
Comentário: David Lynch (1946-2025) foi um diretor, roteirista, produtor, artista visual, músico e ator norte-americano. Conhecido por seus filmes surrealistas, ele desenvolveu um estilo cinematográfico próprio. Assisti dele 8 filmes: a obra-prima "O Homem Elefante" (1980), os ótimos "A Estrada Perdida" (1997), "Cidade dos Sonhos" (2001) e "Império dos Sonhos" (2006), o bom “Veludo Azul” (1986), o mediano "Coração Selvagem" (1990), o curioso "Eraserhead" (1977) e o não tão interessante “Duna” (1984).
Desta vez vou conferir "What Did Jack Do?" (2017), um curta-metragem de 17 minutos que mostra o próprio diretor David Lynch vestindo um terno formal, interrogando um macaco-prego. Sim, isso mesmo que você leu: um macaco chamado Jack Cruz (interpretado por um ator de mesmo nome). Ele é suspeito de estar envolvido no hediondo crime passional de Max Clegg, possivelmente motivado por ciúme devido sua paixão por uma galinha chamada Toototabon.
O curta está atualmente disponível na Netflix, mas ele já foi exibido anteriormente no Festival of Disruption, em Nova York, em 2018, e em alguns outros festivais e eventos.
Davi Galantier Krasilchik do site Cinema com Rapadura nos conta que “Conhecido por narrativas repletas de bizarrices, David Lynch sempre foi extremamente autoral. Do monstruoso recém-nascido de ‘Eraserhead’ (longa de estreia eternizado como cult) aos mistérios da excêntrica cidade de ‘Twin Peaks’ (seriado que conquistou legiões de fãs), ele se especializou na construção de experiências anormais, sempre priorizando o lúdico e o sensorial em seus projetos. Dono de uma assinatura inconfundível, investiu na subversão de gêneros cinematográficos, prática que repete com sucesso no curta ‘What Did Jack Do?’.
Lançada pela Netflix no aniversário do aclamado cineasta, a produção realiza uma deliciosa homenagem ao cinema noir (já antes revisitado em ‘Veludo Azul’), conduzida por uma premissa tão estranha quanto as demais criações de seu autor.
Ambientada em um único cenário, uma cabine de trem pouco acolhedora, a obra apresenta um curioso interrogatório entre um detetive (interpretado pelo próprio Lynch) e o macaco Jack Cruz, símio suspeito de assassinato. Feito em preto e branco e apresentando ‘falhas’ que pipocam na tela tal como nos exemplares mais antigos, o filme não tarda em resgatar o saudosismo de grandes clássicos criminais, transportando o espectador para o que mais parece ser uma investigação extraída de um sonho.
Inicialmente muito confusa, bastam poucos minutos para que se revele uma trama elaborada, narrativa completamente conduzida pelo diálogo assinado por David. Não que tudo soe completamente plausível e todas as dúvidas sejam neutralizadas – caso contrário não estaríamos falando da filmografia do diretor -, mas é interessante notar como a frenética troca de falas permite a construção de uma complexa intriga, captando a atenção até mesmo dos mais desavisados.
Para que isso ocorra, é claro, segue-se uma abordagem pouco usual, de modo que não se encontram dramatizações acerca do que é proferido pelas protagonistas, aspecto que não só demonstra a segurança de Lynch em relação ao seu roteiro como também reserva ao espectador a função de imaginar as situações citadas.
Além disso, percebe-se um uso bastante inteligente de ditados e piadas populares – as quais, com direito à famosa ‘por que a galinha atravessou a rua?’, foram bem adaptadas para as legendas em PT-BR -, decisão que não só adoça a experiência com bons alívios cômicos como também acaba por justificar o uso de animais.
Em relação à dupla principal, merece destaque a maneira como suas caricaturas a familiarizam frente ao público, convencendo-o mesmo que um de seus membros seja um macaco. Dessa forma, Lynch cativa no papel de um investigador sério e meticuloso, encurralando seu adversário com perguntas ácidas e que o pressionam a revelar seus segredos, enquanto o nêmesis não fica muito atrás. Dublado por uma voz comicamente editada, e ‘falando’ a partir de um antiquado efeito especial que engrandece a nostalgia do projeto, a figura de Jack Cruz já merecia elogios pelo simples fato de estar usando um terno, conseguindo ir além com a determinação que apresenta ao se defender no bate-boca. Arisco, ele desafia a fofura de um bichinho em tela com comentários bastante agressivos, tecendo no pensamento do público uma indecisão que se mantém até o final – seria ele capaz de realizar o crime pelo qual está sendo acusado?
Como se não bastassem os absurdos presentes em cena, o diretor ainda agracia quem o assiste com uma divertida música escrita em parceria com Dean Hurley, canção que dialoga com as possíveis motivações de Jack (amplificando ainda mais as incógnitas) e que é brilhantemente performada pelo símio. À apresentação, por fim, soma-se uma incrível trilha sonora, esta que, embora presente apenas no desfecho, faz jus aos grandes filmes de detetive.
