15.10.24

“Conto de Fadas” – Aleksandr Sokurov (Rússia/Bélgica, 2022)

Sinopse:
O diretor russo Aleksandr Sokurov retrata conversas no purgatório entre Adolf Hitler, Benito Mussolini, Joseph Stalin e Winston Churchill, combinando imagens de arquivo com a tecnologia deepfake.
Comentário: Aleksandr Sokurov (1951) é um cineasta russo de quem já assisti cinco filmes: a obra-prima "Arca Russa" (2002), os excelentes "Moloch" (1999), "Fausto" (2011) e "Francofonia - O Louvre sob Ocupação" (2015) e o documentário "Elegia de Moscou" (1987). Desta vez vou conferir seu mais novo trabalho “Conto de Fadas” (2022).
Nikolai Kornátski do jornal russo Izvestia acredita que “Cada novo filme de Aleksandr Sokurov é um deleite para os fãs de cinema - e seu ‘Conto de Fadas’, de 2022, não é exceção”. Ele levanta cinco motivos para se assistir ao filme:
1. O enredo por si só já vale a pena: os senhores todo-poderosos do nosso mundo se encontram na vida após a morte
Entre os personagens estão Hitler, Mussolini, Stálin, Churchill, Napoleão. Até Jesus Cristo aparece. Os governantes se reúnem na vida após a morte e mantêm conversas intermináveis, enquanto aguardam a decisão do Poder Superior – se os portões do Céu se abrirão diante deles ou não. Em seus pensamentos, ainda estão na Terra – ninguém quer descansar, ninguém sonha com o descanso eterno, mas com como repetir a história à sua maneira. Esta é a quinta parte de uma série em grande escala de Sokurov sobre a natureza do poder. Primeiro, foi uma trilogia – ‘Moloch’ (1999) sobre Hitler, ‘Taurus’ (2001) sobre Lênin, e ‘O Sol’ (2005) sobre o imperador japonês Hirohito. Em 2015, ‘Fausto’, baseado na tragédia de Goethe, entrou para a tetralogia – e ganhou o Leão de Ouro em Veneza. ‘Conto de Fadas’ traz agora reflexões do diretor sobre como o poder ilimitado pode mudar um homem.
2. É uma experiência única - ‘Conto de Fadas’ é um cruzamento entre live action, documentário e animação
A crônica documental é a base do filme. Segundo o diretor, durante os preparativos, ele assistiu a inúmeras gravações dos líderes disponíveis nos arquivos mundo afora. Como aparecem os líderes mundiais na crônica oficial? Eles costumam ficar na tribuna, fazer discursos ou caminhar lentamente durante as várias cerimônias. Pareceria problemático reunir algo coerente e, o mais importante, interessante a partir desse tipo de material. Mas Sokurov encontrou uma fórmula – com a ajuda de recursos tecnológicos, transferiu os líderes globais para a vida após a morte, unindo-os em uma única câmara. As suas lentas ‘caminhadas’ assumiram um efeito dramático – não se limitam a desfilar, estão a matar o tempo, à espera do ‘destino final’. (...)
3. É, ao mesmo tempo, uma visão misteriosa, surreal e incrivelmente bela
Vale a pena destacar a solução artística usada para representar a vida após a morte. A paisagem é em preto e branco – para combinar com a cor dos personagens do filme, retirados das crônicas documentais. Entre as fontes de inspiração visual mais óbvias estão: as ilustrações de Gustave Doré para a ‘Divina Comédia’ de Dante, as gravuras romanas do arquiteto Giovanni Battista Piranesi, bem como a pintura ‘A Ilha dos Mortos’ de Arnold Böcklin.
4. E, mesmo com tudo isso, também é um filme engraçado
Com tudo o que foi dito, seria de esperar um tom sério e sombrio. Mas não – o filme tem bastante humor. Os diálogos e monólogos de seus personagens (cada um em sua própria língua: Churchill fala inglês, Napoleão fala francês, e assim por diante) estão repletos de citações e referências a seus discursos durante a vida. Muito do que é dito, devido ao cenário, soa bastante irônico. Por exemplo, Churchill, já irritado, lembra a Stálin como este último prometeu, mas nunca realmente construiu, uma fábrica de conhaque na Grã-Bretanha – isso é uma alusão a uma história famosa sobre como o líder soviético recebeu o primeiro-ministro britânico com conhaque armênio durante a Conferência de Ialta. Supostamente, Churchill teria ficado encantado com a bebida. Há também metapiadas diretas – em determinado momento, os personagens se lembram do próprio Sokurov. Evidentemente, eles não gostaram muito dos filmes anteriores sobre si mesmos. Em uma das cenas, Hitler explode um moinho de vento com uma granada enquanto ordena ‘Pare de girar!’. Alguém entre os personagens imediatamente se oferece para ligar para Miguel de Cervantes – para que ele veja como se deve combater os moinhos de vento.
