19.2.25

“Ainda Estou Aqui” – Walter Salles (Brasil/França, 2024)

Sinopse:
No início da década de 1970, o Brasil enfrenta o endurecimento da ditadura militar. No Rio de Janeiro, a família Paiva – Rubens (Selton Mello), Eunice (Fernanda Torres e Fernanda Montenegro) e seus cinco filhos - vive à beira da praia em uma casa de portas abertas para os amigos. Um dia, Rubens Paiva é levado por militares à paisana e desaparece.
Comentário: Walter Salles (1956) é um cineasta brasileiro. Herdeiro do Itaú Unibanco, ele é uma figura importante do Cinema de Retomada no Brasil. Seus filmes ganharam prêmios em Cannes, Veneza, no British Academy Film Awards, ganhou Urso de Ouro e Globo de Ouro. Ele se tornou conhecido internacionalmente por seu filme “Central do Brasil” (1998), que recebeu duas indicações ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Atriz para Fernanda Montenegro. Seus trabalhos incluem “Terra Estrangeira” (1995), “Abril Despedaçado” (2001), “Cidade de Deus” (2002) e “Água Negra” (2005), dentre outros. Já vi dele o ótimo "Diários de Motocicleta" (2004) e o bom "Na Estrada" (2012).
Desta vez vou conferir “Ainda Estou Aqui” (2024), uma adaptação para as telas do livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva. A trama retrata a história da família do Marcelo, com o foco voltado para a vida da mãe dele chamada Eunice Facciolla Paiva, uma dona de casa que vira advogada e que acabou se tornando ativista política na sequência da prisão e consequente desaparecimento de seu marido Rubens Paiva pela ditadura militar brasileira.
Na biografia de Rubens Paiva (1929-1971) que consta no site Wikipédia, nos é contado que ele era formado em engenharia civil pelo Mackenzie de São Paulo. Ele esteve na universidade numa fase em que se vivia grande efervescência política, mantendo presença ativa no movimento estudantil, sendo inclusive vice-presidente da UNE - União Estadual dos Estudantes.
O pai do Rubens Paiva – que seria o avô do Marcelo Rubens Paiva - Dr. Jaime de Almeida Paiva, era advogado e dono de uma das maiores fazendas do Vale do Ribeira, a Fazenda Caraitá. Esse homem, ligado ao partido de direita Aliança Renovadora Nacional, era simpatizante da ditadura e chegou a ser prefeito da cidade de Eldorado Paulista em duas ocasiões. O escritor Marcelo Rubens Paiva conta que o pai dele era brigado com o avô dele e por isso a família quase não frequentava a tal fazenda. Por conta disso, Marcelo diz saber pouca coisa sobre Jaime, pois Marcelo e a família moravam no Rio de Janeiro.
O site nos conta que o Rubens Paiva inicialmente trabalhava como engenheiro civil. Porém, em 1962, sua vida política tomou impulso ao ser eleito deputado federal por São Paulo na legenda do PTB - Partido Trabalhista Brasileiro. Ele assumiu o mandato e acabou participando de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) criada na Câmara dos Deputados para examinar as atividades do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais / Instituto Brasileiro de Ação Democrática, uma instituição que financiava palestrantes e escritores que escreviam artigos avisando sobre a chamada “ameaça vermelha” no Brasil.
No dia 1º de abril de 1964, enquanto os militares avançavam com suas tropas para depor o então presidente João Goulart, Paiva fez um discurso acalorado na Rádio Nacional criticando o governador paulista Ademar de Barros, apoiador do golpe, e conclamando trabalhadores e estudantes a defenderam a legalidade.