Completamente maluco, ‘What Did Jack Do?’ é mais um manifesto da grande loucura presente na mente de David Lynch, diretor que nunca temeu o potencial afastamento de uma parcela do público diante de suas bizarrices”.
Curiosa sobre quem seria esse ator chamado Jack Cruz – que dá nome ao macaco e nos créditos aparece como ‘interpretando’ o macaco – descobri tratar-se de um astro americano, especializado em acrobacias, nascido no Texas.
Outra curiosidade: a garçonete que traz café para o macaco Jack e para o detetive é interpretada pela esposa de David Lynch, Emily Stofle.
O que disse a crítica: Fabricio Duque do site Vertentes do Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja ótimo. Disse: “‘What Did Jack Do?’ é uma experiência. Uma sobremesa ao melhor estilo de David Lynch (...), que nos incomoda com sua estranheza e nos encanta com a veracidade, que nunca se transmuta ao comercial e/ou palatável e/ou desrespeitoso com nossas sinapses evolutivas (...)”.
Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu “’What Did Jack Do?’ é, ao mesmo tempo, uma reafirmação dessa onipotência do cinema, algo que David Lynch ratificou durante toda a sua trajetória inclinada às circunstâncias incomuns – vide os cadáveres que teimam em não cair, de ‘Veludo Azul’, e as músicas que continuam tocando, ainda que sem orquestra, de ‘Cidade dos Sonhos’ (2001) –, e uma carta de amor à Hollywood da Era de Ouro, inclusive vide a lindíssima (e inquietante, em semelhante medida) cena do número musical. Pelo teor das conversas, principalmente em virtude da forma como o detetive acossa o interlocutor, não é difícil prever a culpabilidade verificada adiante. O que assevera o impressionante frescor de um olhar substanciado pela vontade de transcender fronteiras, assim como um desejo de continuar mostrando o cinema (a arte) enquanto estância (quiçá a última) à qual é possível tudo, é a intensidade da retroalimentação entre a veneração e a bela capacidade de ressignificação”.
O que eu achei: Muito raro eu me interessar por curtas metragens, mas sendo do David Lynch resolvi conferir. Com apenas 17 minutos de duração ele mostra um interrogatório bizarro entre o próprio cineasta que interpreta um detetive e um macaco chamado Jack Cruz que fala. O macaco está sendo acusado de ter assassinado um homem chamado Max Clegg por ciúme já que ele é apaixonado por uma galinha chamada Toototabon. Só de ler a sinopse já dá pra perceber que Lynch sempre esteve muito pouco interessado naquilo que é comercialmente viável, colocando à frente de tudo sua liberdade criativa. Uma pena não terem deixado claro quem faz a voz do símio Jack Cruz, pois além de falar ele canta. No final do filme o macaco está creditado com o nome do ator Jack Cruz, mas muitos dizem que a voz colocada em sua boca é do próprio Lynch. Então fica difícil entender se ele usou o ator apenas para fazer os movimentos de corpo ou se o ator também fala e canta. O filme foi rodado em preto e branco lembrando os filmes noir dos anos 1940 e pode ser encarado como um exercício de estilo para os fãs acostumados com o nonsense se deleitarem. Assista preparado.
O curta está atualmente disponível na Netflix, mas ele já foi exibido anteriormente no Festival of Disruption, em Nova York, em 2018, e em alguns outros festivais e eventos.
Davi Galantier Krasilchik do site Cinema com Rapadura nos conta que “Conhecido por narrativas repletas de bizarrices, David Lynch sempre foi extremamente autoral. Do monstruoso recém-nascido de ‘Eraserhead’ (longa de estreia eternizado como cult) aos mistérios da excêntrica cidade de ‘Twin Peaks’ (seriado que conquistou legiões de fãs), ele se especializou na construção de experiências anormais, sempre priorizando o lúdico e o sensorial em seus projetos. Dono de uma assinatura inconfundível, investiu na subversão de gêneros cinematográficos, prática que repete com sucesso no curta ‘What Did Jack Do?’.
Lançada pela Netflix no aniversário do aclamado cineasta, a produção realiza uma deliciosa homenagem ao cinema noir (já antes revisitado em ‘Veludo Azul’), conduzida por uma premissa tão estranha quanto as demais criações de seu autor.
Ambientada em um único cenário, uma cabine de trem pouco acolhedora, a obra apresenta um curioso interrogatório entre um detetive (interpretado pelo próprio Lynch) e o macaco Jack Cruz, símio suspeito de assassinato. Feito em preto e branco e apresentando ‘falhas’ que pipocam na tela tal como nos exemplares mais antigos, o filme não tarda em resgatar o saudosismo de grandes clássicos criminais, transportando o espectador para o que mais parece ser uma investigação extraída de um sonho.
Inicialmente muito confusa, bastam poucos minutos para que se revele uma trama elaborada, narrativa completamente conduzida pelo diálogo assinado por David. Não que tudo soe completamente plausível e todas as dúvidas sejam neutralizadas – caso contrário não estaríamos falando da filmografia do diretor -, mas é interessante notar como a frenética troca de falas permite a construção de uma complexa intriga, captando a atenção até mesmo dos mais desavisados.
