22.4.25

“A Caixa de Pandora” - Georg Wilhelm Pabst (Alemanha, 1929)

Sinopse:
 A beleza e o charme da jovem Lulu (Louise Brooks) costumam deixar os homens atordoados. Em um dos seus jogos de sedução, ela conquista o amor de Peter Schön (Fritz Kortner), diretor de um importante jornal. Embalados pelo romance, os dois se casam rapidamente. Mas existe um entrave para a harmonia do relacionamento: Peter Schön tem ciúmes de vários homens com a qual Lulu se relaciona, inclusive seu próprio filho Alwa (Francis Lederer).
Comentário: Georg Wilhelm Pabst (1885-1967) é um cineasta austríaco-alemão. De origem modesta, filho de um ferroviário, nascido em Raudnitz, Boémia, (hoje Roudnice nad Labem, República Tcheca), Pabst sempre foi um espírito inquieto: bem jovem, ele foi para Nova York com o objetivo de tornar-se ator de teatro. Em 1914, voltou atravessando a França, onde foi surpreendido pela eclosão da Primeira Guerra. Foi internado por quatro anos como ‘cidadão inimigo’ num campo de prisioneiros. Libertado, partiu para Berlim, onde se associou, como roteirista, ao veterano cineasta Carl Frölich, que mais tarde aderiria ao nazismo. Dentre seus filmes estão “Rua das Lágrimas” (1925), “A Caixa de Pandora” (1929), “4 de Infantaria” (1930) e “A Tragédia da Mina” (1931).
“A Caixa de Pandora” é o primeiro filme que vejo dele. Trata-se da adaptação para as telas de duas peças de teatro do dramaturgo alemão Frank Wedekind chamadas “Der Erdgeist” (Espírito da Terra) de 1895 e “Die Büchse der Pandora” (Caixa de Pandora) de 1904.
Vinicius Costa do site Coletivo Crítico nos conta que “Na Mitologia Grega, Pandora seria a primeira mulher a habitar a Terra. Sua origem se dá a partir do ato vingativo de Zeus, rei dos deuses, contra Prometeu, titã criador dos homens, juntamente com seu irmão Epimeteu. Teria ele roubado o fogo do Monte Olimpo para agraciar sua criação que ainda era muito frágil na natureza. Ao perceber a trapaça, Zeus manda que os olímpicos confeccionem Pandora. Seu nome significa ‘todos os dons’, visto que membros do Olimpo lhe acrescentaram os dons para criar um ser que seria o ‘belo mal’. Presenteando Epimeteu, o menos precavido dos irmãos, Zeus coloca em prática seu plano com o casamento da bela moça e o titã. A primeira mulher, astuta e curiosa, foi quem abriu a caixa proibida que continha todos os males, estabelecendo, então, a condição humana na terra: o trabalho. Desde então vivemos acometidos de doenças e relegados ao labor, fomos separados dos imortais e lançados à nossa própria sorte”.
Segundo ele, “essa narrativa só é evocada uma única vez no filme (…): a cena em que Lulu (a icônica Louise Brooks) está sendo julgada (por homens) pelo assassinato de seu marido, Dr. Schön. É o acusador que faz a comparação de Lulu com Pandora, quando afirma ser ela a origem de todo o mal na vida do morto. O julgamento moral de Lulu nunca vem do diretor e das imagens que coloca em tela, mas sempre dos personagens que a rodeiam. Ela não é a maldade e nem sua disseminadora aos olhos de Pabst, mas sua inocência e autenticidade aparecem sempre como afronta ao moralismo daquela sociedade, apenas desvelando o mal já presente nos homens.
O germe do mal foi tema recorrente no cinema alemão da época, basta lembrarmos do reconhecido Expressionismo Alemão. Pabst talvez seja um dos cineastas mais injustiçados de seu tempo, principalmente se o compararmos com F. W. Murnau e Fritz Lang. Estes ganharam notoriedade no movimento expressionista e também fora dele, inclusive com sucessos longe da Alemanha. Já Pabst optou por se distanciar e fazer filmes que, por mais que comunguem do mesmo tema, operam de forma diferente: a chamada Nova Objetividade. Não havia o exagero das interpretações e cenários, mas a inquietação sobre o momento conservador e o que isso escondia estava presente na sua obra. Outro fator que relegou o diretor a segundo plano foi seu conluio com o Ministério da Propagando no regime nazista, tendo feito alguns filmes a pedido de Goebbles. É estranho e contraditório pensar que o mesmo cineasta que produziu ‘Diário de Uma Garota Perdida’ e ‘A Caixa de Pandora’ tenha de alguma forma colaborado com o nazismo.
