4.8.24

"Ulysse" - Agnès Varda (França, 1982)

Sinopse: Na costa do mar, uma cabra, uma criança e um homem nu. Essa é uma fotografia tirada em 1954 por Agnès Varda. A cabra estava morta, a criança se chamava Ulysse e o homem estava sem roupas. A partir dessa imagem congelada, o filme explora o real e o imaginário.
Comentário: Agnès Varda (1928-2019) foi uma cineasta e fotógrafa belga, radicada na França. Assisti dela o filme “Cléo das 5 às 7” (1962) e os documentários "Os Catadores e Eu" (2000), "As Praias de Agnès" (2008) e "Visages, Villages" (2016) feito em parceria com o fotógrafo JR.
Antes de começar a fazer filmes, Agnès trabalhava como fotógrafa - e isso certamente teve grande impacto em seus curtas e longas-metragens. Não é raro que imagens estáticas apareçam nos filmes da diretora, atuando tanto como elementos puramente simbólicos quanto efetivamente moldando a narrativa. Às vezes, ela chega até mesmo a mesclar imagens estáticas com imagens em movimento.
Swapnil Dhruv Bose do site Far Out Magazine nos conta que "Embora Agnès Varda seja considerada uma das melhores cineastas da história, ela nem sempre quis se tornar uma. Na verdade, ela inicialmente queria trabalhar como curadora e estudou história da arte antes de eventualmente se aventurar na fotografia. Foi essa formação como fotógrafa que definiu sua visão do cinema, existindo em algum lugar entre as distintas estruturas do documentário e da ficção".
Neste documentário de 1982 chamado "Ulysse" o que ela faz é basicamente se debruçar sobre uma fotografia tirada por ela mesma no dia 09 de maio de 1954. Na foto aparecem um homem nu de costas, um menino e uma cabra grávida morta num cenário de praia.
Segundo Bose, "durante uma conversa com o Film Comment, Varda disse: 'Aprendi muito sobre como as pessoas podem olhar para uma imagem e carregá-la com sentimentos diferentes - a mesma imagem. Mesmo em 'Ulysse'... deixo a foto na tela por 15 a 20 segundos - sem nada - para que, como espectador, você comece a questionar: Qual é o objetivo? A cabra está morta? Para onde essa cena está olhando? Para onde o homem está olhando? Então você constrói sua própria visão, impressões, história. Talvez você ache que é bonito ou sem sentido, e isso é muito importante. Foi nisso que trabalhei neste filme. Mesmo se eu fizer minha narração, que o leva aqui e ali, a imagem volta sem palavras, e você a olha de novo'. E acrescentou: 'Veja, uma das minhas interpretações é que é uma imagem de um pai e uma mãe, como a mãe deitada com uma barriga grande, que é uma das imagens da maternidade, quente e desconfortável. E o homem de pé, olhando para o futuro e a criança entre eles. O que me impressionou é que quando aquela criança [Ulysse] fez o desenho depois da foto, ele juntou as figuras para que o garotinho estivesse tocando o homem. Na foto, o menino está separado do homem. É tão interessante: ninguém quer ficar sozinho. E aquela criança cresceu e se tornou um homem que não se lembra daquele dia, mas aquela criança estava dizendo algo'.
Ulysse, embora tenha apenas 20 minutos de duração, é uma obra de escopo surpreendente que demonstra perfeitamente como as imagens são versões cristalizadas da realidade que são deixadas para trás pela marcha implacável do tempo. Embora a fotografia de Varda sempre represente algo específico dentro do contexto de sua jornada como artista, os sujeitos da mesma fotografia se esqueceram completamente de sua existência. Foi o documentário de Varda que os confrontou com o conflito fundamental entre a concretude da evidência empírica e a abstração da memória humana.
Combinando detalhes sobre sua vida pessoal e as pessoas que ela conhecia com filmagens de arquivo dos desenvolvimentos sociopolíticos da época, 'Ulysse' é uma obra importante que prova que uma imagem completa só pode ser formada olhando para a mesma coisa por lentes diferentes".
O que eu achei: Fazia tempo que eu estava interessada em assistir a esse curta-metragem (20m) feito por Varda em 1982 acerca de uma fotografia tirada por ela em 1954, ou seja, 28 anos antes. Na foto aparecem um homem nu, um menino e uma cabra grávida morta numa praia perto de Calais na França. Para entender mais sobre a relação daquela fotografia com a realidade da década de 1980, Varda saiu atrás do homem e do menino e perguntou a eles sobre a imagem. Outra coisa que ela fez foi levantar em periódicos da época o que houve naquele dia do click, ou seja, quais os acontecimentos importantes que rolavam no mundo. O homem é Fouli Elia - em 1982 ele aparece creditado como diretor de arte de uma famosa revista francesa chamada "Elle". O menino é Ulysse Lorca, filho de um casal de espanhóis que morava na Rue Daguerre, pertinho de Varda - em 1982 ele é um adulto dono de uma livraria. Ela então entrevista a todos: o homem, o menino, a mãe do menino e algumas crianças. Interessante que nem o homem e nem o próprio Ulysse se lembravam daquela imagem. Varda brinca então com a ideia da fotografia como uma máquina do tempo pessoal e em como as imagens - e, portanto, a arte - podem significar algo diferente para todos nós. É um documentário rápido, simples, mas que pode despertar o interesse de pessoas ligadas à fotografia e à semiótica. Interessante.