25.8.24

“Eu, Capitão” - Matteo Garrone (Itália/Bélgica/França, 2023)

Sinopse:
Dois jovens primos chamados Seydou (Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Fall), ansiando por um futuro melhor, decidem deixar Dakar, no Senegal, e partir rumo à Europa em uma épica aventura, enfrentando uma série de desafios do deserto, do mar e da própria essência humana.
Comentário: Matteo Garrone (1968) é um diretor, roteirista e produtor italiano. Ele já dirigiu 11 longas, além de curtas-metragens e comerciais de tv. Assisti dele os ótimos "Gomorra" (2008) sobre a máfia italiana e "Dogman" (2018), além do curioso "Pinóquio" (2019) que é bem mais soturno que os desenhos da Disney e mais fiel ao original. Desta vez vou conferir “Eu, Capitão” (2023) que representou a Itália no Oscar concorrendo à Melhor Filme Internacional.
Raquel Carneiro da Revista Veja nos conta que “O cineasta italiano Matteo Garrone se surpreendeu quando ouviu um refugiado africano chamar a brutal viagem clandestina até a Europa de ‘aventura’. O termo de conotação positiva não pare­cia apropriado aos que fogem de guerras e da fome, num trajeto insalubre pelo Deserto do Saara e em embarcações abarrotadas no Mar Mediterrâneo - périplo [significa circuito ou viagem, de curta ou longa duração, que geralmente engloba diferentes paragens ou etapas] que dura meses e no qual muitos perdem a vida. Ainda assim, o diretor aderiu ao ponto de vista dos viajantes - com resultado notável - ao realizar ‘Eu, Capitão’ (...). ‘O que eu fiz foi dar forma visual às histórias que me foram contadas como épicos, e não pela ótica europeia’, disse Garrone a Veja.
Na trama, o adolescente senegalês Seydou, interpretado pelo jovem estreante Seydou Sarr, e o primo Moussa (Moustapha Fall) sonham em ser músicos. Em Dakar eles são pobres, mas não miseráveis. Educados e amados, os garotos almejam a vida das estrelas que veem no TikTok e miram a Europa como destino para essa realização. Ao contrário dos que entram e saem do velho continente por vias legais, os dois não desfrutam o mesmo privilégio - o que os coloca nas mãos dos traficantes de pessoas. ‘O deslocamento humano por uma vida melhor é histórico e deveria ser um direito universal’, diz Garrone sobre a motivação por trás do filme.
Traçar os contornos de realidades difíceis é uma habilidade que o diretor provou ter em 2008, com ‘Gomorra’, a acachapante adaptação do livro de Roberto Saviano sobre a violenta máfia de Nápoles. De lá para cá, Garrone passou a adicionar pitadas de realismo mágico à crueza da vida real. Assim, ‘Eu, Capitão’ se firma como uma pérola entre os muitos filmes recentes que observam a crise migratória europeia. A começar pela autenticidade do roteiro, escrito ao lado de refugiados e honrando as línguas originais de cada trecho: Seydou fala em cena o dialeto local wolof, além de francês, inglês e italiano.
Os dois jovens atores, que nunca haviam saído do Senegal, não receberam o roteiro completo, experimentando na prática a viagem sem saber o desfecho: os protagonistas enfrentam adversidades climáticas e também a crueldade humana dos que se aproveitam de vulneráveis. As cenas dignas de um pesadelo são amenizadas por toques de fantasia onírica - algumas envolvendo seres míticos africanos. Mas a coragem e o carisma dos dois garotos é o que cativa: apesar de o título do filme ganhar uma explicação didática ao fim, o desejo humano de ser capitão da própria vida sobressai - mesmo que, para isso, seja necessário encarar uma odisseia invisível”.
O que disse a crítica: Caio Coletti do site Omelete avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Ele elogiou os protagonistas Seydou Sarr e Mustapha Fall que são atores de primeira viagem, a fotografia assinada por Paolo Carnera, que “cria imagens inesperadas diante da paisagem desértica” e a forma como Garrone “entrelaça os elementos mitológicos e voos de fantasia dos protagonistas à jornada (...) bem pesquisada e fundamentada em realidade que compõe a base do roteiro. O que Coletti não gostou foi da forma como a experiência subjetiva dos protagonistas foge das implicações éticas da proposta transformando a tragédia dos imigrantes em algo estetizável que não é culpa de ninguém”.
Antônio Lira da Revista O Grito!, por sua vez, avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: a proposta de Garrone “era conscientizar, mostrar a humanidade dos migrantes ao público mundial”. Segundo ele “a parte inicial do filme, embora passe rápido, transmite ao espectador a sensação de lar e cuidado que acompanha o olhar de Seydou durante toda a viagem. Sempre que ele se dá conta da situação desesperadora de sua jornada, seu olhar encontra alguma lembrança de casa que lhe devolve a ternura”. Para ele, “esse é um dos destaques do filme: a atuação de Seydou Sarr. O ator senegalês é mestre na atuação não verbal, e entrega nas expressões uma mescla de sentimentos (...). A viagem é bem representada no filme, com planos super abertos no deserto do Saara e no mar Mediterrâneo, uma forma clássica de nos mostrar a fragilidade das pessoas em situações de completo abandono e descaso”.
O que eu achei: A obra é de uma delicadeza sem fim. Apesar de mostrar os horrores e perigos que uma travessia ilegal de imigrantes do Senegal para a Sicília trás para os envolvidos, a trama entrelaçada com sonhos e delírios do protagonista e com a presença de seres mitológicos africanos, ameniza o desconforto do espectador. O final, relativamente feliz, recebeu críticas por passar a ideia de que valeu a pena passar por todos esses perrengues para chegar à Itália. O filme termina aí, mas quem disse que chegar vivo ao destino implica em acolhida ou num futuro melhor? Provavelmente o destino de todos que conseguiram sobreviver é ir para algum campo de refugiados até a deportação, mas isso o filme não mostra. Como o filme é italiano, o lugar de fala do Garrone acabou não ajudando muito. É um filme extremamente bem feito, os atores são ótimos, Garrone é um cineasta cuja filmografia nos mostra um pensamento crítico e consciente, mas o ponto de vista branco europeu nos deixa com uma pequena pulga atrás da orelha. Afinal, qual mensagem o filme quer passar? Fica a pergunta.