torna palatável por dois motivos. O primeiro é o desprezo desinibido demonstrado por Pansy aos seus antagonistas aleatórios, que tipicamente passam de tentar apaziguá-la a dar o troco. O abandono de qualquer proibição de morder o lábio fornece uma imagem agradável de como seria a vida social sem a máscara da civilidade.
O segundo ponto é a presença da irmã de Pansy, Chantelle, e suas duas filhas. Como otimistas incansáveis, elas representam um contraste polar entre Pansy e sua família. Se a família de Chantelle dá o impulso que mantém o filme em movimento, é o elo entre Chantelle e Pansy que, por fim, lhe dá o coração. (...)
'Verdades Difíceis' poderia então ser visto como a entrada de Leigh em um pequeno subgênero de filmes em que um renomado autor retrata uma psique feminina desequilibrada. Exemplos notáveis incluem Michelangelo Antonioni dirigindo Monica Vitti em 'Deserto Vermelho' (1964), Ingmar Bergman com Bibi Andersson e Liv Ullmann em 'Persona' (1966) e Pedro Almodóvar com Carmen Maura em 'Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos' (1988). Cada um desses filmes oferece visões espetaculares de colapso mental.
'Verdades Difíceis', no entanto, é quase completamente desprovido de estilização, sem sequer adotar a câmera trêmula que convencionalmente sinaliza um realismo implacável, como em 'Segredos e Mentiras', o primeiro de Leigh. 'Verdades Difíceis' busca, em vez disso, um visual televisivo, mesmo nos créditos iniciais, que se passam sobre uma tomada externa da casa suburbana onde a ação acontece.
Essa ação é vagamente conectada, como uma série de esquetes em vez da trajetória unificadora de um arco dramático. 'Verdades Difíceis' não é um filme que tenta emular a intensidade de um momento de colapso. Em vez disso, apresenta uma situação em que nada muda.
Pansy (...) é uma inversão da protagonista de 'Simplesmente Feliz' (2008), obra anterior de Leigh, Poppy (Sally Hawkins), cuja disposição otimista está constantemente em desacordo com as pessoas ao seu redor. O universo dramático de Leigh tende a ser povoado por dois tipos de pessoas: otimistas e pessimistas. Personagens não crescem e não mudam. As pessoas ou são infelizes ou são alegres, coexistindo e contemplando umas às outras em mútua incompreensão.
A perspectiva que Leigh expressa em seu cinema parece frequentemente oscilar entre o caricato e o sincero, o riso irônico e a lágrima. Nisso, também pode ser tentador ver Pansy como a expressão de algo no próprio Leigh. Decepcionada, irritadiça, cinicamente distante das outras pessoas, ela também dá indícios suficientes de que, no fundo, teme seu próprio anseio por uma conexão emocional.
Se há alguma verdade revelada no final, é o que poderíamos chamar de verdade da própria dificuldade – a ideia de que, apesar de nossas esperanças, a única realidade autêntica é que a vida é difícil. E, no entanto, como o filme também mostra, a esperança permanece e o conforto, por menor que seja, é possível".
O que disse a crítica: Peter Bradshaw do The Guardian avaliou com 4 estrelas, ou seja, excelente. Disse: "Eu esperava um grande alívio climático, como o do final do filme 'Tudo ou Nada', de Leigh, de 2002, mas talvez ele ache isso fácil demais, artificial demais, fictício demais. Pansy tem uma cena de riso histérico e lágrimas ao pensar em um certo buquê de flores, que também será o ponto focal de uma raiva amarga de Curtley. Mas este é um momento prolongado de alívio ou libertação. Talvez esta seja a verdade mais dura de todas: que em nosso mundo real, em toda a sua bagunça, dor e confusão não resolvida, não há acerto de contas final; apenas momentos de felicidade e verdade aos quais temos que nos agarrar".
