23.8.25

“Sem Chão” - Basel Adra & Hamdan Ballal & Yuval Abraham & Rachel Szor (Palestina/Noruega/Dinamarca/França/Alemanha/Bélgica, 2024)

Sinopse:
Documentário produzido por um coletivo palestino-israelense que mostra a destruição do município de Masafer Yatta por soldados israelenses na Cisjordânia ocupada e a aliança que se desenvolve entre o ativista palestino Basel e o jornalista israelense Yuval.
Comentário: “Sem Chão” é um documentário feito a quatro mãos que mostra a ocupação da Palestina, especificamente em Masafer Yatta, um conjunto de 19 aldeias ou vilas palestinas que compõem um município no sul da Cisjordânia, na província de Hebron, por Israel. Os quatro diretores são: Basel Adra (cineasta, advogado e ativista palestino), Hamdan Ballal (cineasta e ativista palestino) e Yuval Abraham (jornalista israelense) e Rachel Szor (cineasta israelense). O longa venceu o Oscar 2025 na categoria de Melhor Documentário, levando a questão do genocídio palestino a uma posição de destaque na premiação.
Ryan Di Corpo do site Instituto Humanitas Unisinos nos conta que “Basel Adra relembra sua primeira memória: seu pai, um dono de posto de gasolina chamado Nasser, sendo preso pelas forças israelenses por protestar contra a ocupação da Palestina. Adra tinha 5 anos. Duas décadas depois, aos 28 anos, Adra é um ativista e cineasta palestino que registra a destruição de propriedade e o deslocamento forçado de moradores palestinos em Masafer Yatta, uma comunidade lutando para sobreviver e lutando por seus direitos básicos na Cisjordânia ocupada por Israel.
Um documento histórico essencial que informa e enfurece em igual medida, ‘Sem Chão’ (...), retrata forças israelenses destruindo escolas, arrasando casas, despejando famílias e atirando em um morador palestino após tentar roubar suas ferramentas de construção.
O filme centra-se na improvável parceria entre Adra, que vive em Masafer Yatta com sua família, e o jornalista israelense Yuval Abraham, que chega lá para investigar as expulsões que estão sendo perpetradas ‘em seu nome’.
Codirigido por Adra, Abraham, Hamdan Ballal e Rachel Szor, este documentário vital é tanto um grito de guerra político quanto um apelo à nossa humanidade básica. Suas cenas irritam a consciência, cortando o ruído dos debates políticos para retratar uma comunidade à beira do abismo, famílias ameaçadas pela ameaça de expulsão e desapropriação.
O filme retrata as operações israelenses em Masafer Yatta (Palestina) do verão de 2019 até imediatamente antes do massacre em 07/10/2023, quando terroristas do Hamas massacraram mais de 1.200 civis israelenses. Ao documentar a destruição de Masafer Yatta, Adra esperava que seu trabalho pudesse ajudar a encorajar os EUA a pressionar Israel. (Claro, isso foi antes do segundo mandato do presidente Donald Trump).
Assistimos enquanto palestinos perdem suas casas e meios de subsistência em tempo real enquanto as forças israelenses seguem ordens. Crianças em idade escolar escapam por uma janela antes que sua sala de aula seja destruída. Forças israelenses desabilitam um poço de água, supostamente construído sem permissão, entupindo-o com cimento. Depois que sua casa é destruída, uma família - uma mãe com seus filhos - se retira para uma caverna e come um saco de pão no jantar. ‘Eles nos fizeram estrangeiros em nossa própria terra’, diz um palestino.
Situado entre as colinas de South Hebron, na Cisjordânia inferior, Masafer Yatta abrange uma dúzia de vilas e mais de 30.000 dunams de terra (aproximadamente 7.400 acres). Em 2022, a área era o lar de cerca de 1.150 aldeões palestinos, quase metade dos quais eram crianças.
A Cisjordânia (território que, com a Faixa de Gaza, forma o Estado da Palestina) está sob ocupação israelense desde a Guerra dos Seis Dias em 1967. E no início dos anos 1980, Israel declarou a região das Colinas do Sul de Hebron uma ‘zona de tiro’ - designada como Zonas de Tiro 917 e 918 - a ser usada para treinamento militar pelas Forças de Defesa de Israel. A designação da zona de tiro permitiu que Israel iniciasse a expulsão em massa de palestinos das aldeias.
Em 1995, o Acordo de Oslo II, um acordo provisório entre Israel e Palestina, dividiu a Cisjordânia em três seções administrativas: Áreas A, B e C. As duas primeiras áreas foram estabelecidas sob controle palestino limitado, enquanto a Área C, que inclui Masafer Yatta e quase dois terços da Cisjordânia, é administrada por Israel.
Os acordos estabelecem uma expectativa de que a terra na Área C seja ‘gradualmente transferida para a jurisdição palestina’, mas a área permanece sob controle israelense. Essas divisões de terra criaram um complicado ‘mapa do queijo suíço’, restringindo os palestinos a enclaves dispersos e desconectados por toda a Cisjordânia.
