16.6.25

“Accattone - Desajuste Social” - Pier Paolo Pasolini (Itália, 1961)

Sinopse:
Nas duras ruas de Roma, o cafetão Accattone (Franco Citti) vive precariamente à margem da sociedade, prostituindo mulheres, mendigando e explorando outras pessoas. Quando sua prostituta, Maddalena (Silvana Corsini), se acidenta, seu ganha-pão começa a diminuir, forçando-o a enfrentar sua própria existência.
Comentário: Pier Paolo Pasolini (1922-1975) foi um cineasta italiano. Formou-se em Estudos Literários pela Universidade de Bolonha, publicou livros de poesia, contos e romances. Foi poeta, editor, pintor, ensaísta, crítico literário e cinematográfico, roteirista, jornalista e agitador cultural. Somente aos 40 anos de idade se rendeu ao cinema, meio pelo qual ganharia projeção mundial. Gay, cristão e marxista, Pasolini era polêmico, controverso e marcou uma época. Intelectual profundamente crítico da sociedade de consumo e do capitalismo, foi uma figura central na vida cultural italiana dos anos 1950 aos 1970. Faleceu assassinado em 1975. Assisti dele, até o momento, os bons "Mamma Roma" (1962) e “Teorema” (1968), o mediano “O Decameron” (1971) e o curioso “O Evangelho Segundo São Mateus” (1964). 
Desta vez vou conferir “Accattone - Desajuste Social” (1961), o primeiro longa-metragem do diretor, rodado com Bernardo Bertolucci ao seu lado como assistente de direção. A trama gira em torno de um cafetão que sobrevive na periferia de Roma, em 1960, graças a Maddalena, uma prostituta de cujos ganhos ele depende. Quando Maddalena é se acidenta, ele perde sua receita e acaba sucumbindo.
O filme teve sua estreia no Festival de Veneza do mesmo ano, mas sua recepção foi controversa, tendo sido bastante atacado pelas frentes neofascistas, com eventos que chegaram a ser violentos nas salas onde o filme foi exibido. Um prenúncio do que a vida artística e política de Pasolini lhe traria durante toda a sua vida.
O título do filme – “Accatone” – refere-se ao apelido do cafetão protagonista do longa, derivado da palavra “accattare”, do dialeto romano, aplicado a vagabundos, mendigos ou a pessoas que estão à espera de que algo lhes caia no colo, preparados para optarem por esquemas ilegais para obterem o que querem.
Enrico Mancini do site Tribuna do Cinema publicou uma matéria dizendo “é um filme sobre a busca pela paz, mas o que impulsiona e orienta a narrativa é a morte. Isso porque a morte surge como fantasia, um sonho para os personagens, especialmente o que dá nome ao filme, interpretado brilhantemente por Franco Citti. Só na morte, ao católico, a paz é garantida.
Ainda na primeira cena do filme descobrimos que um membro do grupo de Accattone - constituído por pequenos ladrões, chulos, vigaristas e prostitutas – morre após uma aposta onde ele deveria atravessar o rio depois de comer um quilo de massa e um cesto de caquis. A morte é quase cômica, e modulada a partir da busca pela atenção – a vontade de ser visto.
É nesse tom que o protagonista aceita o desafio de se jogar de uma ponte – com todo o seu ouro, ‘como os faraós’, ele berra. A ponte é no centro da cidade porque morrendo na periferia, ele, enquanto um rapaz proletário, não viraria notícia. A vontade de ser visto, lembrado, é central. E a morte figura como um veículo não só para escapar entre os dedos da vida sofrida que ele é condenado a viver, mas uma forma de marcar sua existência no mundo: um suicídio público, onde sua vida, mesmo que marcada pela morte, seria publicada, repercutida. O salto não dá em nada, ‘nem o rio quer Accattone’, diz Sérgio Alpendre.
Pasolini expressa solidariedade com o personagem de Citti e seu grupo, apesar de viverem da exploração cínica de mulheres e de pequenos golpes. Para o diretor, a vida deles é uma miséria inescapável, condicionada pelas condições materiais de se viver no capitalismo enquanto pobres marginalizados. O que resta é esperar calmamente pela morte? Que se antecipe a morte de maneira chamativa, uma revolta absurdista.
É mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo, assim como é mais fácil imaginar o fim da vida que nela ascender socialmente. A morte se disfarça de fuga quando fugir parece o único caminho".
O que disse a crítica: Rafael Amaral do site Palavras de Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: “Em ‘Accattone - Desajuste Social’, Pasolini dá-nos um homem e suas passagens, sua inexatidão, seu instinto calcado apenas no movimento e na certeza de que só cabe naquele universo marginalizado. Suas mulheres e sua estranha tendência à redenção. Alguém perseguido pelas autoridades e seus grandes olhos, para quem a fome é um vício”.
Inês Paredes do Cinema Sétima Arte também avaliou com 4 estrelas. Escreveu: “Pasolini afirma desde logo algumas das características do seu cinema: o uso de atores amadores, a pobreza, e os personagens eternamente párias da sociedade. As suas maiores influências são pictóricas, e não cinematográficas (...). Accattone é um personagem-estereótipo constante no cinema de Pasolini (...). Na sua base está o ator Franco Citti, que compõe um personagem nem bom nem mau, apenas alguém que se vai deixando levar ao sabor da vida. ‘Accatone’ é um retrato deprimente de uma Itália, que mostra camadas sociais desfavorecidas, marginais, dispostas a todos os pequenos recursos ilegais que lhes garantissem mais um dia de sobrevivência, e mostra um simbolismo caraterístico, que tanto pode ir do homoerotismo à iconografia católica e música religiosa”.
O que eu achei: Eu não posso dizer que sou fã de carteirinha de toda a filmografia de Pasolini, mas nessa primeira fase estão os que eu mais gosto como este “Accattone” de 1961, seu primeiro filme, ou “Mama Roma” (1962) que veio logo na sequência. Ambos são P&B e mostram pessoas marginalizadas como prostitutas, moradores da periferia, ladrões e miseráveis com integridade sem nunca buscar embelezá-los, o que resulta num retrato consistente e honesto, especialmente numa Itália acostumada a ver nas telas atores e atrizes belos, bem vestidos, maquiados e com todos os dentes na boca. Em “Accattone” ele vai focar num cafetão (Franco Citti) que consegue seu sustento às custas de Maddalena (Silvana Corsini), mas ela sofre um acidente e o deixa sem o ganha-pão. Com isso ele agora terá que se virar para conseguir algum sustento, talvez até trabalhar, coisa que não está em seus planos. Crítico do capitalismo, a ideia de trabalho aparece aqui ligada à ideia de sacrifício e de exploração, com a morte – que aparece no filme em diversos momentos – surgindo sempre como uma oportunidade de ser visto, de ser alguém, configurando uma espécie de redenção. Um filme triste e sombrio, que expõe nossas fraquezas coletivas e individuais. Um retrato realista do submundo de pobreza e daqueles que vivem de pequenos roubos. Vale ver.