9.9.23

“A Esposa de Tchaikovsky” - Kirill Serebrennikov (Rússia/França/Suíça, 2022)

Sinopse:
Antonina Miliukova (Alyona Mikhaylova) é uma jovem aristocrata. Ela poderia ter tudo o que quisesse, mas sua única obsessão é se casar com Pyotr Tchaikovsky (Odin Lund Biron). A única razão pela qual o compositor finalmente pode aceitar essa união é para acabar com os rumores sobre ele. Sem sentir amor e culpando-a por seus infortúnios e colapsos, as tentativas de Tchaikovsky de se livrar de sua esposa são brutais. Consumida pelos seus sentimentos por ele, Antonina decide suportar e fazer o que for preciso para ficar com o seu grande amor.
Comentário: Kirill Serebrennikov é um diretor russo. Entre 2012 e 2021 ele foi diretor artístico do Gogol Center. Realizou, entre outros, os longas-metragens “Ragin” (2004), “Playing the Victim” (2006), “Yuriev Den” (2008), “Traição” (2012), “O Estudante” (2016), “Verão” (2018) e “A Febre de Petrov” (2021), exibidos e premiados em festivais como Cannes, Veneza, Locarno, San Sebastián, Tribeca e Karlovy Vary. Assisti dele apenas o filme “Verão” que contava a história de Viktor Tsoi, um músico de rock soviético, líder da banda Kino, considerada uma das pioneiras do rock russo. 
Neste “A Esposa de Tchaikovsky”, a história vai girar em torno de outro músico, o compositor russo Pyotr Tchaikovsky. Para quem não sabe, Tchaikovsky (1840-1893) foi um compositor do período romântico, cujas obras estão entre as mais populares do repertório clássico. Ele foi o primeiro compositor russo a conquistar fama internacional, sua carreira foi impulsionada por sua participação como regente convidado em outros países da Europa e nos Estados Unidos. Ocorre que apesar de seus muitos sucessos musicais, a vida de Tchaikovsky foi pontuada por crises pessoais e depressão. Fatores que contribuíram para isso incluem a sua separação precoce de sua mãe, seguida da morte prematura desta, a morte de seu amigo e colega Nikolai Rubinstein, seu desastroso casamento e o colapso do único relacionamento duradouro de sua vida adulta, que foi sua associação de treze anos com a sua protetora, a rica viúva Nadejda von Mekk. Sua homossexualidade, que ele manteve em sigilo por temer que causasse danos à reputação de seus amigos e família, tradicionalmente tem sido considerada um fator importante. A morte súbita de Tchaikovsky, aos 53 anos, é geralmente atribuída à cólera, mas existe um debate em andamento sobre se essa foi de fato a causa da sua morte, e se a sua morte foi acidental ou auto infligida. O site Wikipédia nos conta que “discussões a respeito da sexualidade de Tchaikovsky talvez tenham sido as mais intensas sobre qualquer compositor no século XIX, e certamente o foram em relação a qualquer compositor russo de seu tempo. Esse tema é objeto de considerável controvérsia, envolvendo esforços da família de Tchaikovsky e do governo russo para retratá-lo como heterossexual, e análises que argumentam categoricamente o contrário, mas sem apresentar novas evidências. Apesar dessas questões, em sua maioria os biógrafos de Tchaikovsky concordam que ele era homossexual. Por longos períodos, ele procurou ativamente a companhia de outros homens em seu círculo, ‘associando-se abertamente e estabelecendo conexões profissionais com eles’, e existem fartos indícios de que ele manteve relacionamentos com eles, incluindo com o músico Iosif Kotek, por volta da época do seu casamento. Porções relevantes da autobiografia de seu irmão Modest tratam da orientação sexual do compositor, assim como cartas anteriormente suprimidas pelos censores soviéticos, nas quais Tchaikovsky escreveu abertamente sobre isso, sobretudo quando em correspondência com Modest”. 
O foco do filme se dá exatamente no seu desastroso casamento que, de fato, se deu em 1877, aos 37 anos, com sua ex-aluna, Antonina Miliukova, com quem permaneceu casado por apenas dois meses e meio. O filme se baseia em fatos reais, entretanto, como nos diz Luiz Zanin Oricchio do site Terra, “quem espera realismo deve revisar suas expectativas desde as cenas iniciais, quando em seu próprio velório um defunto desperta da morte para repreender a viúva e dizer o quanto a odiava”. Segundo ele, o motivo pelo qual Tchaikovsky se casa com Antonina, foi “para calar o falatório em torno de sua homossexualidade. [Ele] não lhe promete uma paixão febril, mas ‘um amor calmo, sereno, de irmã e irmão’. Isto é, sem sexo. Espiritual. Apesar de ter concordado com os termos do matrimônio, Antonina cada vez mais passa a exigir de Tchaikovsky o cumprimento de suas obrigações. A pressão torna-se insuportável. O que era para ser o ‘amor fraterno’, previsto de início, transforma-se em ódio e repugnância. Após seis semanas de tormento, Tchaikovsky abandona a mulher e busca ares amenos para dar seguimento à carreira artística que sente prejudicada pela união. Antonina obstina-se. Nega-se a conceder o divórcio. Continua apaixonada por ele, de maneira terminal. O filme segue de perto a deterioração mental que nela se processa de maneira implacável, progressiva e cruel. Com ênfase diferente, a mesma história havia sido contada pelo britânico Ken Russell em ‘Delírio de Amor’ (1971). O ponto de vista de Russell era o do homem; o de Serebrennikov, o da mulher. Russell é barroco e delirante; Serebrennikov, mais contido e onírico. O filme atual [segundo ele] é melhor, mais sutil e rigoroso que o de 50 anos atrás”.