5. Talvez, ‘Conto de Fadas’ seja um dos últimos filmes do diretor
Sokurov lança filmes com cada vez menos frequência. Seu filme anterior, ‘Francofonia: Louvre Sob Ocupação’ estreou no festival de Veneza em 2015. ‘Fausto’ veio a público em 2011. Ao apresentar ‘Conto de Fadas’ no Festival de Locarno, Sokurov lembrou que foi exatamente ali que seu filme de estreia ‘A Voz Solitária do Homem' foi exibido em 1987 (na época, premiado com o Leopardo de Bronze). O diretor achou simbólico que ‘Conto de Fadas’ também estreasse em Locarno - dando a entender que este pode ser o seu último filme”.
O que disse a crítica: Bruno Carmelo do site Meio Amargo avaliou com o equivalente a 2 estrelas, algo como fraco. Escreveu: “O interesse do longa-metragem decorre muito de sua picardia, da ousadia decorrente de sua simples existência. Que outro cineasta teria concebido estas personalidades convivendo lado a lado, e se daria ao trabalho de efetivamente concretizar uma narrativa a respeito? Este será conhecido popularmente como ‘o filme de Hitler, Mussolini, Churchill e Stalin no purgatório’, um conceito sedutor por sua originalidade. A mera sugestão desta iniciativa desperta risos, suspeita, dúvidas. O valor da obra reside sobretudo em seu caráter retórico - no fato de ter sido realizada”. Entretanto, apesar da excelente ideia, o resultado não agradou Carmelo que concluiu: “Dificilmente se imaginaria um encontro tão anticlimático e desinteressante entre figuras que determinaram os rumos do século XX”.
Já Francisco Carbone do site Cenas de Cinema gostou muito, avaliou com 4,5 estrelas. Disse: “Aos 71 anos, o vencedor de um Leão de Ouro mostra mais um lado surpreendente dentro de uma filmografia que nunca esteve descansada. Através desse novo filme, somos lembrados de maneira sutil do porquê não podemos desconsiderar um Sokurov antes de sequer vê-lo, e que sua vontade de experimentar não cansa de promover muitas coisas além do que a experiência de cinema. ‘Conto de Fadas’, como o título já sugere, carrega junto de si uma carga onírica, como uma fantasia animada, um delírio barroco delicioso de assistir. (...) Suas montagem, criação de universo e comunicação atemporal, o transformam em uma daquelas obras que encontramos somente de tempos em tempos, e que ultrapassam os conceitos de qualidade ou falta de”.
O que eu achei: Eu gostei demais do que vi. O filme já começa dizendo que não foi usada a tecnologia deepfake, ou seja, ele já começa sendo fake, pois tudo o que você vai ver são imagens de arquivo do Adolf Hitler, do Benito Mussolini, do Joseph Stalin e do Winston Churchill - além de outras figuras diversas - animadas pela nova tecnologia. Então esse tom jocoso já dá o pontapé inicial e segue por todo o filme. Como eles estão no purgatório aguardando a decisão se eles irão para o Céu ou não, eles ficam vagando pelo local que está absolutamente lotado de pessoas. Até Jesus Cristo está lá aguardando o veredito. Para retratar o tal purgatório, Sokurov utiliza as ilustrações de Gustave Doré, as gravuras do arquiteto Giovanni Battista Piranesi e a pintura de Arnold Böcklin, então o local é simplesmente um arraso. Eles conversam as coisas mais banais e estapafúrdias que você possa imaginar, seja sobre a roupa um do outro, seja sobre cheiros ou outras amenidades. Em outros momentos ele utiliza trechos de falas que foram extraídos de citações ou de discursos reais desses personagens. Enfim, é um filme experimental, não espere uma narrativa com começo, meio e fim. É uma obra mais de caráter contemplativo que poderia ser exibida numa galeria de arte. Simplesmente sensacional.