
Comentário: Pedro Almodóvar (1949) é um cineasta espanhol de quem já assisti 16 filmes, dentre eles os ótimos "A Lei do Desejo" (1986), “Kika” (1993), "A Flor do Meu Segredo" (1995), “Tudo Sobre Minha Mãe” (1999), “Volver” (2006), “Abraços Partidos" (2009), "A Pele que Habito" (2011), "Os Amantes Passageiros" (2013), "Julieta" (2016), o curta “A Voz Humana” (2020) e “Madres Paralelas” (2021). “Maus Hábitos” (1983) é o terceiro filme da carreira do cineasta.
Inácio Araujo, em sua resenha para a Folha SP, nos conta que essa primeira fase do Almodóvar é “mais anárquica, menos madura, mais rebelde, menos intelectual” do que as posteriores. Segundo ele, “é mais visível a influência de Buñuel, não apenas no despojamento da encenação, como no recurso à blasfêmia bem-humorada e ao escândalo como formas de combate ao conservadorismo católico.
Em ‘Maus Hábitos’, estamos no convento das freiras ‘redentoras’ humilhadas, especialistas (...) em reformar mulheres desviadas de todas as espécies. A fascinação pelo mal que as leva a buscar a redenção das mulheres perdidas leva o convento a cultivar, com o tempo, uma espécie muito particular de teologia.
Ali, a experiência de Cristo é vivenciada um pouco à maneira do poeta inglês William Blake. Cristo, sustenta a superiora das religiosas, morreu na cruz para nos libertar do pecado e da culpa. Se foi assim, não existe mais culpa e pecado, o que as leva a um modo de vida em que, com uma fé sincera, convivem drogas, lesbianismo, baladas de amor, livros mundanos.
Quando a intriga começa, o convento encontra-se às moscas, já que, aparentemente, nos dias que correm (o filme é de 1983), há pouca gente buscando a redenção. No mais, a sustentação financeira, que lhes era dada por um homem rico e piedoso, é subitamente retirada, após a sua morte.
A salvação das religiosas surge na pessoa da cantora Yolanda Bell, que ali se refugia após a morte de seu namorado (por uso de heroína misturada a estricnina). A superiora apaixona-se pela cantora no ato.
Em certo sentido, Almodóvar ainda acerta as contas com o período franquista [que ocorreu de 1939 a 1975] e sua carolice, num momento de passagem da Espanha à democracia. Mas, mais do que isso, procura dar conta da sensualidade que existe na experiência católica. Isso pode ser verificado não apenas na cenografia (o quarto que será ocupado pela cantora, em particular), como na modernização da experiência poética e alucinatória de certos místicos do passado (São João da Cruz, Santa Teresa D'Ávila). Agora, a experiência da alucinação é fornecida pelo LSD em pessoa.
Embora a tensão dramática esteja presente - assim como uma evidente simpatia por suas heréticas heroínas -, o que dá o tom é o deboche. (...) O mundo, para Almodóvar, pode ser um inferno ou um paraíso, tanto faz. O certo é que é artificial”.
Uma curiosidade: em 1992, o dramaturgo espanhol Fermín Cabal realizou uma versão teatral do filme. Assim como no filme, a versão teatral mostra um convento onde, mais do que rezas e recolhimento, há sexo, drogas, amor, filhos naturais, mistérios e assassinatos.
O que disse a crítica: Eduardo Kaneco do site Leitura Fílmica avaliou com o equivalente a 2,75 estrelas, ou seja, algo entre o regular e o bom. Ele disse que apesar do filme possuir algumas qualidades, “a história não é consistente e possui pontos não bem amarrados. Por exemplo, o tigre parece mais um elemento surreal do que uma inserção simbólica importante para a trama. Além disso, entre outros senões, não entendemos o motivo de Yolanda trair a Madre e entregar a carta objeto do suborno para a Condessa. Em outras palavras, Almodóvar ainda estava em processo de lapidação”.
Já Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “’Maus Hábitos’ é até hoje uma das principais realizações de Pedro Almodóvar, exemplar de sua mirada debochada, porém contundente. O escracho não se enverga até tornar-se banal, pois, antes de ser o objetivo, é o caminho pelo qual o artista transita para refletir acerca do mundo que o circunda. (...) Embalado por boleros e outras canções sentimentais, valendo-se do kitsch, daquilo que, segundo o convencional, denota mau gosto, Pedro Almodóvar faz uma crítica agridoce aos procedimentos da Igreja Católica, convidando pecadores de várias naturezas a conviverem num espaço onde assumir falhas e desejos é algo bem-vindo. Assim, caem as barreiras que separariam o mundano do pretensamente santificado”.
O que eu achei: Quanto mais filmes eu vejo do Almodóvar, mais eu gosto do diretor. Dos 16 filmes que já vi dele, 12 eu avaliei como muito bons e 4 como bons. E hoje vai mais um para a lista dos que gostei muito: “Maus Hábitos” de 1983, o terceiro filme de sua carreira. Imagine um convento - cuja proposta é abrigar e reformar mulheres desviadas de todas as espécies - no qual a madre superiora é uma homossexual viciada em heroína e, dentre o grupo de freiras, duas usam LSD e uma escreve sob pseudônimo romances mundanos. Não dá pra imaginar, né? Mas Almodóvar imagina. A cantora de boate Yolanda Bell, interpretada por Cristina Sánchez Pascual, após ver seu namorado morrer na sua frente por ter utilizado heroína adulterada, se vê em apuros e acaba se refugiando lá, sem imaginar o ambiente “familiar” com o qual ela vai se deparar. O resultado não poderia ser mais hilário. O sagrado, que por princípio deveria ser reverenciado, se imiscui na vivência diária tida como pecaminosa pelos ditames oficiais da Igreja Católica. Isso poucos anos após o fim do período franquista (1939-1975) e sua carolice. Sensacional.
