22.12.24

“O Último Pub” - Ken Loach (Reino Unido, 2023)

Sinopse:
TJ Ballantyne (Dave Turner) é o dono de um pub que luta para manter seu negócio vivo em uma cidade decadente. Quando refugiados sírios começam a ocupar as casas vazias da região, a tensão aumenta, a união dos habitantes locais é colocada à prova e o pub fica ameaçado de fechar as portas. Entre esses refugiados, TJ conhece uma jovem síria, Yara (Ebla Mari) e, apesar das tensões e preconceitos que tomaram conta da vila, uma amizade inesperada nasce entre os dois. 
Comentário: Ken Loach (1936) é um cineasta britânico que teve uma infância marcada por frequentes mudanças de cidades, com sua família, em virtude da guerra. Nuneaton, a pequena cidade onde nasceu, foi uma das mais arrasadas por Hitler na Segunda Guerra Mundial. Na juventude, estudou direito na Universidade de Oxford. Lá entrou em contato com o grupo de teatro experimental da universidade, onde começou a atuar. Após a universidade, participou de espetáculos teatrais, como ator e diretor. Em 1961 passou a trabalhar como assistente de direção na ABC Television e, posteriormente, na BBC, iniciando uma colaboração com Tony Garnett, produtor com o qual tinha em comum a cultura política socialista. Boa parte de sua obra está centrada na descrição das condições de vida da classe operária. Ele já dirigiu em torno de 43 filmes. Assisti dele os ótimos "Kes" (1969), “Mundo Livre” (2007), "À Procura de Eric" (2009), "Eu, Daniel Blake" (2016) e "Você Não Estava Aqui" (2019). Por conta dele estar com 88 anos, “O Último Pub” (2023) foi anunciado como sendo possivelmente o último trabalho do diretor.
A Revista Jacobina publicou uma entrevista com o cineasta, cujo texto está assinado pelo historiador Ed Rampell com tradução de Gustavo de Almeida Nogueira, que nos conta que “Desde que sua peça televisiva ‘Cathy Come Home’ (1966) da BBC provocou mudanças nas leis sobre as pessoas em situação de rua na Inglaterra, Ken Loach, filho de um eletricista, tem feito filmes sobre trabalhadores e pessoas comuns. Em suas produções, assistimos à luta dos personagens emaranhados em sistemas capitalistas injustos e cruéis - desde a classe trabalhadora na Grã-Bretanha até a Guerra do Contra na Nicarágua, passando pelas rebeliões irlandesas, pela campanha de organização sindical ‘Justice for Janitors’ de Los Angeles e por ações secretas em Belfast - além de documentários como o ‘In Conversation with Jeremy Corbyn’ (2016), em que entrevista o líder do Labour Party, o Partido Trabalhista inglês.
‘O Último Pub’ é o mais recente filme do cineasta socialista sobre as dificuldades cotidianas de pessoas comuns. Finalizando uma longa e distinta carreira dedicada a dramatizar e documentar os oprimidos de todo o mundo, o filme chega aos espectadores com o peso de tratar-se do derradeiro longa-metragem de Ken Loach - que completa 88 anos em junho deste ano. As aclamações à sua obra contam com duas Palmas de Ouro do Festival de Cannes, três prêmios César e três prêmios BAFTA - além de sua recusa em receber a medalha de Oficial da Ordem do Império Britânico, oferecida ao cineasta em 1977. Nas palavras do historiador de cinema David Thomson, ‘em sua dedicação e seriedade, ele é uma figura exemplar’”.
Indagado sobre o que o motivou a filmar essa história, Loach respondeu que após fazer dois filmes no nordeste da Inglaterra – “Eu, Daniel Blake” (2016) e “Você Não Estava Aqui” (2019) – ele ficou pensando em como essa região possui “características singulares e uma cultura de classe trabalhadora muito forte [que] se baseia nos antigos setores, como construção naval, aço e mineração de carvão. E todas elas desapareceram; todas elas foram fechadas. Os vilarejos são exemplos muito claros e visuais (...) das consequências do neoliberalismo. Nada deve impedir que as empresas privadas obtenham o máximo de lucro possível. Portanto, não se pode tolerar sindicatos fortes, por exemplo. (...) Não se pode tolerar a resistência dos trabalhadores e as demandas por melhores salários, porque isso atrapalha os lucros e a concorrência”.
Ele disse: “Temos tido governos neoliberais desde os anos 80. Ambos os principais partidos são agora partidos neoliberais, tanto o Partido Conservador (Conservative Party) quanto o que supostamente deveria ser o Partido Trabalhista (Labour Party), que de fato tornou-se também um partido de direita. É um pouco como os republicanos e os democratas [nos EUA]. Eles se revezam para exercer basicamente as mesmas políticas econômicas. As consequências são as mesmas.
A mina, as casas ao redor, a igreja, o bem-estar dos mineiros, o pub, a escola, o médico e o campo - quando a mina fecha, tudo fecha com ela, exceto as pessoas que ainda permanecem, e elas são abandonadas. Queríamos contar essa história, mas precisávamos de um catalisador que a revelasse. E Paul [Laverty] ouviu a história da chegada dos refugiados sírios da guerra na Síria. Eles foram enviados para lá porque ninguém dava notícias deles. A imprensa de direita não ficaria reclamando deles o tempo todo; são pessoas fora do radar, ninguém passa por lá - não veem motivo para isso. Eles chegam traumatizados da guerra e não trazem mais nada além de uma mala e a roupa do corpo. E a população local também é despossuída. Como essas duas comunidades conviverão?
