3.11.24

“Os Colonos” - Felipe Gálvez Haberle (Chile/Argentina/Reino Unido/Taiwan/Alemanha/Suécia/França/Dinamarca, 2023)

Sinopse:
Ambientado em 1901 na Terra do Fogo, República do Chile, a história segue três cavaleiros contratados pelo espanhol José Menéndez (Alfredo Castro), um rico proprietário de terras, para "civilizar" a população indígena da região e abrir uma estrada. Na companhia de um imprudente tenente britânico chamado Alexander MacLennan (Mark Stanley) e um mercenário da América do Norte chamado Bill (Benjamin Westfall), está o atirador mestiço chileno Segundo (Camilo Arancibia), que percebe, em meio às crescentes tensões no grupo que, na verdade, eles estão lá para exterminar a população indígena daquelas terras.
Comentário: Felipe Gálvez Haberle (1983) nasceu em Santiago, no Chile, e vive em Paris. Dirigiu curtas-metragens como “Silencio en la Sala” (2009), “Yo de Aquí te Estoy Mirando” (2011) e “Rapaz” (2018). “Los Colonos” é seu primeiro longa-metragem.
Antes de ver o filme vale a pena revisitar a história da Patagônia e saber que “os primeiros europeus chegaram à região na ponta sul do continente americano em 1520, com a expedição de volta ao mundo do português Fernão de Magalhães. Ao avistarem a fumaça de numerosas fogueiras, apelidaram o arquipélago Terra do Fogo. Porém, a colonização só começaria em 1850, quando desembarcaram na Isla Grande os primeiros imigrantes vindos da Argentina, do Chile e da Europa”. Conforme nos contam Stefan Dege e Augusto Valente do site DW, eles eram “criadores de ovelhas, caçadores de ouro e missionários, [que levaram para o local] doenças desconhecidas e praticamente dizimaram a população local”.
Mas que população local seria essa? Esse local “desabitado” na verdade era a moradia dos indígenas que lá estavam. Pelo que os historiadores apuraram esses “indígenas chegaram à Patagônia e à Terra do Fogo há cerca de 10 mil anos. Assim como outros quatro povos, os selk'nam enfrentaram as condições inóspitas do labirinto insular, com seu clima polar combinando sol abrasador e frio antártico, e atravessavam em pequenos grupos a paisagem árida, entrecortada por riachos. Os selk'nam não construíram cidades nem monumentos, não deixaram para a posteridade artefatos de cerâmica, muito menos língua escrita. No entanto, fotos históricas e relatórios científicos do missionário Martin Gusinde lembram ainda hoje sua cultura. Enviado pelos Missionários do Verbo Divino, o padre e antropólogo austríaco empreendeu quatro viagens de estudos entre 1918 e 1924 [o filme se passa em 1901, portanto essa documentação foi feita após a história contada no filme], documentando em imagens e áudio a vida dos ‘índios da Terra do Fogo’, na época já quase extintos”. Segundo a matéria essas fotos mostram corpos pintados e práticas rituais, dentre outras coisas.
O filme se passa em 1901 justamente nessa região conhecida como Terra do Fogo, no Chile. Começa mostrando o espanhol Dom José Menéndez (Alfredo Castro) colocando cercas para fazer a demarcação de suas terras. Trabalham para ele um ex-tenente britânico chamado Alexander MacLennan (Mark Stanley), um mercenário norte-americano chamado Bill (Benjamin Westfall) e o atirador mestiço chileno chamado Segundo (Camilo Arancibia), dentre outros diversos empregados.
A treta com os indígenas começa logo no início do filme, quando Menéndez descobre que os indígenas abriram as cercas de sua propriedade na comuna de Porvenir (Chile) e comeram as ovelhas que ele criava. Ele então chama seu funcionário Alexander e ordena que ele abra uma rota pelo Atlântico para salvar seus animais e também o orienta a “limpar” suas terras, ou seja, manda que ele extermine os indígenas que ali estiverem. Para isso o ex-tenente sai em missão levando consigo os funcionários Bill e Segundo.
Como o filme é baseado em fatos reais, ele acaba sendo uma denúncia que o diretor faz, lembrando o massacre dos nativos do povo selk'nam. Um genocídio ocorrido no sul da Patagônia que quase passou despercebido pela comunidade mundial.
