1.9.25

"O Beijo no Asfalto" – Bruno Barreto (Brasil, 1981)

Sinopse:
Um desconhecido é morto ao ser atropelado por um ônibus e, agonizante, pede a um bancário (Ney Latorraca) que presencia o atropelamento que lhe dê um beijo na boca. Este gesto é transformado em escândalo pela imprensa sensacionalista e o homem que cometeu o 'crime' de beijar um agonizante passa a ser alvo de preconceito popular e também a ser investigado pela polícia, que começa a supor que o acidente tenha sido um assassinato.
Comentário: Bruno Barreto (1955) é um cineasta brasileiro. Ele é filho dos produtores Lucy e Luiz Carlos Barreto, donos da Produtora LCD Barreto Filmes do Equador, responsável por importantes filmes brasileiros. Seu irmão, Fábio Barreto, também é cineasta. Seu primeiro longa-metragem, "Tati" (1972), foi financiado por sua avó. Constam em seu curriculum cerca de 19 filmes, dentre eles "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1977) e "O Que É Isso, Companheiro?" (1997) indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. "O Beijo no Asfalto" (1981) é o primeiro filme que vejo dele.
Pedro A. Duarte do site Medium nos conta que "'O Beijo no Asfalto' (1981) (...) adapta a peça de mesmo nome escrita por Nelson Rodrigues (1912–1980) e publicada em 1960. O texto original foi encomendado por uma jovem Fernanda Montenegro para a companhia A Sociedade Teatro dos Sete. Conta a história de Arandir (no filme, interpretado por Ney Latorraca) que vê sua vida e a de sua esposa, Selminha (Christiane Torloni), revirada do avesso após ele ter beijado um homem atropelado pois o fato foi divulgado nos jornais de forma sensacionalista.
A peça foi adaptada ao cinema três vezes. A primeira em 1964 foi intitulada simplesmente 'O Beijo', dirigida por Flávio Tambellini; e a última em 2018 dirigida por Murilo Benício".
Segundo Duarte, o personagem mais interessante da história é "o jornalista responsável por escrever a matéria sobre o beijo. Se o leitor permitir certo anacronismo, podemos analisar as ações de Amado sob o crivo do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, em vigor desde 1987 e atualizado em 2007 pela Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ), entidade brasileira que representa a categoria no país.
Após um prólogo mostrando o resultado do acidente, o filme abre a história da mesma maneira que a peça. O repórter Amado Pinheiro (interpretado por Daniel Filho) visita o delegado Cunha (Oswaldo Loureiro) em sua sala na delegacia. Enquanto testemunha ocular do ocorrido, Amado conta como a cena do beijo aconteceu: um rapaz, que estava ao seu lado na calçada, caiu na rua e um ônibus que passava rente ao meio-fio o atropelou; ele então vê um outro rapaz, Arandir, se aproximar da vítima e beijá-la; pouco tempo depois, a vítima faleceu. Amado explica que irá vender jornal pra burro com essa história e propõe a Cunha unirem-se para investigar o caso. (...)
No dia seguinte o beijo se torna um escândalo. O caso sai na capa do jornal Última Hora com a manchete 'O Beijo no Asfalto'. Os dizeres 'não foi o primeiro beijo, nem foi a primeira vez', encerram a reportagem, já denotando as manipulações de Amado pois Arandir jamais confessou conhecer a vítima.
Aqui vale um adendo: o jornal Última Hora não é fictício. Ele foi fundado em junho de 1951 por Samuel Wainer (1912–1980), jornalista e empresário russo-brasileiro. Nelson Rodrigues trabalhou neste jornal onde começou a escrever sua famosa série de contos 'A Vida Como Ela é'. O jornal decretou falência em 1991".
O que disse a crítica: Michel Gutwilen do site Papo de Cinema avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: "É importante destacar a maneira como se filma a última cena de 'O Beijo no Asfalto' e como ela contrasta com a primeira. Enquanto em seu conteúdo ela fecha a história ciclicamente, além de evidenciar a farsa do personagem mais moralista, sua mise-en-scène vai no sentido de uma extrema frontalidade, diferente da ocultação do primeiro beijo. A maior tragédia da sociedade brasileira é a repressão dos seus sentimentos".
Eduardo Kaneco do site Leitura Fílmica avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: "A brutalidade moral e física na trama é enfatizada pela belíssima trilha sonora, composta por Guto Graça Mello. Aliás, a música marca presença constante e muito forte, elevando a dramaticidade das cenas. E a sua sonoridade aponta para uma poesia inesperada, tão surpreendente quanto a conclusão de 'O Beijo no Asfalto'. Assim, a última cena remete à origem teatral da estória, quando os personagens permanecem estáticos na posição em que encerram suas participações, tendo ao fundo os Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro".
O que eu achei: Baseado na peça homônima de Nelson Rodrigues, "O Beijo no Asfalto" (1981) é um filme que preserva a contundência do texto original, trazendo à tela uma crítica feroz às hipocrisias sociais e à moralidade forjada pela aparência. Bruno Barreto consegue captar o clima sufocante das convenções brasileiras, transformando um gesto de humanidade – um beijo entre dois homens, um deles à beira da morte – em catalisador de preconceito, escândalo e perseguição. A direção se mantém fiel à densidade rodriguiana, explorando os diálogos afiados e as ambiguidades morais dos personagens, sem perder o ritmo cinematográfico. A fotografia reforça o tom claustrofóbico, enquanto as interpretações dão vida à tragédia cotidiana proposta pelo autor. O elenco transmite com intensidade tanto o peso da suspeita quanto o veneno da malícia social. O filme funciona não só como retrato de seu tempo, mas também como obra que permanece atual, já que expõe o quanto a intolerância e a manipulação midiática ainda moldam narrativas e destroem reputações. Essa permanência é, sem dúvida, um dos maiores méritos da adaptação: transformar um texto teatral em cinema vigoroso, sem diluir sua força. Se por um lado não arrisca grandes inovações formais, por outro entrega uma obra sólida, provocativa e capaz de incomodar ainda hoje. É um retrato cortante da mesquinhez urbana, conduzido com segurança por Barreto e sustentado pela genialidade de Nelson Rodrigues. No elenco brilha a dupla Tarcísio Meira e Ney Latorraca. Um filme enxuto (80m) que vale ser visto.