Muitos dos moradores locais estão amargurados e irritados com o que aconteceu com seu vilarejo, que era uma comunidade próspera e forte. Agora ela está vazia. Paralelamente, tem-se a tradição antiga dos mineiros, baseada na solidariedade e no internacionalismo. Quando houve a grande greve [de 1984], eles foram para outros países e pessoas de outros países foram para os seus, e eles foram recebidos com muita hospitalidade. O que aconteceu com isso? Essa tradição ainda existe? Ou ela foi dominada pela amargura, pela raiva e pelo ressentimento? Qual dessas duas tendências vencerá? Os sírios não falam o idioma local e não possuem nada. Eles poderão viver juntos? Ou o ressentimento vencerá no final?
A indústria de Hollywood encarna uma cultura totalmente diferente dessa, uma maneira completamente diferente de ver o cinema. É difícil de conceber essa relação, porque como uma forma de abordar o meio, há algo intrinsecamente hostil à expressão da cultura da classe trabalhadora. Hollywood tem a ver com a construção de pessoas famosas nos filmes, o chamado star system. Trata-se de criar famas, de forjar pessoas para serem admiradas e adoradas. Isso vai contra a credibilidade, porque quando você assiste a uma grande atuação, as atuações anteriores dessa estrela lhe vêm à mente. É claro que já fizeram grandes filmes sobre as situações da classe trabalhadora. Mas a essência da produção cinematográfica de Hollywood é antitética à experiência real da classe trabalhadora”.
O roteiro foi escrito por Paul Laverty. No elenco, os sírios foram compostos somente por atores não profissionais que se estabeleceram na região. O mesmo acontece com alguns dos ingleses locais.
Uma curiosidade: a escrita em árabe que fica na parte inferior do banner em inglês são as mesmas que estão em inglês na parte superior do banner: Solidariedade e Resistência.
O que disse a crítica: Guilherme Jacobs do site Omelete avaliou com 2 estrelas, ou seja, regular. Disse: “Mais do que tentar ser honesto e gerar em nós uma conexão verdadeira com uma história repleta de personagens bem estabelecidos, Loach quer manipular. Sem confiança na capacidade de ‘O Último Pub’ de ser dramaticamente interessante e assim tornar-se memorável, ele deseja tanto um resultado específico que está disposto a deixar à mostra todos os seus truques. Para um diretor tão humanista, essa abordagem sistemática é decepcionante”.
Eduardo Gouveia do Coletivo Crítico avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: a “construção narrativa feita por Loach tem o condão de tocar espectadores de diferentes locais do planeta onde esse ‘fenômeno’ ocorre. Afinal, não é apenas no Reino Unido que se utiliza o ressentimento, sobretudo, das classes médias para direcionar ódio a grupos marginalizados. Quanto ao ritmo de ‘O Último Pub’, parece haver alguma dificuldade, sobretudo porque a sua temática central é reiterada o tempo todo, o que parece ser uma intenção de evidenciar o teor político e crítico do filme. Isso pode impactar negativamente o espectador, tornando cansativa a experiência. Ao dotar as cenas finais do longa com a humanidade característica de sua obra, o diretor acerta ao trazer um grande grau de honestidade ao filme. Ele deixa claro que, em situações tão sensíveis quanto às expostas em ‘O Último Pub’, na ‘vida real’, não há soluções rápidas ou fáceis, mas sim, tentativas de solução que passam por uma série retrocessos e rupturas”.
O que eu achei: Está aí um diretor que gosto muito. Todos os filmes que vi dele mostravam uma consciência clara de mundo, observada em poucos cineastas. Sua obra possui características marcantes como: o realismo social (retratando a vida cotidiana da classe trabalhadora com autenticidade, abordando questões como pobreza, desemprego, exploração trabalhista, precariedade no sistema de bem-estar social), as narrativas humanistas (destacando a resiliência e a humanidade dos personagens em meio a condições adversas), um certo naturalismo na direção dos atores (trabalhando com atores desconhecidos ou não profissionais), os diálogos realistas (com uso de gírias e sotaques regionais) e, dentro desse universo da classe trabalhadora, explorando diversos aspectos de conflitos sociais como sindicalismo, imigração e a luta contra o imperialismo. Agora, do alto dos seus quase 88 anos, é muito prazeroso vê-lo lançando um novo filme, mantendo seu estilo característico de abordar questões sociais com sensibilidade e realismo. “O Último Pub” narra a relação entre uma comunidade britânica em declínio e um grupo de refugiados sírios que ali se instala, tocando em temas como solidariedade, xenofobia e luta por dignidade. Pode não ser o melhor filme de Loach, mas capta com precisão o impacto do declínio econômico em áreas rurais e pequenas comunidades, mostrando como a precariedade afeta as relações humanas. A questão dos refugiados e o racismo são tratados de forma sensível, destacando a luta por aceitação em um ambiente hostil, o que torna o filme extremamente relevante no cenário contemporâneo. Talvez, ao final, ele termine um pouco mais otimista do que deveria, mostrando como pessoas boas podem ser influenciadas pelo medo ou preconceito, parecendo acreditar que o diálogo e o contato humano podem transformá-las e que diferentes comunidades possam encontrar terreno comum, mesmo em meio às tensões e dificuldades, promovendo uma mensagem de esperança e união. Não é o melhor dele, mas ainda assim é bom, é relevante e termina provocando reflexões profundas sobre convivência, preconceito e a possibilidade de redenção social.