Com o golpe militar de 1964 ele teve seu mandato cassado e precisou sair do país. Primeiro ele se exilou na Iugoslávia e depois na França. Passados nove meses, ele fez uma viagem para Buenos Aires e, durante uma escala do voo no Rio de Janeiro, ele saiu do avião e pegou outro voo para São Paulo, seguindo para a casa de sua família. Ele chegou em casa de surpresa, dizendo que pretendia permanecer no Brasil. A família então mudou-se novamente para o Rio de Janeiro e ele voltou a exercer a engenharia e a cuidar de seus negócios, mas sempre fazendo contatos com os exilados. Em paralelo ele fundou, junto com o editor Fernando Gasparian, o Jornal de Debates e foi diretor da Última Hora de São Paulo, até que o jornal foi vendido por Samuel Wainer ao Grupo Folha da Manhã, de Octavio Frias de Oliveira.
No ano de 1969, depois de uma visita a Santiago do Chile para ajudar a exilada Helena Bocayuva Cunha, que fora implicada no sequestro do embaixador Charles Burke Elbrick, Rubens Paiva voltou para o Brasil. Algum tempo depois, pessoas que traziam uma carta de Helena endereçada a Rubens foram presas pelos órgãos de repressão política e, como a carta era pra ele, os agentes suspeitaram que Rubens Paiva fosse um militante do Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) e contato de Carlos Lamarca, na época o homem mais procurado do país.
Na esperança de chegar a Lamarca, seis homens que disseram pertencer à Aeronáutica, armados com metralhadoras, invadiram a casa de Rubens Paiva no Rio de Janeiro, em 20 de janeiro de 1971, para prendê-lo, sem contudo apresentar um mandado de prisão. Rubens acalmou os invasores, pediu que guardassem as armas e saiu de terno e gravata, guiando o próprio carro. Paiva foi levado para o quartel do comando da III Zona Aérea e acareado juntamente com duas senhoras que haviam ido visitar os filhos no Chile e foram presas ao desembarcar de volta no Rio de Janeiro: uma era mãe de Almino Afonso, a outra de Helena Bocaiúva. Como eles foram amarrados com os braços pra cima, uma dessas senhoras passou mal e Paiva resolveu ampará-la. Foi aí que começaram as torturas.
Sua esposa Eunice, cujo foco do filme se debruça, também foi detida no mesmo dia, juntamente com sua filha de 15 anos, Eliana. Eliana foi solta logo no dia seguinte, mas Eunice permaneceu incomunicável durante 12 dias.
Entre o dia de sua prisão e o seguinte, Rubens Paiva foi transferido da III Zona Aérea para o Destacamento de Operações Internas (DOI-CODI), no quartel da Polícia do Exército, onde teria sido novamente torturado. No caminho ele chegou a avisar que ele não estava conseguindo respirar, mas ele chegou consciente ao quartel, foi interrogado e, durante a madrugada, ainda passando mal, o pessoal do DOI-CODI acabou chamando o médico Amílcar Lobo que encontrou o prisioneiro nu, deitado numa cela com os olhos fechados, o corpo marcado de pancadas e vários sinais de hemorragia interna. O médico aconselhou que o transferissem para um hospital, mas o major que lhe acompanhava não consentiu e ele acabou morrendo.
Claro que esse assassinato não foi assumido nem pelos membros da aeronáutica, nem da polícia e nem do exército. Para se esquivarem, os órgãos de segurança da época inventaram a história que o carro que conduzia Rubens Paiva para o DOI-CODI havia sido atacado por “indivíduos desconhecidos”, que o teriam sequestrado. E, assim, ele foi dado oficialmente como desaparecido.
Sua esposa Eunice, já em liberdade, tentou diversas vezes que o governo investigasse o desaparecimento do marido. Ela foi ao Superior Tribunal Militar (STM) e ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, sendo sempre recebida por pessoas que endossavam essa história falsa de sequestro.
Ele morreu em 1971 e apenas em 1996, após sancionada a chamada Lei dos Desaparecidos pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, é que foi emitido o atestado de óbito do ex-deputado, ficando assim reconhecida oficialmente a sua morte. O corpo, entretanto, nunca foi encontrado.