Inácio Araujo, em sua resenha para a Folha SP, nos conta que essa primeira fase do Almodóvar é “mais anárquica, menos madura, mais rebelde, menos intelectual” do que as posteriores. Segundo ele, “é mais visível a influência de Buñuel, não apenas no despojamento da encenação, como no recurso à blasfêmia bem-humorada e ao escândalo como formas de combate ao conservadorismo católico.
Em ‘Maus Hábitos’, estamos no convento das freiras ‘redentoras’ humilhadas, especialistas (...) em reformar mulheres desviadas de todas as espécies. A fascinação pelo mal que as leva a buscar a redenção das mulheres perdidas leva o convento a cultivar, com o tempo, uma espécie muito particular de teologia.
Ali, a experiência de Cristo é vivenciada um pouco à maneira do poeta inglês William Blake. Cristo, sustenta a superiora das religiosas, morreu na cruz para nos libertar do pecado e da culpa. Se foi assim, não existe mais culpa e pecado, o que as leva a um modo de vida em que, com uma fé sincera, convivem drogas, lesbianismo, baladas de amor, livros mundanos.
Quando a intriga começa, o convento encontra-se às moscas, já que, aparentemente, nos dias que correm (o filme é de 1983), há pouca gente buscando a redenção. No mais, a sustentação financeira, que lhes era dada por um homem rico e piedoso, é subitamente retirada, após a sua morte.
A salvação das religiosas surge na pessoa da cantora Yolanda Bell, que ali se refugia após a morte de seu namorado (por uso de heroína misturada a estricnina). A superiora apaixona-se pela cantora no ato.
Em certo sentido, Almodóvar ainda acerta as contas com o período franquista [que ocorreu de 1939 a 1975] e sua carolice, num momento de passagem da Espanha à democracia. Mas, mais do que isso, procura dar conta da sensualidade que existe na experiência católica. Isso pode ser verificado não apenas na cenografia (o quarto que será ocupado pela cantora, em particular), como na modernização da experiência poética e alucinatória de certos místicos do passado (São João da Cruz, Santa Teresa D'Ávila). Agora, a experiência da alucinação é fornecida pelo LSD em pessoa.
Embora a tensão dramática esteja presente - assim como uma evidente simpatia por suas heréticas heroínas -, o que dá o tom é o deboche. (...) O mundo, para Almodóvar, pode ser um inferno ou um paraíso, tanto faz. O certo é que é artificial”.
Uma curiosidade: em 1992, o dramaturgo espanhol Fermín Cabal realizou uma versão teatral do filme. Assim como no filme, a versão teatral mostra um convento onde, mais do que rezas e recolhimento, há sexo, drogas, amor, filhos naturais, mistérios e assassinatos.
O que disse a crítica: Eduardo Kaneco do site Leitura Fílmica avaliou com o equivalente a 2,75 estrelas, ou seja, algo entre o regular e o bom. Ele disse que apesar do filme possuir algumas qualidades, “a história não é consistente e possui pontos não bem amarrados. Por exemplo, o tigre parece mais um elemento surreal do que uma inserção simbólica importante para a trama. Além disso, entre outros senões, não entendemos o motivo de Yolanda trair a Madre e entregar a carta objeto do suborno para a Condessa. Em outras palavras, Almodóvar ainda estava em processo de lapidação”.
Já Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “’Maus Hábitos’ é até hoje uma das principais realizações de Pedro Almodóvar, exemplar de sua mirada debochada, porém contundente. O escracho não se enverga até tornar-se banal, pois, antes de ser o objetivo, é o caminho pelo qual o artista transita para refletir acerca do mundo que o circunda. (...) Embalado por boleros e outras canções sentimentais, valendo-se do kitsch, daquilo que, segundo o convencional, denota mau gosto, Pedro Almodóvar faz uma crítica agridoce aos procedimentos da Igreja Católica, convidando pecadores de várias naturezas a conviverem num espaço onde assumir falhas e desejos é algo bem-vindo. Assim, caem as barreiras que separariam o mundano do pretensamente santificado”.
O que eu achei: Quanto mais filmes eu vejo do Almodóvar, mais eu gosto do diretor. Dos 16 filmes que já vi dele, 12 eu avaliei como muito bons e 4 como bons. E hoje vai mais um para a lista dos que gostei muito: “Maus Hábitos” de 1983, o terceiro filme de sua carreira. Imagine um convento - cuja proposta é abrigar e reformar mulheres desviadas de todas as espécies - no qual a madre superiora é uma homossexual viciada em heroína e, dentre o grupo de freiras, duas usam LSD e uma escreve sob pseudônimo romances mundanos. Não dá pra imaginar, né? Mas Almodóvar imagina. A cantora de boate Yolanda Bell, interpretada por Cristina Sánchez Pascual, após ver seu namorado morrer na sua frente por ter utilizado heroína adulterada, se vê em apuros e acaba se refugiando lá, sem imaginar o ambiente “familiar” com o qual ela vai se deparar. O resultado não poderia ser mais hilário. O sagrado, que por princípio deveria ser reverenciado, se imiscui na vivência diária tida como pecaminosa pelos ditames oficiais da Igreja Católica. Isso poucos anos após o fim do período franquista (1939-1975) e sua carolice. Sensacional.