9.3.25

“O Bastardo” - Nikolaj Arcel (Dinamarca/Suécia/Noruega/Alemanha, 2024)

Sinopse:
 
Ludvig Kahlen (Mads Mikkelsen) é um soldado e explorador dinamarquês do século XVIII que resolve explorar e transformar uma vasta região da Dinamarca chamada Jutlândia. Em meio a desafios imensos e confrontos com as forças da natureza, Kahlen se empenha em cultivar e colonizar esta terra inóspita.
Comentário: Nikolaj Arcel (1972) é um roteirista e cineasta dinamarquês. Dirigiu filmes como “King’s Game” (2004), “Island of Lost Souls” (2007), “Truth About Man” (2010), “O Amante da Rainha” (2012) que foi indicado ao Oscar de Melhor Filme Internacional e “A Torre Negra” (2017). “O Bastardo” (2024) - em alguns lugares aparece como "A Terra Prometida" - é o primeiro filme que vejo dele.
Trata-se de uma adaptação do romance “The Captain and Ann Barbara”, da autora dinamarquesa Ida Jessen, lançado em 2022.
Uma breve pesquisa me mostrou que o dinamarquês Ludvig Kahlen (1700-1774) realmente existiu. Viveu no século XVIII, assim como é mostrado no filme, e ficou conhecido por suas tentativas de colonizar e desenvolver áreas inóspitas da Dinamarca, especialmente as terras áridas de Jutlândia. Kahlen é frequentemente lembrado por seu papel na tentativa de transformar essas terras inférteis em áreas cultiváveis, um esforço que enfrentou muitos desafios devido às condições climáticas e ao solo difícil. Mas pouco se sabe sobre ele e o livro, no qual o filme se baseia, tomou diversas liberdades para recriar essa história.
Fernando Machado do Grupo Cinema Paradiso nos conta que o filme pretende mostrar a “busca incansável de um indivíduo mal nascido por realização e um lugar de destaque na Dinamarca ainda feudal do século XVIII”. Ele diz: “A princípio, nada indicaria que o Capitão Ludvig Kahlen (interpretado por Mads Mikkelsen) aposentado após 25 anos de serviços ao exército alemão e com mais de cinquenta anos de idade, seria um desbravador capaz de estabelecer com sucesso uma colônia em uma terra inóspita e perigosa. Isso é o que os funcionários do rei tentam lhe dizer em 1755 quando, relutantemente, lhe garantem a autorização oficial para o que parece ser uma verdadeira tentativa de suicídio. E só autorizam após saber que não haverá qualquer custo à Coroa, e que esse ‘ninguém’ poderia lhes ser útil caso o rei viesse a perguntar sobre os esforços de colonização que planejou para aquela parte quase esquecida do país. Em troca, aceitam a solicitação do capitão referente a um título de nobreza e o envio de colonos, no improvável caso desse duvidoso empreendimento ser bem sucedido no futuro. 
E assim começa a aventura de se fazer uma colônia agrícola no ‘Urzal’, uma gigantesca charneca [terreno difícil onde nascem arbustos e plantas herbáceas resistentes], na parte continental da Dinamarca, um lugar infestado de bandidos e tão desolado que, com seus ventos gelados, aridez e solo ruim, seria um terrível pesadelo até mesmo para um grupo de agricultores jovens e experientes. Mas não para o capitão Kahlen, que diligentemente procura e encontra um local propício para a instalação da sua futura colônia, sem se abater pela paisagem lúgubre, por lobos ferozes e pelas constantes investidas dos salteadores. Nessa incrível empreitada, ele toma a seu serviço um casal de servos foragidos do senhor feudal e magistrado local, o terrível Frederik Schinkel, além de Anmai Mus, uma menina cigana que já o havia furtado algumas vezes e que é considerada por muitos ‘um mau agouro’ devido a sua pele escura e modos exóticos. Curiosamente, o maior desafio para o capitão Kahlen não será a natureza inclemente ou a geografia precária, mas sim o elemento humano: o senhor feudal e magistrado Schinkel (...), ciente da ameaça da nova colônia a ‘suas’ terras e ao seu poder quase ilimitado sobre a população local, fará de tudo para tentar destruí-la”.
Machado nos conta que “o site Kunst.dk disponibilizou uma amostra em inglês, de 33 páginas, do livro de Ida Jensen que inspirou o filme, a qual ele leu com atenção. Ele notou que “a figura de Ann Barbara foi retratada de modo diferente no filme em relação ao livro, pois na película ela é apresentada como sendo casada e tendo seu marido capturado, torturado e cruelmente assassinado pelo cruel (de) Schinkel, enquanto no livro ela é mostrada como uma mulher supersticiosa que vai trabalhar sozinha na colônia apenas após a chegada da menina cigana, com a qual é obrigada contra a sua vontade a dividir a cama.