A tendência conservadora e o advento do nazismo traziam consigo uma dualidade: de um lado o que se chamaria de libertinagem (movimentos libertários), de outro o [falso] moralismo. O país devastado pela Primeira Grande Guerra é berço para um ideal reacionário que pretendia ordenar o caos social pela doutrinação moral. Alguns se levantaram da multidão como grandes profetas da lei e da ordem e, assustadoramente, foram abraçados e idolatrados. A caixa de Pandora estava prestes a ser aberta. É claro que a Arte pressentiu e expressou esse sentimento de aflição. Pabst transpõe isso na figura de uma mulher que, diferente da mitologia e de sua época, é o movimento da ética autêntica contra a prescrição de uma sociedade masculina. Lulu é uma subjetividade livre; o mundo é quem a coloca à margem”.
Sobre a atuação de Louise Brooks como Lulu, Costa assinala que o papel “marcou sua carreira e talvez o estereótipo que segue (e com certeza seguiu também) muitas mulheres no Cinema. Lulu é sedutora, mas não apenas por sua beleza física. Seus gestos e seu olhar flertam quando ela o quer. Logo na primeira cena ela usa seu charme contra o cobrador que está em seu apartamento. Entretanto, esse é um dos poucos movimentos de sedução deliberados por Lulu. No mais, ela atrai os olhares de uma outra forma, inconscientemente. Sua liberdade chama atenção. Na sequência da cena conhecemos Dr. Schön, amante de Lulu. Ele é um aristocrata da imprensa que vai até ela para terminar o relacionamento, visto que se casaria com a filha de um ministro. Aos olhos dele, Lulu não seria uma mulher para casar, já que não corresponde a imagem que se deveria ter da esposa. Não é permitido uma mulher tão livre”.
Com isso, “Pabst levanta questões muito além de seu tempo. Em ‘A Caixa de Pandora’ (...) há uma das primeiras personagens lésbicas da história do Cinema, Condessa Geschwitz. Se nos atentarmos apenas para este filme, que é o que nos interessa aqui, veremos que a jornada de Lulu é justamente uma batalha contra os valores de seu tempo”.
O que disse a crítica: Ritter Fan do site Plano Crítico avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: “’A Caixa de Pandora’ é um daqueles filmes essenciais para qualquer cinéfilo que se preze, gostando ou não do resultado. É um dos raros exemplares audiovisuais em que a atriz não só se confunde com a protagonista e com o que ela representa, mas também em que essa fusão é tão integral que o próprio filme em si é a atriz. Louise Brooks é Lulu, Pandora, a caixa, tudo o que sai da caixa e, finalmente, também ‘A Caixa de Pandora’, apagando - ou talvez minimizando, só pela minha deferência à Pabst - todas as demais considerações”.
O site Leitura Fílmica avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: “’A Caixa de Pandora’ tem muito mais a oferecer do que o charmoso visual da atriz americana Louise Brooks, cuja imagem se eternizou nessa produção alemã. Por exemplo, há ainda ecos do expressionismo alemão, no seu tom pessimista e estética repleta de sombras, predominantes na parte final na sequência com Lulu e o serial killer, principalmente quando sobem escadas distorcidas. Afinal, na Alemanha entre guerras, o pessimismo imperava e o filme reflete esse sentimento numa bela, porém amarga, história”.
O que eu achei: Esta é a primeira vez que vejo um filme do Pabst. Este, do final dos anos 1920, é mudo e preto e branco. Conta a história de uma vedete chamada Lulu, interpretada pela famosa atriz e modelo americana Louise Brooks, que com seu charme e audácia faz com que todos os homens que dela se aproximem fiquem apaixonados. Ela se casa com um de seus patrocinadores, um homem endinheirado e ciumento, que pressente que esse relacionamento não terá futuro já que seu poder de sedução a transforma numa pessoa ameaçadora e, na sua cabeça, pouco confiável. Com essa premissa, Pabst coloca de um lado a jovem e autêntica Lulu querendo a vida e, do outro, a moral masculina que a priva e a relega a uma imagem marginalizada. O filme é longo (tem 130 minutos), possui uma edição que poderia ser mais enxuta e, em alguns trechos, menos confusa, mas isso não ofusca a ousadia do diretor em inserir na trama uma referência ao lesbianismo, ao mesmo tempo em que tenta questionar qual é o peso da moral sobre nossas vidas. Aliás, considerando a época que o filme foi feito, é ainda mais surpreendente ele ter encerrado a obra dando uma espécie de alerta ao espectador sobre os valores que nos constituem. Assistindo agora, em pleno 2025, terminei de ver me perguntando se ainda não carregamos os mesmos princípios e o mesmo olhar julgador que recaiu sobre Lulu em 1929. O filme é portanto, atemporal e revolucionário. Assista, de preferência na versão restaurada.