Em maio de 2022, após uma prolongada batalha legal que começou na década de 1980, a Suprema Corte israelense decidiu que as forças israelenses poderiam expulsar civis palestinos de Masafer Yatta, descrevendo a zona de tiro como ‘essencial para necessidades militares e de segurança’. A opinião do tribunal afirma que, antes do estabelecimento da zona de tiro, ‘não havia habitação permanente dentro de seus limites’, permitindo a transferência forçada de palestinos sob a lei israelense. A demolição de escolas, casas e outras infraestruturas em Masafer Yatta liderada por Israel se acelerou após a decisão.
Samer Daoudi é o coordenador de programas e advocacia da Sociedade de St. Yves, uma organização católica de direitos humanos sediada em Jerusalém, fundada pelo antigo patriarca latino Michel Sabbah em 1991. (Sabbah nasceu na Palestina, então sob domínio britânico.) A sociedade fornece assistência jurídica pro bono para palestinos que vivem em Masafer Yatta, e a maioria dos casos jurídicos visam impedir ordens de demolição. (...)
Em 10 de fevereiro deste ano, os militares teriam demolido sete casas e deixado 54 pessoas, incluindo 28 crianças, desabrigadas. ‘Enquanto o mundo assiste a 'Sem Chão', colonos israelenses estão invadindo e queimando nossas aldeias enquanto soldados nos prendem, abusam de nós e demolem nossas casas’, observa o codiretor Adra”.
Em nota, em março de 2025, enquanto o diretor palestino Hamdan Ballal filmava um ataque de colonos israelitas ele foi agredido e acusado de ‘atirar pedras’. Eles o espancaram e ele ficou com ferimentos na cabeça e no estômago, sangrando. Ele conseguiu chamar uma ambulância, mas soldados israelitas o raptaram. Ele só foi libertado um dia depois.
O que disse a crítica: Bruno Carmelo do site Meio Amargo avaliou com o equivalente a 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Disse: “’Sem Chão’ possui ritmo fluido e precioso tratamento de som, apesar da precariedade de recursos ao redor. Ele nunca se contenta com a imagem amadora, pelo contrário, demonstra cuidado de composição, e refinamento de luz, enquadramento, edição. Reconhece-se de imediato um trabalho profissional, competente, do tipo que o Oscar adora recompensar. Assim, os questionamentos diante de uma iniciativa tão polida e popular (...) não residem em seu posicionamento ético, nem na qualidade da realização. Eles decorrem da tentativa, impossível e utópica, de eliminar o abismo existente entre o real e sua representação. Apesar da insistência das imagens, nunca vemos o real, mas uma versão dele. Caso a obra se assumisse enquanto construção e reflexão, seria mais interessante do que a insistência em se passar por uma comprovação de fatos - algo que o cinema é incapaz de fornecer, e que nem sequer constitui sua função, muito menos a potência”.
Pablo Villaça do site Cinema em Cena avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “Não é surpresa (...) que Israel siga em sua campanha genocida em Gaza – e não me refiro apenas às dezenas de milhares de mortes nas últimas décadas, mas aos ataques ocorridos nos últimos cinco meses e que resultaram em cerca de 30 mil mortos, incluindo 12 mil crianças (um número exponencialmente maior que o das vítimas do ato bárbaro do Hamas em 7 de Outubro – e que, por sua vez, foi uma resposta a décadas de ataques israelenses contra palestinos); ora, se Israel jamais é punido pelo horror que impõe aos palestinos (ou mesmo publicamente criticado), por que deveria interromper o processo de remoção/eliminação daquele povo? A esperança é que obras como ‘Sem Chão’ sirvam para expor todas estas barbaridades e, assim, acelerem uma reação que ocorra a tempo de impedir o extermínio completo de uma população que, contra todas as probabilidades, vem resistindo bravamente há décadas”.
O que eu achei: "Sem Chão" (2024) é o relato da ocupação colonial israelense, feito em primeira pessoa por Basel Adra, um palestino da Cisjordânia. Nascido numa das aldeias que compõe Masafer Yatta, Basel cresceu vendo seu pai lutar para permanecer no local já que essa ocupação não é recente. Basel hoje tem 28 nos e ele via o pai lutando desde que ele tinha 5 anos. A área já havia sido declarada pelos israelenses como local de treinamentos militares há anos. Insistindo que as vilas eram o lar de suas famílias há gerações, os palestinos apresentaram mapas desenhados no início do século 19 que apontavam a existência das aldeias e até mesmo um livro escrito por um geógrafo 'israelense' em 1931 que reforçava este fato, mas a Suprema Corte do país rejeitou os argumentos e determinou a remoção de todos os moradores, transformando o cotidiano daqueles indivíduos em um verdadeiro inferno. É essa remoção que o documentário mostra. O filme ganhou o Oscar no exato momento em que Trump anunciou seu resort com vista para o Mar Mediterrâneo e que Netanyahu fechou a entrada de alimentos em Gaza. No documentário Basel é quem mais aparece, mas ao seu lado está Yuval Abraham, um jornalista israelense, que discorda das práticas de seu país. Além deles dois, a direção do documentário é dividida com o palestino Hamdan Ballal e com a israelense Rachel Szor, formando um coletivo palestino-israelense. O filme e a premiação funcionaram como uma contra-narrativa sobre a poderosa máquina de propaganda israelense, arrombando o muro de desinformação que o governo de Israel, as redes sociais e a grande mídia coniventes com o genocídio tentam nos impor. Um filme corajoso e honesto que vai te mostrar o lado mais fraco de história. Não perca.