Devemos ter em mente a época retratada no filme e no livro, ou seja, um período anterior à Revolução Francesa, em que a origem de uma pessoa representava quase tudo num contexto de pouquíssima mobilidade social. Quem nascia na nobreza ali ficava, enquanto que quem nascia fora da nobreza provavelmente também viveria e morreria assim. E mudanças nessa ordem tradicional não eram nada bem vistas... Esse aparente início de mudança na ordem das coisas significava uma oportunidade de ouro para o capitão Kahlen mostrar seu valor e mérito ao rei dinamarquês, inovando ao cultivar batatas naquela terra árida e até então infértil”.
O filme foi escolhido pela Dinamarca para representar o país no Oscar, mas acabou não passando pela pré-seleção.
O que disse a crítica: Alvaro Goulart do site Cinema com Crítica avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, muito bom. Escreveu: “’O Bastardo’ se mostra um filme promissor. Apesar das interpretações e personagens femininas marcantes, o filme não traz nada de novo. Sim, é uma história que nos prende. É de se imaginar que nos encontremos torcendo pelo sucesso do protagonista, visto as injustiças que sofreu na vida e que vem sofrendo ao longo de sua empreitada. É como se sua vitória representasse uma vitória muito mais ampla, transcendendo terras e continentes, a respeito de um grupo oprimido contra um indivíduo opressor. Mas é mais uma narrativa igual a várias outras que já vimos por aí, e longe de ser um ‘clássico’ dentro do gênero”.
Inácio Araujo da Folha SP avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: “É possível dizer que vez por outra a direção de Nikolaj Arcel pesa a mão e constrói um Kahlen até mesmo um tanto masoquista (numa simetria pouco desejável com Schinkel), mas no geral consegue transmitir seu ponto de vista numa aventura, o resultado final importa muito, mas não é tudo: os valores que alguém consegue impor (e transmitir ao espectador) são, de certa forma, o objetivo final. Embora aceitando as mil e uma intervenções do acaso (algumas felizes, outras, não) Kahlen evita que a vida se entregue à ausência de sentido (o caos). Num mundo em que o dinheiro se torna cada vez mais o valor único e final (...), uma voz discordante é algo a saudar”.
O que eu achei: Interessada que sou pelo cinema nórdico, fiquei muito curiosa em ver o filme que a Dinamarca enviou como representante do país para concorrer ao Oscar, especialmente por ter Mads Mikkelsen no papel principal, um ator que já me encantou em filmes do Vinterberg como “A Caça” (2012) e “Druk – Mais Uma Rodada” (2020). Neste ele não decepciona, encarnando o papel de Ludvig Kahlen, um capitão já aposentado do exército alemão, com mais de cinquenta anos de idade, que resolve sair da condição de bastardo – um cara que não pertence à nobreza – tentando colonizar uma região inóspita da Dinamarca chamada Jutlândia, cujo terreno é descrito no filme como sendo um “urzal”, ou seja, um lugar composto por pedra e areia onde só nasce urze, que é um tipo de arbusto da família das ericáceas. Além do problema do tipo de terreno, há também a questão das condições climáticas, por ser um local que tem geadas e neve. Mesmo assim, ele vai pra lá tentar cultivar batatas e colonizar a região, numa negociação com o rei que lhe promete em troca um título de barão caso tudo dê certo. Apesar de ser um desses filmes épicos e grandiosos, ele dura 2h08m, então não chega a cansar. A fotografia é linda, tem drama, romance, conflitos diversos, é uma oportunidade de se conhecer um personagem do século XVIII que realmente existiu, mas ele não seria páreo para filmes com os quais concorreria ao Oscar, não por conta da execução do filme que é ótima, mas por conta do tema mais batido e sem grandes novidades. De qualquer forma vale ver pela aula de história que ele pode representar, pelo prazer de ver um filme bem feito com um ator cheio de expressividade e pela reflexão que ele nos traz sobre a inutilidade de tentarmos controlar nosso destino.