Clarisse Loughrey do site The Independent também avaliou com 4 estrelas. Escreveu:"'Verdades Dfíceis' retém a catarse, optando por simplesmente deixar as janelas da psique de sua protagonista se abrirem por um breve interlúdio. Após ser presenteada com um pequeno, talvez insignificante, gesto de gentileza, os lábios de Pansy começam a tremer e, em seguida, se abrem em uma risada histérica, rapidamente seguida por soluços raivosos e ancestrais. Ninguém em sua família sabe o que dizer. Simplesmente a deixam chorar. Mas Leigh nos mostrou tudo o que precisamos ver: a alma interior que sempre foi mais fácil de ignorar".
O que eu achei: Mike Leigh retorna em "Verdades Difíceis" (2024) com a força característica de seu cinema: a capacidade de expor, com delicadeza e rigor, a complexidade humana diante de situações sociais que raramente encontram respostas fáceis. Na trama temos a protagonista Pansy (Marianne Jean-Baptiste sensacional no papel), uma mulher de meia-idade que vive mergulhada num estado de tensão permanente. Incapaz de trabalhar devido a episódios depressivos que se manifestam tanto no corpo como no comportamento, Pansy isola-se, explode em todas as interações sociais e reage com agressividade a qualquer tentativa de ajuda, sejam essas pessoas seu marido, filho, irmã, dentista ou mesmo pessoas desconhecidas na rua. O filme se constrói como um retrato cru e lúcido desse caso, deixando de lado soluções narrativas ou desfechos conciliatórios, e justamente aí reside sua potência. O mérito maior de Leigh é transformar a ausência de resolução em motor dramático. Afinal, quem poderia dizer à Pansy uma verdade tão difícil: a de que ela está doente e precisa de ajuda. E ela, por sua vez, aceitaria essa verdade? Ao se recusar a oferecer caminhos prontos, o diretor convida o espectador a lidar com a densidade dos dilemas apresentados - quase como se dissesse que compreender o problema já é, por si só, um gesto político e humano. O elenco, afinado como sempre sob a direção de Leigh, entrega performances carregadas de autenticidade, dando ao espectador a sensação de que aquelas pessoas existem para além da tela. A câmera observa, não julga. A narrativa avança sem pressa, criando um espaço de reflexão que se estende para fora do cinema, para a vida real. Gostar de um filme assim significa reconhecer a coragem de um cineasta que não teme a incompletude, mas a assume como forma de fidelidade ao mundo real, já que casos como os de Pansy quase nunca são resolvidos. A gente simplesmente não reconhece a doença, taxando a pessoa de difícil e mau educada e convive com ela a vida toda achando que ela 'é assim mesmo'. Mesmo sem apresentar soluções, "Verdades Difíceis" cumpre um papel essencial: iluminar as tensões e contradições que moldam as relações sociais. É um filme que não promete respostas, mas oferece perguntas incômodas - e é nesse terreno que o cinema de Mike Leigh continua sendo perspicaz e indispensável.
O site The Conversation nos diz "Se você pedisse a um programa de computador para criar um título para um novo filme de Mike Leigh, ele não encontraria nada melhor do que 'Verdades Difíceis' (Hard Truths). Fazendo eco ao título de seu primeiro filme de 1971, 'Bleak Moments', 'Verdades Difíceis' representa uma variação do tema recorrente do veterano diretor britânico sobre as ilusões que nos mantêm a um passo do desespero.
Com uma longa produção inicialmente adiada pelo lockdown, 'Verdades Difíceis' também é o retorno de Leigh a um cenário doméstico contemporâneo após os dramas históricos 'Mr. Turner' (2014) e 'Peterloo' (2018).