A matéria escrita no jornal DW por Stefan Dege e Augusto Valente assinala também algo que o filme não mostra, que “foram os zoológicos humanos que, do fim do século 19 até o início da década de 1930, atraíam um público de milhões na Europa, como antecessores dos reality shows modernos". Eles nos contam que "também integrantes dos selk'nam foram transportados ao Velho Mundo e comercializados como habitantes primitivos da América do Sul”. Apesar disso hoje parecer chocante, na época essas “exposições etnológicas” eram consideradas normais e ocorriam com frequência em lugares como Hamburgo, Berlim e Paris.
Felizmente, "desde 2004, alguns descendentes [dos selk'nam] vivem em 35 mil hectares designados pelo governo argentino. Organizados na Comunidad Indígena Rafaela Ishton, eles se ocupam em revitalizar suas tradições e cultura” e “em 2023, o governo chileno os reconheceu oficialmente como comunidade indígena existente". 
Em entrevista ao Estadão o diretor conta que até hoje essa região pertence em grande parte à família Menéndez, sendo a maioria propriedade privada. Segundo ele, não foi tão fácil encontrar locais para gravar. Isso ocorreu tanto por ser propriedade da família do latifundiário cujo filme denuncia, como porque muitas pessoas não queriam se envolver.
O que disse a crítica: Fabricio Duque do site Vertentes do Cinema avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse que o filme é ousado, talvez mais ingênuo que pretensioso, e que o diretor retarda demais seu objetivo. Segundo ele “Nesse tempo do antes, nós espectadores somos convidados a embarcar em uma jornada épica num faroeste atípico com ares narrativos de Quentin Tarantino (...) e com um que mais implícito de Jean-Luc Godard (...). Essa narrativa busca também o contraste da mise-en-scène, confusa entre a contemplação didática da imagem e o tom afoito da montagem, numa naturalidade editada. Essa hesitação em optar por um caminho acaba por impedir a imersão à obra”.
Já Andre Marcondes no jornal Folha SP avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Ele elogia o impecável trabalho de fotografia (Simone D'Arcangelo) e música (Harry Allouche), diz que o diretor “é particularmente feliz em explorar no filme o conflito das masculinidades e a luta de egos dos personagens” e acrescenta que “embora o filme não esclareça completamente, tanto Menéndez como MacLennan existiram. A crueldade de ambos contra os nativos foram documentadas, jamais punidas, e mesmo o seu legado ainda é lembrado e celebrado”, com o extermínio dos indígenas tendo sido um ato “planejado e ordenado por Menéndez, a cuja família se atribui o desenvolvimento econômico de Punta Arenas”. Ele finaliza elogiando a habilidade do diretor “em representar na tela esses eventos e memórias históricas que confrontam a civilização e suas tendências desumanas” e diz que são “raras as estreias na direção que começam com o nível de confiança e cuidado que o cineasta demonstra ter com seu tema: os fantasmas da colonização branca do Chile, que assombram, perturbam e nos levam a refletir sobre o tema da responsabilidade coletiva”.
O que eu achei: Esse é o primeiro longa do chileno Felipe Gálvez Haberle e o cara já faz, logo de cara, um gol de placa. A locação são as paisagens montanhosas do Chile que a fotografia, assinada por Simone D'Arcangelo, utiliza com maestria, transformando o filme numa beleza visual que chama a atenção pelos enquadramentos e efeitos de luz precisos. A história que o filme conta é uma espécie de “Assassinos da Lua das Flores” chileno, mostrando um fato real ocorrido em 1901 na Patagônia, ao sul da Cordilheira dos Andes, quando o espanhol José Menéndez, um rico proprietário de terras, chega para "civilizar" a população indígena da região. O longa explora os temas da colonização, da violência e do extermínio sofrido pela população indígena local, revelando um capítulo sombrio da história do Chile, que nem a população chilena conhece muito bem. O mais louco nisso tudo é que à família Menéndez se atribui, até hoje, a responsabilidade pelo desenvolvimento econômico de Punta Arenas sem, no entanto, se dizer a que custo isso foi feito. Um legado que é lembrado e celebrado, contado sempre pelo ponto de vista dos próprios vencedores, mas jamais punido, como se a aquisição de terras para a civilização autorizasse a destruição da ordem selvagem originária. O filme tem um ritmo relativamente lento, mas entrega o que promete nas suas poucas 1h40m na qual se desenvolve. Excelente e imperdível.