19.5.25

“Gosto de Cereja” - Abbas Kiarostami (Irã/França, 1997)

Sinopse:
Badii (Homayou Ershadi) é um homem rico de meia-idade que está pensando em cometer suicídio e procura desesperadamente alguém que possa ajudá-lo. Ele já fez a sua cova embaixo de uma cerejeira nas montanhas, mas precisa que alguém enterre seu corpo.
Comentário: Abbas Kiarostami (1940-2016) foi um cineasta, roteirista, produtor, poeta e fotógrafo franco-iraniano. Obteve diversos prêmios internacionais, dentre os quais se destacam a Palma de Ouro de 1997 e o Leão de Ouro do Festival de Veneza de 1999. Assisti dele os ótimos “Close-up” (1990), "Através das Oliveiras" (1994) e "24 Frames" (2017), os bons "Dez" (2002) e "Cópia Fiel" (2010) e o curioso "Um Alguém Apaixonado" (2012). Desta vez vou conferir “Gosto de Cereja” (1997).
Raphael Mesquita do site Contracampo nos diz que o filme “repete a ferramenta-dispositivo já utilizada em outros filmes: o automóvel. É nele que se passa grande parte do filme, pois é dentro do carro que o Sr. Badii procura seus eventuais cúmplices, expõe seus planos (instruindo-os sobre a empreitada), solicita ajuda, ouve resistências e conselhos. Em um país em que o direito de expressão é ainda cerceado pelas tradições político-religiosas e o universo privado ainda é extremamente desconhecido (ao menos no Ocidente), Kiarostami se aproveita do automóvel como ponte de ligação entre os universos público e privado. A dupla função desempenhada pelo automóvel permite que ele transite por passeios públicos, à vista de todos (e, sobretudo, da câmera), ao mesmo tempo em que permite compartilharmos das peculiaridades de cada indivíduo, reservadas somente para dentro do lar. O automóvel como casa-móvel consente que adentremos o universo desconhecido que povoa nosso imaginário. Kiarostami justifica sua frase de que seus filmes representam muito mais o Irã do que qualquer noticiário midiático. Parece ser verdade, pois nas imbricações entre ficção e documentário (farsa e realidade) dos filmes do cineasta nasce, na concepção ocidental, a construção do sujeito, particular, desconstruindo estereótipos propagados pela mídia. É justamente no ‘adentrar’ a esfera privada que Kiarostami abre as portas do Irã desconhecido, vislumbrado e idealizado.
É no automóvel que o Sr. Badii está atrás de um cúmplice. Querendo cometer o suicídio, o protagonista busca alguém que possa verificar se de fato os soníferos que pretende tomar surtirão efeitos e se estará realmente morto. Caso confirmado, deve jogar terra em cima do corpo no buraco previamente cavado. Mas fica evidente que mais do que uma simples tarefa, o passageiro-recruta deve compartilhar do ato que cometerá o Sr. Baddii. Sua procura é mais por um ombro complacente, alguém que divida sua angústia e, acima de tudo, endosse sua atitude. Função que vai muito além do ofício do coveiro, que poderia, com tranquilidade, executar a tarefa. É justamente na objetividade com que instruiu os passageiros, que Sr. Badii deixa vazar, em tom contraditório, toda sua subjetividade e apego no ser. Kiarostami traça um psicologismo que transcende a visão consensual ocidental sobre o Irã, abrindo espaço para compartilharmos dessa esfera privada, em que personagens são individualizados, ganhando vida, e extrapolando a barreira dos personagens-tipos que configuram mercadores, guerrilheiros ou operários-vestidos-com-camisa-do-Ronaldinho.
Antagonicamente, Kiarostami, através de seu personagem que busca a morte, fala de vida. (...) Por motivos de guerra ou por fenômenos naturais, o Irã de Kiarostami está sempre em renovação, sempre em reconstrução. E desse processo compartilham (e compõe) diferentes etnias e ideologias, seja o soldado curdo, seja o seminarista afegão, ou ainda, o taxidermista (provavelmente) turco. Todos os passageiros do Sr. Badii, com diferentes etnias, representadas por personagens individuais, e não por estereótipos globalizantes, têm espaço de reflexão no carro do premeditado suicida”.
O longa ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes.
O que disse a crítica 1: Inácio Araujo da Folha SP gostou. Escreveu: “Os filmes de Abbas Kiarostami podem ser um desafio. E só serão aceitos por quem tope a aventura. Em ‘Gosto de Cereja’ (...) um homem em seu automóvel busca alguém que lhe faça um favor bem especial. Não é bem um favor, é um pouco mais: matá-lo, talvez? Talvez seja o gosto da conversa. Talvez seja escutar o que cada uma das pessoas com quem dialoga tem a dizer. Enquanto conversam, o carro descreve trajetórias por caminhos mal traçados, tão típicos de Kiarostami. E desta vez, neste filme que deu a Palma de Ouro ao cineasta, por uma paisagem particularmente árida”.
O que disse a crítica 2: Felipe Moraes do site Abraccine também gostou. Disse: “Kiarostami alcança uma profundidade única sobre as questões humanas mais fundamentais (morte, memória, destino) por meio de uma poesia banal, cotidiana, espontânea, mundana: uma narrativa sobre coisas simples por personagens simples. (...) Ao contrário de tantos cineastas contemporâneos afetados e arrogantes, Kiarostami revela seu interesse pela naturalidade de um gesto de maneiras tão naturais quanto surpreendentes e genuinamente humanas”.
O que eu achei: Abbas Kiarostami é um cineasta que está sempre me surpreendendo. Ele faleceu em 2016, mas vira e mexe eu assisto alguma produção antiga dele e fico pensando em como ele está, invariavelmente, acoplando dois níveis de realidade em seus filmes: o da representação - o filme que está sendo rodado com seus atores - e o da história que se pretende verídica, algo obviamente impossível já que os personagens não são pessoas reais mas sim atores contratados envoltos em uma ficção. “Gosto de Cereja” (1997) conta a história de Badii, um homem rico de meia-idade que está pensando em cometer suicídio e procura desesperadamente alguém que possa ajudá-lo. Ele já fez a sua cova embaixo de uma cerejeira nas montanhas, pretende tomar alguns comprimidos e ali se deitar à espera da morte, mas precisa que alguém jogue terra em cima de seu corpo caso, no dia seguinte, ele estiver de fato morto e não apenas dormindo. Nessa abordagem de representação versus realidade, quem quiser saber ao final se ele de fato se suicidou ou não, sairá frustrado, já que o filme termina (se não viu não prossiga lendo pois contém spoilers) com a entrada em cena da equipe de filmagem com seus equipamentos, enquanto o ator que interpretou o sr. Badii, Homayou Ershadi, caminha por entre eles penteado e com roupas limpas e não como alguém que se levantou de uma cova. Se no cinema tudo é representação, mesmo a morte é mera ilusão ou, como diria o próprio Kiarostami, é 'tela preta'. Atenção à música de Louis Armstrong que toca ao final. Ela se chama “Saint James Infirmary”, é um standard americano de blues e jazz que surgiu de tradições folclóricas e cuja letra pode variar de intérprete para intérprete, tratando da morte ou contendo instruções sobre um funeral.