Para que isso ocorra, é claro, segue-se uma abordagem pouco usual, de modo que não se encontram dramatizações acerca do que é proferido pelas protagonistas, aspecto que não só demonstra a segurança de Lynch em relação ao seu roteiro como também reserva ao espectador a função de imaginar as situações citadas.
Além disso, percebe-se um uso bastante inteligente de ditados e piadas populares – as quais, com direito à famosa ‘por que a galinha atravessou a rua?’, foram bem adaptadas para as legendas em PT-BR -, decisão que não só adoça a experiência com bons alívios cômicos como também acaba por justificar o uso de animais.
Em relação à dupla principal, merece destaque a maneira como suas caricaturas a familiarizam frente ao público, convencendo-o mesmo que um de seus membros seja um macaco. Dessa forma, Lynch cativa no papel de um investigador sério e meticuloso, encurralando seu adversário com perguntas ácidas e que o pressionam a revelar seus segredos, enquanto o nêmesis não fica muito atrás. Dublado por uma voz comicamente editada, e ‘falando’ a partir de um antiquado efeito especial que engrandece a nostalgia do projeto, a figura de Jack Cruz já merecia elogios pelo simples fato de estar usando um terno, conseguindo ir além com a determinação que apresenta ao se defender no bate-boca. Arisco, ele desafia a fofura de um bichinho em tela com comentários bastante agressivos, tecendo no pensamento do público uma indecisão que se mantém até o final – seria ele capaz de realizar o crime pelo qual está sendo acusado?
Como se não bastassem os absurdos presentes em cena, o diretor ainda agracia quem o assiste com uma divertida música escrita em parceria com Dean Hurley, canção que dialoga com as possíveis motivações de Jack (amplificando ainda mais as incógnitas) e que é brilhantemente performada pelo símio. À apresentação, por fim, soma-se uma incrível trilha sonora, esta que, embora presente apenas no desfecho, faz jus aos grandes filmes de detetive.
Completamente maluco, ‘What Did Jack Do?’ é mais um manifesto da grande loucura presente na mente de David Lynch, diretor que nunca temeu o potencial afastamento de uma parcela do público diante de suas bizarrices”.
Curiosa sobre quem seria esse ator chamado Jack Cruz – que dá nome ao macaco e nos créditos aparece como ‘interpretando’ o macaco – descobri tratar-se de um astro americano, especializado em acrobacias, nascido no Texas.
Outra curiosidade: a garçonete que traz café para o macaco Jack e para o detetive é interpretada pela esposa de David Lynch, Emily Stofle.
O que disse a crítica: Fabricio Duque do site Vertentes do Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja ótimo. Disse: “‘What Did Jack Do?’ é uma experiência. Uma sobremesa ao melhor estilo de David Lynch (...), que nos incomoda com sua estranheza e nos encanta com a veracidade, que nunca se transmuta ao comercial e/ou palatável e/ou desrespeitoso com nossas sinapses evolutivas (...)”.
Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu “’What Did Jack Do?’ é, ao mesmo tempo, uma reafirmação dessa onipotência do cinema, algo que David Lynch ratificou durante toda a sua trajetória inclinada às circunstâncias incomuns – vide os cadáveres que teimam em não cair, de ‘Veludo Azul’, e as músicas que continuam tocando, ainda que sem orquestra, de ‘Cidade dos Sonhos’ (2001) –, e uma carta de amor à Hollywood da Era de Ouro, inclusive vide a lindíssima (e inquietante, em semelhante medida) cena do número musical. Pelo teor das conversas, principalmente em virtude da forma como o detetive acossa o interlocutor, não é difícil prever a culpabilidade verificada adiante. O que assevera o impressionante frescor de um olhar substanciado pela vontade de transcender fronteiras, assim como um desejo de continuar mostrando o cinema (a arte) enquanto estância (quiçá a última) à qual é possível tudo, é a intensidade da retroalimentação entre a veneração e a bela capacidade de ressignificação”.
O que eu achei: Muito raro eu me interessar por curtas metragens, mas sendo do David Lynch resolvi conferir. Com apenas 17 minutos de duração ele mostra um interrogatório bizarro entre o próprio cineasta que interpreta um detetive e um macaco chamado Jack Cruz que fala. O macaco está sendo acusado de ter assassinado um homem chamado Max Clegg por ciúme já que ele é apaixonado por uma galinha chamada Toototabon. Só de ler a sinopse já dá pra perceber que Lynch sempre esteve muito pouco interessado naquilo que é comercialmente viável, colocando à frente de tudo sua liberdade criativa. Uma pena não terem deixado claro quem faz a voz do símio Jack Cruz, pois além de falar ele canta. No final do filme o macaco está creditado com o nome do ator Jack Cruz, mas muitos dizem que a voz colocada em sua boca é do próprio Lynch. Então fica difícil entender se ele usou o ator apenas para fazer os movimentos de corpo ou se o ator também fala e canta. O filme foi rodado em preto e branco lembrando os filmes noir dos anos 1940 e pode ser encarado como um exercício de estilo para os fãs acostumados com o nonsense se deleitarem. Assista preparado.