5.10.24

“Antes que Anoiteça” - Julian Schnabel (EUA, 2000)

Sinopse:
 
Cinebiografia do escritor cubano Reinaldo Arenas (Javier Bardem) que, após ser educado com a Revolução Cubana e premiado nacionalmente por seu trabalho, termina sendo preso e, posteriormente, exilado de seu país natal. O longa aborda a vida desde sua infância pobre até seu exílio em Nova York, passando pelo horror e preconceito sofrido ainda em Cuba pelo fato de ser homossexual.
Comentário: Julian Schnabel (1951) é um artista plástico e cineasta americano de quem já assisti o excelente "O Escafandro e a Borboleta" (2007), o bom "O Portal da Eternidade" (2018) sobre o pintor Vincent Van Gogh e o mediano "Basquiat - Traços de Uma Vida" (1996). Desta vez vou conferir “Antes que Anoiteça” (2000) que conta a vida do escritor cubano Reinaldo Arenas utilizando como base do roteiro um livro do próprio escritor chamado “Antes que Anochezca” (1992).
Fernando Gabeira publicou uma resenha na Folha SP dizendo que na época que o filme chegou ao Brasil ele resolveu ler o livro de Arenas. Escreveu: “Pensei que encontraria somente a história de um escritor lutando contra o tempo para produzir suas memórias - Arenas morreu de Aids. Mas encontrei no livro todos os grandes lances da história contemporânea de Cuba: a queda de Batista, os fuzilamentos, a fracassada invasão da baía dos Porcos, a também fracassada safra dos 10 milhões de toneladas de cana. Mas não se trata de um livro de história. É um livro que, ao desdobrar a vida de Arenas, acaba nos colocando por dentro de duas trajetórias dramáticas dentro do processo histórico cubano: a dos homossexuais, perseguidos pela revolução, e a dos artistas considerados inimigos do regime, alguns apenas por tentar manter sua independência crítica. É uma história feia, vergonhosa mesmo, eu diria. Ainda mais para mim, que passei quase dois anos por ela sem pressentir os lances que se desenrolavam quase diante dos nossos olhos.
Reinaldo Arenas menciona dois tipos de morte que o processo revolucionário abriu para os intelectuais: a morte lenta, esmagada sob o peso de pequenas e mesquinhas medidas repressivas, e a gloriosa, dos que aderiam ao regime e sufocavam, com a adesão apologética, o próprio talento. Contado assim, parece ser um livro triste. Mas não é. O fio condutor é precisamente o fluxo de vida que segue seu rumo num país dominado e consegue, apesar de toda a pressão, exprimir as duas liberdades que o regime negava: a sexual e a estética. Arenas era homossexual. Aderiu à revolução quando jovem e tentou até se enquadrar na imagem do macho heroico que o regime cultivava. Mas o que tem de ser tem muita força, e logo estava fazendo amor com grupos de soldados ou se perdendo nos banheiros públicos de Havana.
A repressão aos homossexuais teve várias etapas. Se fossem descobertos nas escolas revolucionárias, eram expulsos e apedrejados. Depois foram enviados para campos de concentração. O movimento chamado ‘parametragem’ foi uma decisão do governo de afastar dos cargos públicos quem tivesse uma conduta sexual desviada: homem que gosta de homem, mulher separada que transasse livremente etc. Na fase final da repressão, a segurança do Estado escolhia seus quadros mais bonitos para seduzir homossexuais, desmascará-los e mandá-los para os campos. Apesar de tudo isso, Arenas demonstra que a repressão jamais conseguiu deter as trocas amorosas, que desenvolveram também seus mecanismos de defesa. A história intelectual moderna de Cuba talvez seja um dos pontos mais importantes do livro. Descreve artistas que tentaram resistir, menciona os círculos de leitura clandestina, revela como alguns amigos se transformaram em policiais da cultura e descreve os rituais de autocrítica através dos quais os escritores capitulavam diante do regime.
Arenas continuou transando com homens, portanto resistiu. Mas resistiu extraordinariamente como escritor, escondendo manuscritos, enviando-os sob grande risco para o exterior e garantindo dessa maneira que o trabalho fosse lido por alguém mais, além dos censores do governo.
O filme ‘Antes do Anoitecer’ talvez seja tratado como um filme cult, desses que passam nos cineclubes e despertam apenas o interesse de alguns gatos pingados. A verdade é que ele pode preencher uma imensa lacuna cultural brasileira. Nada sabemos, realmente, do que se passou no mundo intelectual cubano. Formou-se uma barreira de silêncio quase impenetrável, pois os intelectuais daqui, como foi o meu caso, jamais conseguiram ver muito além do que era mostrado pelos guias oficiais.