O filme é centrado em Pansy (Marianne Jean-Baptiste), uma mulher de meia-idade que vive com o marido Curtley (David Webber), um encanador, e seu filho adulto monossilábico, Moses (Tuwaine Barrett). Pansy está irritada, embora nunca fique claro exatamente o motivo da irritação. Jean-Baptiste retrata Pansy como uma fonte constante de exasperação. O filme é pontuado por suas longas tiradas, nas quais ela repreende qualquer um que se intrometa em sua solidão: vendedores, motoristas impacientes, uma raposa de jardim e, mais frequentemente, sua família próxima e perplexa.
'Verdades Difíceis' é uma comédia dramática sobre depressão. Não ouvimos falar de nenhum diagnóstico, nem de qualquer dificuldade ou infortúnio específico sofrido por Pansy. Em certo momento, a irmã de Pansy, Chantelle (Michele Austin), implora: 'Por que você não consegue simplesmente se divertir?', ao que Pansy responde com um frustrado 'Não sei'. Ao se recusar a oferecer qualquer explicação, o filme exibe um traço também característico da depressão, em que a pessoa é incapaz de encontrar sentido em sua vida.
Essa monotonia corre o risco de tornar 'Verdades Difíceis' uma experiência difícil de assistir. Mas ela se torna palatável por dois motivos. O primeiro é o desprezo desinibido demonstrado por Pansy aos seus antagonistas aleatórios, que tipicamente passam de tentar apaziguá-la a dar o troco. O abandono de qualquer proibição de morder o lábio fornece uma imagem agradável de como seria a vida social sem a máscara da civilidade.
O segundo ponto é a presença da irmã de Pansy, Chantelle, e suas duas filhas. Como otimistas incansáveis, elas representam um contraste polar entre Pansy e sua família. Se a família de Chantelle dá o impulso que mantém o filme em movimento, é o elo entre Chantelle e Pansy que, por fim, lhe dá o coração. (...)
'Verdades Difíceis' poderia então ser visto como a entrada de Leigh em um pequeno subgênero de filmes em que um renomado autor retrata uma psique feminina desequilibrada. Exemplos notáveis incluem Michelangelo Antonioni dirigindo Monica Vitti em 'Deserto Vermelho' (1964), Ingmar Bergman com Bibi Andersson e Liv Ullmann em 'Persona' (1966) e Pedro Almodóvar com Carmen Maura em 'Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos' (1988). Cada um desses filmes oferece visões espetaculares de colapso mental.
'Verdades Difíceis', no entanto, é quase completamente desprovido de estilização, sem sequer adotar a câmera trêmula que convencionalmente sinaliza um realismo implacável, como em 'Segredos e Mentiras', o primeiro de Leigh. 'Verdades Difíceis' busca, em vez disso, um visual televisivo, mesmo nos créditos iniciais, que se passam sobre uma tomada externa da casa suburbana onde a ação acontece.
Essa ação é vagamente conectada, como uma série de esquetes em vez da trajetória unificadora de um arco dramático. 'Verdades Difíceis' não é um filme que tenta emular a intensidade de um momento de colapso. Em vez disso, apresenta uma situação em que nada muda.
Pansy (...) é uma inversão da protagonista de 'Simplesmente Feliz' (2008), obra anterior de Leigh, Poppy (Sally Hawkins), cuja disposição otimista está constantemente em desacordo com as pessoas ao seu redor. O universo dramático de Leigh tende a ser povoado por dois tipos de pessoas: otimistas e pessimistas. Personagens não crescem e não mudam. As pessoas ou são infelizes ou são alegres, coexistindo e contemplando umas às outras em mútua incompreensão.
A perspectiva que Leigh expressa em seu cinema parece frequentemente oscilar entre o caricato e o sincero, o riso irônico e a lágrima. Nisso, também pode ser tentador ver Pansy como a expressão de algo no próprio Leigh. Decepcionada, irritadiça, cinicamente distante das outras pessoas, ela também dá indícios suficientes de que, no fundo, teme seu próprio anseio por uma conexão emocional.