Em fevereiro de 2014, no governo Dilma Roussef, começou a funcionar no Brasil a Comissão Nacional da Verdade (CNV) que conseguiu confirmar que seu falecimento se deu em 1971 nas dependências do DOI-CODI, tendo sido assassinado pelo ex-tenente do exército Antônio Fernando Hughes de Carvalho e pelo coronel da reserva Armando Avólio Filho. Por incrível que pareça, esse tenente Hughes de Carvalho, já falecido, foi condecorado à época com a “Medalha do Pacificador”, sim foi isso mesmo que você leu. O cara foi condecorado por torturar e matar um prisioneiro político.
Em março de 2014, sob condição de anonimato, o jornal O Globo publicou o depoimento de vários militares envolvidos no caso. Essa investigação apurou que depois de morto, o corpo de Paiva foi a princípio enterrado no Alto da Boa Vista, próximo à avenida Edson Passos, mesmo local onde seu carro seria encontrado incendiado, numa operação levada a cabo por oficiais e sargentos do exército. Posteriormente, por conta de obras na avenida, esses oficiais e sargentos, temendo que acabassem descobrindo o corpo, mudaram ele de lugar, enterrando-o dessa vez nas areias da praia do Recreio dos Bandeirantes. Dois anos depois, o então capitão do exército Paulo Malhães, sob ordens do gabinete ministerial, montou uma equipe formada por cerca de quinze outros militares para localizar e retirar os restos mortais do Rubens Paiva dessa praia, levando-o até o Iate Clube do Rio de Janeiro, onde foram embarcados numa lancha e lançados ao oceano. Configurando que, além do assassinato, foi cometido também o crime de ocultação de cadáver.
Apesar da cobertura dada aos militares e subversivos pela Lei da Anistia para crimes cometidos durante o período da ditadura militar, em março de 2014, o Ministério Público Federal (MPF) decidiu fazer uma denúncia formal dos militares reformados envolvidos no caso e ainda vivos. O MPF acusou um general, dois coronéis e dois sargentos:
- José Antônio Nogueira Belham, comandante do DOI, onde Paiva morreu sob tortura;
- Raimundo Ronaldo Campos, que admitiu ter montado uma farsa para forjar a fuga do ex-deputado;
- Rubens Paim Sampaio, na época capitão, encarregado pelas “operações de rua” do DOI-CODI;
- Jacy e Jurandyr Ochsendorf, irmãos e ex-sargentos, envolvidos na fraude do incêndio do automóvel.
A Justiça Federal aceitou a denúncia do MPF contra os cinco militares, tornando-os réus pelos crimes de homicídio triplamente qualificado, ocultação de cadáver e associação criminosa, além de fraude processual para três deles. Foram pedidas também a cassação das aposentadorias e a anulação de medalhas e condecorações obtidas por eles. O processo até começou a andar mas, na última instância, o ministro Teori Zavascki do STF concedeu liminar que reconheceu a constitucionalidade da Lei de Anista, e assim suspendeu o processo.
Apenas no ano passado, em 13 de dezembro de 2024, o Conselho Nacional de Justiça determinou o reconhecimento e ratificação dos atestados de óbito de todos os mortos e desaparecidos vítimas da ditadura militar. Em atendimento a esta determinação, o Cartório da Sé, no Centro da Capital Paulista, fez constar no atestado de óbito de Rubens Paiva a seguinte causa da morte: “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.
Atualmente, o caso está concluso e aguarda julgamento do ministro Alexandre de Moraes, sucessor de Teori. Entretanto, dos cinco acusados pela morte de Rubens, três já faleceram.
O filme vem recebendo inúmeros prêmios, dentre eles o Globo de Ouro para a atriz Fernanda Torres. Agora ele segue em direção ao Oscar onde recebeu uma rara indicação dupla de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional, tornando-se o primeiro filme brasileiro a fazê-lo. Fernanda Torres também vai concorrer à estatueta de Melhor Atriz.