O que disse a crítica: Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou como regular/bom. Escreveu: “Uma das coisas mais básicas ao se analisar um filme é procurar indícios para definir, de cara, se ele prioriza as jornadas íntimas/pessoais ou se trata, basicamente, as figuras humanas como símbolos/decorrências de uma circunstância que os define (para o bem ou para o mal). Se fosse situado no primeiro time, ‘A Esposa de Tchaikovsky’ poderia ser entendido como carente de subsídios à investigação do aspecto humano. No entanto, ele pertence à segunda categoria e, sendo assim, subordina a singularidades das pessoas ao diagnóstico de uma sociedade doente por causa do obscurantismo. Antonina não está em cena para gerar admiração, sendo o lado mais sombrio de sua personalidade outro subproduto da Rússia do século 19. É difícil definir se ela é uma mulher obstinada (o que é bom) ou simplesmente teimosa e insistente (o que é ruim), sendo a diferença fundamental entre essas duas naturezas parecidas algo a ser considerado. E para essa dinâmica funcionar é essencial uma intérprete com o talento e a disposição de Alyona Mikhaylova a fim de se equilibrar habilmente sobre essa linha tênue. Os demais membros do elenco cumprem bem seus papeis, mas apenas a atriz russa sobressai – um efeito colateral do tipo de abordagem menos personalista e mais contextual, com certeza. Às vezes o ritmo é comprometido por repetições nem sempre produtivas, mas o saldo é positivo por conta da capacidade que o filme tem de armar um circo, encarar suas ambivalências e ainda se posicionar”. 
Francisco Carbone do site Cenas de Cinema avaliou como ótimo. Disse: “Que saibamos, conforme se adiante, cada vez menos a diferença entre o que é concreto e o que é força abstrata; é uma escolha de condução da direção e do roteiro que eleva o resultado de suas imagens. ‘A Esposa de Tchaikovsky’, vai além do que comumente é destrinchado no campo das biografias, porque abraça o que a construção do plano pode causar enquanto estrutura de diegese. De posse desse caleidoscópio que une frustração sentimental, delírio do tempo e explosão de uma condição feminina que se recusava a aceitar as limitações impostas, nasce um filme que recusa o poder da exposição dos fatos. Na embriaguez dos sentidos que a imagem proporciona, movendo-se pelos quadros com uma paixão avassaladora e criando uma contradição pertinente, o filme trata da completa ausência de doação romântica com uma explosão de sentimentos e sensações”.
O que eu achei: Eu que já havia assistido o filme “Verão” do mesmo diretor, estava cética a respeito deste. O filme, de fato, tem aquela pegada de minissérie televisiva, com começo, meio e fim e uma narrativa mais que didática. Porém a fotografia belíssima, com uma luz correta e enquadramentos certeiros – há tomadas aéreas lindíssimas -, acaba tornando a experiência um tanto agradável. O resultado, aliás, me lembrou muito a estética dos filmes do Joe Wright, como “Orgulho e Preconceito” (2005), “Desejo e Reparação” (2007) ou mesmo “Anna Karenina” (2012). Longe de ser uma biografia sobre Tchaikovsky, o filme tem como personagem principal, Antonina Miliukova, interpretada com maestria pela linda atriz Alyona Mikhaylova. O centro da atenção é ela, seu amor e seu sofrimento. O filme sublinha a crueldade de uma época em que a homossexualidade precisava ser escondida como uma vergonha pública e camuflada em infelizes casamentos de conveniência. Ela casou sabendo que seria apenas um casamento de fachada, que levaria uma vida como dois irmãos por conta da homossexualidade dele, mas inocentemente seguiu obstinada em obter seu amor até o final. O compositor morre de cólera em 1893. Ela ainda vive até o alvorecer da Revolução Russa, em 1917, quando falece num sanatório para pessoas com transtornos psíquicos. Se ela figura nos livros de história apenas como uma ninfomaníaca e infeliz esposa de um grande homem, o filme, de alguma forma, recobra sua complexidade psicológica. Poderia ser mais curto - dura 143 minutos - mas acaba valendo pela história comovente de uma mulher, seu mundo e sua abnegação.