Se há alguma verdade revelada no final, é o que poderíamos chamar de verdade da própria dificuldade – a ideia de que, apesar de nossas esperanças, a única realidade autêntica é que a vida é difícil. E, no entanto, como o filme também mostra, a esperança permanece e o conforto, por menor que seja, é possível".
O que disse a crítica: Peter Bradshaw do The Guardian avaliou com 4 estrelas, ou seja, excelente. Disse: "Eu esperava um grande alívio climático, como o do final do filme 'Tudo ou Nada', de Leigh, de 2002, mas talvez ele ache isso fácil demais, artificial demais, fictício demais. Pansy tem uma cena de riso histérico e lágrimas ao pensar em um certo buquê de flores, que também será o ponto focal de uma raiva amarga de Curtley. Mas este é um momento prolongado de alívio ou libertação. Talvez esta seja a verdade mais dura de todas: que em nosso mundo real, em toda a sua bagunça, dor e confusão não resolvida, não há acerto de contas final; apenas momentos de felicidade e verdade aos quais temos que nos agarrar".
Clarisse Loughrey do site The Independent também avaliou com 4 estrelas. Escreveu:"'Verdades Dfíceis' retém a catarse, optando por simplesmente deixar as janelas da psique de sua protagonista se abrirem por um breve interlúdio. Após ser presenteada com um pequeno, talvez insignificante, gesto de gentileza, os lábios de Pansy começam a tremer e, em seguida, se abrem em uma risada histérica, rapidamente seguida por soluços raivosos e ancestrais. Ninguém em sua família sabe o que dizer. Simplesmente a deixam chorar. Mas Leigh nos mostrou tudo o que precisamos ver: a alma interior que sempre foi mais fácil de ignorar".
O que eu achei: Mike Leigh retorna em "Verdades Difíceis" (2024) com a força característica de seu cinema: a capacidade de expor, com delicadeza e rigor, a complexidade humana diante de situações sociais que raramente encontram respostas fáceis. Na trama temos a protagonista Pansy (Marianne Jean-Baptiste sensacional no papel), uma mulher de meia-idade que vive mergulhada num estado de tensão permanente. Incapaz de trabalhar devido a episódios depressivos que se manifestam tanto no corpo como no comportamento, Pansy isola-se, explode em todas as interações sociais e reage com agressividade a qualquer tentativa de ajuda, sejam essas pessoas seu marido, filho, irmã, dentista ou mesmo pessoas desconhecidas na rua. O filme se constrói como um retrato cru e lúcido desse caso, deixando de lado soluções narrativas ou desfechos conciliatórios, e justamente aí reside sua potência. O mérito maior de Leigh é transformar a ausência de resolução em motor dramático. Afinal, quem poderia dizer à Pansy uma verdade tão difícil: a de que ela está doente e precisa de ajuda. E ela, por sua vez, aceitaria essa verdade? Ao se recusar a oferecer caminhos prontos, o diretor convida o espectador a lidar com a densidade dos dilemas apresentados - quase como se dissesse que compreender o problema já é, por si só, um gesto político e humano. O elenco, afinado como sempre sob a direção de Leigh, entrega performances carregadas de autenticidade, dando ao espectador a sensação de que aquelas pessoas existem para além da tela. A câmera observa, não julga. A narrativa avança sem pressa, criando um espaço de reflexão que se estende para fora do cinema, para a vida real. Gostar de um filme assim significa reconhecer a coragem de um cineasta que não teme a incompletude, mas a assume como forma de fidelidade ao mundo real, já que casos como os de Pansy quase nunca são resolvidos. A gente simplesmente não reconhece a doença, taxando a pessoa de difícil e mau educada e convive com ela a vida toda achando que ela 'é assim mesmo'. Mesmo sem apresentar soluções, "Verdades Difíceis" cumpre um papel essencial: iluminar as tensões e contradições que moldam as relações sociais. É um filme que não promete respostas, mas oferece perguntas incômodas - e é nesse terreno que o cinema de Mike Leigh continua sendo perspicaz e indispensável.