20.1.25

“Vidas Secas” - Nelson Pereira dos Santos (Brasil, 1963)

Sinopse:
Sertão nordestino, uma família miserável tenta escapar da seca. Fabiano (Átila Iório), Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), seus dois filhos e a cachorra Baleia vagam sem destino e já quase sem esperanças pelos confins do interior, sobrevivendo às forças da natureza e à crueldade dos homens, quando conseguem emprego numa fazenda.
Comentário: Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) foi um diretor, produtor e roteirista brasileiro, considerado um dos fundadores do movimento Cinema Novo. Sua produção atravessa um período de 60 anos na história do Brasil com obras como “Rio, 40 Graus” (1955), “O Amuleto de Ogum” (1974) e “Memórias do Cárcere” (1984) dentre outras. “Vidas Secas” (1963) é o primeiro filme que vejo dele.
“Vidas Secas” (1963) é uma adaptação para o cinema do livro homônimo de Graciliano Ramos que narra a jornada de uma família de retirantes entre as grandes secas que tomaram o sertão durante os anos de 1940 e 1942.
Segundo o site da Enciclopédia Itaú Cultural, em 1960, Nelson Pereira dos Santos tenta, pela primeira vez, adaptar o romance mas o projeto foi interrompido devido às chuvas daquele ano no sertão nordestino, sendo retomado em 1963 com produção da empresa Herbert Richers S.A.
“No longa-metragem, que se passa no início dos anos 1940, uma família de retirantes procura refúgio da seca que assola o sertão. Depois de caminhar sem rumo durante dias, Fabiano (Átila Lório), Sinhá Vitória (Maria Ribeiro), seus dois filhos e a cadela Baleia chegam à casa de um fazendeiro (Jofre Soares) e passam a depender de um emprego na fazenda. Quando a situação parece melhor, e Sinhá Vitória sonha em comprar um colchão de couro, Fabiano briga com o fazendeiro. (...) A família retoma a marcha sertão adentro, sem muita esperança de um futuro melhor. No final, um letreiro traz o último parágrafo do livro de Graciliano Ramos, definindo a cidade como destino.
Com ‘Vidas Secas’, Nelson Pereira dos Santos segue a tendência do Cinema Novo de adaptar a literatura de temática social para a linguagem cinematográfica. Realiza um filme político que expõe a pobreza no sertão como consequência do poder praticado por uma oligarquia fundiária. O longa-metragem, produzido em 1963, coincide com o momento em que essa classe latifundiária sente-se ameaçada pela campanha em favor da reforma agrária. Essa campanha é liderada pelas organizações de esquerda, pelas Ligas Camponesas, e assumida como política do governo João Goulart (1919-1976). O questionamento às formas tradicionais de poder no campo é representado pela parcela engajada do cinema brasileiro da época.
Na adaptação cinematográfica de ‘Vidas Secas’, um dos maiores desafios do diretor é manter-se fiel ao livro de Graciliano Ramos. Vem daí a escolha do cineasta em realizar seu longa-metragem em Alagoas, próximo da região de Palmeira dos Índios, onde nasceu e cresceu o escritor. Também, de apresentar, no decorrer do filme, um registro próximo ao documental, que se atém à paisagem árida do sertão. (...)
A fidelidade da adaptação encontra-se na somatória entre o estilo literário de Graciliano Ramos e a dramaturgia realista praticada por Nelson Pereira dos Santos nos primeiros anos de seu cinema. Assim, a sensação de um sertão moroso e seco, criada pelo escritor com uma linguagem enxuta, de frases curtas e diretas com poucos adjetivos, prossegue no filme a partir de uma montagem lenta, com poucos cortes, na qual predominam as panorâmicas e os longos planos-sequências.
No livro, cada capítulo traz o ponto de vista de um personagem. No filme, esses pontos de vista são marcados pelo ritmo e por diferentes planos, com fotografia de Luiz Carlos Barreto (1928). A gravação não utiliza filtros, rebatedores ou refletores. Isso imprime um realismo que valoriza os efeitos naturais de luz e de sombra e, no limite, os estouros de luz geram no espectador a sensação de sufocamento provocada pela seca. (...)
Além da fotografia, outro aspecto de destaque é a transposição dos diálogos lacônicos, de frases curtas e com poucos adjetivos, como no livro. A secura que toma a região, que torna a terra rochosa e estéril, estende-se para a impossibilidade de comunicação entre os personagens. (...) Os personagens conversam pouco, sobrevivem a um cotidiano subjugado por formas patriarcais de dominação. O filme é composto por poucas ações dramáticas, nas quais predomina o silêncio ou a conversa desencontrada”.
Eleito pela ABRACCINE como um dos 100 Melhores Filmes de todos os tempos, “Vidas Secas” é considerado hoje parte da primeira fase do Cinema Novo.
O que disse a crítica: Leonardo Campos do site Plano Crítico avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: “’Vidas Secas’ é uma produção de 1963 que ainda não envelheceu, pois a necessidade de debate acerca da reforma agrária, da luta contra a miséria e a desigualdade social está no topo da lista de temas que precisam de solução imediata”.
Diego Bauer do site Cineset avaliou com o equivalente a 4,75 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: “Obras como essa tiram pessoas da invisibilidade, mostram ao mundo que elas possuem rosto, dores e desejos como todo mundo. É a principal ideia do filme, com isso cumprindo papel maior, inclusive, do que a realização técnica dos departamentos. Essa é uma marca do cinema íntegro de Nelson Pereira dos Santos, que entendia que seus filmes poderiam cumprir papel muito maior do que apenas ser uma realização técnica de qualidade. Quando essa honestidade se alia a um dos melhores textos brasileiros, têm-se uma obra que fala sobre o Brasil de um jeito que talvez nunca se tenha visto novamente”.
O que eu achei: Ver esse filme é meio desesperador. Pensar que o filme é de 1963 e o livro, escrito por Graciliano Ramos, é de 1938. Estamos em 2024 - passaram-se 86 anos do lançamento do livro - e a situação me parece ser a mesma, pelo menos no que tange ao desequilíbrio entre as estruturas que erguem a sociedade brasileira, cheia de altos e baixos, poucos ricos e muitos pobres, somado ao agravamento da crise climática. Para transpor a obra literária para a tela, Nelson Pereira dos Santos optou por utilizar uma luz bem estourada, como se o sol escaldante do nordeste batesse na nossa cara. Diversos trechos do filme foram filmados ao meio-dia, com aquela luz a pino que só quem mora debaixo da linha do Equador conhece. A parte sonora também merece destaque, com especial atenção para o ruído constante das rodas dos carros de boi. Diálogos têm poucos, saem como música da boca da atriz Maria Ribeiro. Já o ator Átila Iório, rosto mais famoso que o dela, com um currículo extenso na TV, no teatro e no cinema, já não me pareceu tão à vontade no papel. De qualquer forma, tanto o livro quanto o filme, tão antigos e ao mesmo tempo tão atuais, valem ser revisitados até para se ter a constatação que os anos passaram e muito pouca coisa mudou nesse país.