O ex-asilado político Antonio Rangel Bandeira escreveu o livro ‘Sombras do Paraíso’, sobre a repressão política e intelectual em Cuba. Tem um prefácio de Mario Soares, mas foi pouco discutido. O livro de Arenas, entretanto, concentra-se numa vida e, através de seus sonhos e frustrações, pode ter um grande impacto naqueles que gostariam de ver a Revolução Cubana um pouco mais completa do que mostram os apologéticos turistas que visitam a ilha. Enquanto não se ajustar a conta com essa história, o que pode ser feito reconhecendo os pontos positivos da Revolução Cubana, o Brasil continuará mergulhado na ignorância sobre uma experiência tão próxima na aparência, mas tão distante pela unilateralidade de nossas interpretações.
Muitos ainda vão dizer que levantar esse tema interessa à extrema direita e aos Estados Unidos. Desde quando a extrema direita vai se interessar por veados e artistas sem revelar o seu desejo oculto de acabar com eles, como fez o regime cubano?
‘Antes do Anoitecer’ pode ser um sopro de vida percorrendo as emboloradas gavetas onde repousam nossas análises sobre Cuba. O mesmo sopro resistiu à pressão do regime e, para além da morte de Reinaldo Arenas, nos convida a acordar desse sono letárgico tantos anos depois de os personagens tombarem nos campos de concentração, nas fortalezas onde se encerram presos e nas longas listas de suicidas, cujo grito de desespero atravessa décadas”.
O filme foi rodado em Veracruz, no México. Ele venceu o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cinema de Veneza de 2000. No elenco, além de Javier Bardem, estão Johnny Depp, Sean Penn e Hector Babenco.
O que disse a crítica: A revista especializada Film Journal não gostou. Considerou o "machão" Javier Bardem como pouco convincente no papel do efeminado Arenas, apontando que Bardem é retratado como passivo ou vítima dos acontecimentos que ocorrem em sua vida, justamente a impressão que o público fica quando Arenas de repente se entrega ao volátil Pepe Malas (Andréa Di Stefano), que o apresenta à subcultura gay de Havana, ou ainda quando o escritor vai preso sem dar um grito por uma injusta acusação de molestamento.
Matt Brunson do site Film Frenzy avaliou com o equivalente a 3,75 estrelas, ou seja, achou muito bom. Disse: “Embora famoso em sua terra natal, a Espanha, Javier Bardem era, com exceção de alguns filmes de arte, um virtual desconhecido para o público dos EUA em 2000. Isso mudou rapidamente com ‘Antes do Anoitecer’, que apresenta uma performance tão formidável que lhe rendeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator e um destaque de Hollywood (...). Cheio de sequências alucinatórias marcantes, personagens extravagantes (Johnny Depp e Sean Penn aparecem em participações especiais memoráveis) e a presença constante da prosa de Arena na trilha sonora, ‘Antes do Anoitecer’ coloca seus temas de tolerância sexual e liberdade de expressão em um contexto que enfatiza de forma interessante as atividades em si sem nunca silenciar as mensagens subjacentes ou recorrer a proselitismo pesado. É apenas durante a meia hora final, quando Arenas chega aos EUA apenas para dar de cara com a AIDS, que o filme vacila - desnecessariamente apressado e filmado de forma sonolenta, ele drena a peça de sua vibração arduamente conquistada e perde muito de seu peso emocional”.
O que eu achei: Achei o filme duplamente interessante: primeiro por retratar a vida - da infância até a morte - de uma figura que eu basicamente só conhecia de nome, o escritor cubano Reinaldo Arenas (1943-1990), e segundo, por ser o primeiro longa-metragem que vejo sobre o impacto da Cuba de Fidel Castro em artistas e intelectuais homossexuais. O filme - todo rodado no México e não em Cuba - captura muito bem a essência do que o escritor viveu, traçando um rico quadro de sua vida, pincelando desde sua infância na extrema pobreza e a sua breve participação na revolução cubana à sua libertação homossexual e batalha para escrever em meio às perseguições do regime. Durante a década de 1970, ele tentou, por vários meios, abandonar a ilha, mas não obteve sucesso. Mais tarde, devido a uma autorização de saída de todos os homossexuais e de outras persona non grata e depois de ter mudado de nome, Arenas pôde deixar o país, exilando-se nos EUA, local que o censurava de outra maneira. No papel do romancista está Javier Bardem, apresentando uma forte atuação dramática que lhe rendeu merecidamente uma indicação ao Oscar de Melhor Ator. Johnny Depp, que nem sempre oferece interpretações convincentes, está excelente no duplo papel de travesti e de tenente. Muito agradável também ver a presença de Sean Penn e Hector Babenco em papéis secundários, mas não menos importantes. A história é um soco no estômago: o filme é difícil, duro, retrata uma faceta desagradável de uma Cuba não mostrada pelos guias turísticos. Resta saber se, em tempos mundiais de heterossexualidade totalitária, será que Arenas teria sido feliz em algum lugar do mundo? Acredito que não.