21.9.24

“La Chimera” - Alice Rohrwacher (Itália/França/Suíça/Turquia, 2023)

Sinopse:
 Zona rural da Toscana, década de 1980. Todos têm sua própria Quimera, algo que buscam, mas nunca conseguem encontrar. Para uma gangue de ladrões de antigos objetos funerários e maravilhas arqueológicas, a Quimera significa o desejo pelo dinheiro fácil. Para Arthur (Josh O’Connor), a Quimera se parece com a mulher que ele perdeu, Beniamina (Yile Yara Vianello). Numa jornada entre florestas e cidades, celebrações e solidão, desenrolam-se os destinos entrelaçados desses personagens, todos à procura da sua Quimera.
Comentário: Alice Rohrwacher (1981) é uma roteirista, editora de cinema e diretora italiana de quem já assisti os bons "As Maravilhas" (2014) e “Lazzaro Felice” (2018). Desta vez vou conferir “La Chimera”.
O site Wikipédia nos conta que a palavra “Chimera” se refere a uma figura mítica caracterizada por uma aparência híbrida de dois ou mais animais com a capacidade de lançar fogo pelas narinas, sendo, portanto, uma fera ou besta mitológica. Oriunda da Anatólia e cujo tipo surgiu na Grécia durante o século VII a.C., sempre exerceu atração sobre o imaginário popular. De acordo com a versão mais difundida da lenda, a chimera (ou quimera) era um monstruoso produto da união entre Equidna - metade mulher, metade serpente - e o gigantesco Tifão. Outras lendas a fazem filha da hidra de Lerna e do leão da Nemeia, mortos por Hércules. Figurativamente ou em linguagem popular mais ampla, o termo quimera alude a qualquer composição fantástica, absurda, monstruosa ou incoerente, constituída de elementos disparatados ou incongruentes, significando também uma utopia oriunda da imaginação, do sonho ou da fantasia.
O site do IMS nos conta que o filme surgiu da experiência pessoal da diretora que “nasceu na cidade de Fiesole, na Itália, [um lugar] que preserva até os dias de hoje estruturas que datam dos povos etruscos e romanos”. Em depoimento disponibilizado no material de imprensa do filme, ela relata: “Onde eu cresci, era comum ouvir histórias de descobertas secretas, escavações clandestinas e aventuras misteriosas. Bastava ficar no bar até tarde da noite ou parar em uma pousada do interior para ouvir falar de fulano de tal que havia descoberto uma tumba vilanovense com seu trator, ou de outra pessoa que, cavando na necrópole certa noite, havia descoberto um colar de ouro tão longo que poderia dar a volta completa em uma casa. Ou outra pessoa que ficou rica na Suíça com a venda de um vaso etrusco que encontrou em seu jardim. (...) A vida ao meu redor era composta de diferentes partes: uma solar, contemporânea e movimentada, outra noturna, misteriosa e secreta. Havia muitas camadas, e todos nós as experimentávamos: bastava cavar alguns centímetros do solo, e o fragmento de um artefato feito pelas mãos de outra pessoa aparecia entre os seixos. De que época ele estava olhando para mim? Bastava entrar nos celeiros e nas adegas ao redor, para perceber que eles já haviam sido outra coisa: tumbas etruscas, talvez, ou abrigos de eras passadas, ou locais sagrados. A proximidade entre o sagrado e o profano, entre a morte e a vida, que caracterizou os anos em que cresci, sempre me fascinou e deu uma medida à minha maneira de ver. É por isso que finalmente decidi fazer um filme que conta essa história em camadas, essa relação entre dois mundos, a última parte de um tríptico sobre uma área local cuja atenção está concentrada em uma questão central: o que ela deve fazer com seu passado? Como dizem alguns ladrões de túmulos, em nosso caminho são os mortos que dão a vida”.
No elenco temos Isabella Rossellini e a brasileira Carol Duarte, protagonista de “A Vida Invisível” e “Missão Perséfone”.
Exibido em Cannes, recebeu o prêmio do público de Melhor Longa-Metragem Estrangeiro de Ficção.
O que disse a crítica: Pâmela Eurídice do site Cineset avaliou com 3,5 estrelas, ou seja, bom. Disse: “Um destaque especial que há (...) na produção é a forma como esta valoriza a cultura italiana, não apenas pelo realce que dá por ser um dos berços da história contemporânea e, portanto, conter traços arqueológicos em cada metro quadrado, mas pela homenagem que a diretora faz a outros cineastas que colocaram o país como um dos expoentes do audiovisual. Em cada cena dançante há um pouco de Fellini e até mesmo Pasolini. E nas mágoas de Arthur, há as lágrimas de uma Gelsomina. Assim como nas esperanças de Itália (Carol Duarte) vê-se o otimismo de Cabíria. Há uma atmosfera projetada por Rohrwacher que em muitos momentos emula os sentimentos despertados pelo autor de ‘A Doce Vida’”.
Arthur Gadelha do site Ensaio Crítico avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Escreveu: “’Senhor... Está sonhando?’, pergunta o comissário do trem para despertar Arthur de suas memórias sobre alguém que morreu mas que ele ainda procura. Esse diálogo ainda no começo, quando saltamos do aconchego de um sonho para a aflição sem fim das paisagens, é um resumo tão melancólico quanto fascinante de tudo o que ‘La Chimera’ consegue ser, da imagem de um mundo condenado a esquecer seu próprio tempo ao movimento dos fantasmas que simplesmente nunca couberam debaixo da terra”.
O que eu achei: Se quimera, como dizem, é uma utopia oriunda da imaginação, do sonho ou da fantasia, o que temos aqui é um grupo de pessoas que coabitam o mesmo espaço e tempo, elas até se esbarram umas com as outras, possuem algum vínculo, mas cada uma carrega sua história e seu desejo particular de ser feliz de alguma forma. As histórias correm então basicamente em paralelo. O inglês Arthur (Josh O’Connor) quer reencontrar sua falecida amada. A mãe dela, Flora (Isabella Rossellini), ainda não acredita que a filha morreu e também espera revê-la. Os amigos de Arthur – que possui o dom de encontrar tumbas enterradas onde há objetos de valor arqueológico – desejam enriquecer contrabandeando as peças. E Italia (interpretada pela atriz brasileira Carol Duarte) só quer um lugar para criar seus filhos. Pensando nos filmes anteriores - "As Maravilhas" (2014) e “Lazzaro Felice” (2018) – que vi da diretora, é notória a atmosfera leve que permeia todos eles. Todos os personagens são pessoas simples, cidadãos aparentemente comuns, retratados de forma delicada e singela, com suas histórias nos hipnotizando do começo ao fim. Achei interessante saber que a cineasta nasceu justamente na cidade de Fiesole (Itália), um lugar onde até hoje se encontram com facilidade estruturas que datam dos povos etruscos e romanos, então essa referência pessoal que ela trouxe para o filme pode ser apontada como um diferencial. Poético ao extremo, tramitando entre vivos e mortos, entre o sagrado e o profano, ele termina com várias possíveis interpretações, provocando em nós espectadores a pergunta: será que todos temos uma quimera? Qual será a sua? É filme pra ver e refletir.