O que disse a crítica: Luiz Santiago do site Plano Crítico avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: “O bom desempenho da película nos festivais internacionais e a grande ansiedade no público brasileiro às vésperas de sua estreia são compreensíveis. O tema e alguns componentes importantes do longa são impagáveis, do elenco à trilha sonora, que conta com músicas essenciais para o recorte de tempo (...). Ainda que a direção de Walter Salles não aborde todo esse momento e essa poderosa história com a paixão que tivera em outra trama familiar (‘Central do Brasil’, 1998), o resultado ainda é de grande qualidade, digno de constar entre as nossas melhores produções contemporâneas, além de reacender o debate sobre a investigação, o julgamento e a punição dos agentes da lei, políticos, sociedade civil e militantes digitais que tentam recolocar no poder a miséria militar que massacrou o Brasil entre 1964 e 1985. Esta é a história de uma família, de uma mulher, de uma luta que parece estar mais viva do que nunca, e que nos lembra com muita melancolia que, em determinados tipos de sociedade e sistemas, nenhum direito conquistado está a salvo. É preciso lutar constantemente por eles”.
Alexandre Almeida do site Omelete avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Disse: “Em um período em que muitos flertam com o fascismo e com ideias de que ‘naquela época é que era bom’, ‘Ainda Estou Aqui’ é o retrato de uma família destroçada pela ‘época boa’ que durou mais de 25 anos e até hoje nunca revelou toda a sua verdade. Um drama que nunca cai nas armadilhas do gênero e utiliza a força da jornada da protagonista como uma janela para o passado, focado sempre na sombra que rodeava a casa dos Paiva e ainda está observando a todos de perto - assim como os agentes da ditadura fizeram com Eunice e seus filhos”.
O que eu achei: O filme é muito bem feito. Ele não é nada panfletário, é até interessante que a pessoa que vá ver o filme conheça previamente um pouco da história do Rubens Paiva, pois ele vai focar basicamente nessa mulher de fibra que foi sua esposa Eunice Facciolla Paiva e tudo o que ela passou quando ele foi levado de sua casa, sem mandato de prisão e simplesmente desapareceu. Imagine uma mulher ter que administrar uma casa com cinco filhos, com o marido desaparecido e sem saber os motivos disso. Isso sem contar que a filha dela, menor de idade, e ela também foram presas. A filha por um dia e ela por 12 dias. Tudo sem mandato. A trama é de arrancar lágrimas e serve como um alerta importantíssimo para aqueles que dizem que o regime militar era uma maravilha. Já começa que foi um regime que tomou o poder através de um golpe, coisa que deveria ter sido punida exemplarmente à época  como fizeram na Argentina. Mas aqui não, aqui houve a anistia (o perdão). E, para além do golpe, esses militares eram verdadeiros assassinos que prendiam sem mandato de prisão, torturavam essas pessoas que insistiam em agir fora de seus preceitos, matavam e escondiam os cadáveres. Se alguém ainda achar que isso era uma época boa, melhor internar essa pessoa. Então esse filme surge num momento importante para alertar os desavisados, aqueles que não conhecem a história do nosso país. A produção é de primeira linha, o elenco está afiado, Fernanda Torres se mostra madura como atriz, a trilha sonora de época é incrível e a produção de arte também, tudo muito bem caracterizado. Um filme merecedor da atenção que está tendo no circuito nacional e internacional, já acumulando mais de 5 milhões de espectadores em salas de cinema mundo afora. A cereja do bolo fica agora por conta das três indicações que recebeu ao Oscar. Se ainda não viu, corre que ainda dá tempo de assistir antes da premiação, programada para o dia 02 de março. Aproveite para ver não só esse excelente trabalho, como outros que tratam do mesmo tema como "A História Oficial" (1985) de Luis Puenzo, sobre o sequestro de bebês recém nascidos, crianças e adolescentes na Argentina, filhos de militantes de esquerda presos, torturados e assassinados nas prisões ou fora delas e “Argentina, 1985” (2022) de Santiago Mitre que conta a história verídica de dois promotores públicos que ousaram investigar e processar a ditadura militar sangrenta da Argentina em 1985. Esses dois filmes, aliás, ganharam merecidamente o Oscar. Então, vamos torcer, que agora ele pode ser nosso.