29.12.25

“Na Presença de Um Palhaço” – Ingmar Bergman (Suécia/Dinamarca/Noruega/Itália/Alemanha,1997)

Sinopse:
Outubro de 1925. O engenheiro Carl Akerblom (Börje Ahlstedt), fervoroso admirador de Schubert, é internado em um hospital psiquiátrico em Uppsala. De seu quarto, ele alimenta o revolucionário projeto de inventar o cinema falado. Com a ajuda do professor "louco" Osvald Vogler (Erland Josephson), o diretor Akerblom improvisa uma história de amor contando os últimos dias de Schubert.
Comentário: Ingmar Bergman (1919-2007) é um diretor de cinema sueco famoso pela abordagem psicológica que ele dá a seus filmes. Sua produção engloba em torno de uns 60 filmes. Assisti dele 22 filmes, dentre eles as obras-primas "O Sétimo Selo" (1957), "Morangos Silvestres" (1957), "Persona" (1966), "O Ovo da Serpente" (1977) e "Sonata de Outono" (1978) e a minissérie “Fanny e Alexander” (1982). Desta vez vou conferir "Na Presença de Um Palhaço" (1997), uma produção feita para a TV sueca cujo título original sueco “Larmar Och Gör Sig Till” deriva de “Macbeth”, Ato V, Cena V de Shakespeare.
Luiz Zanin Oricchio do Estadão nos conta que o filme “começa em 1925 num hospital psiquiátrico, onde está internado Carl Akerblom (Börje Ahlstedt), acusado de haver espancado a noiva, Pauline (Marie Richardson). Na instituição, ele faz amizade com Osvald Vogler (Erland Josephson) e ambos decidem colocar em pé um projeto tido por delirante - fazer o primeiro filme sonoro da história. A data é importante. Em 1925, o cinema era novo e mudo. ‘O Cantor de Jazz’, tido como primeiro filme com falas e canto sincronizados, viria a público em 1927.
O expediente da dupla Akerblom e Vogler é engenhoso. O filme rodado por eles é projetado numa tela, de maneira convencional. Atrás dela, atores e atrizes dizem as falas dos seus personagens e tocam piano quando a cena exige. A história imaginada remete ao final da vida do compositor Franz Schubert, apaixonado por uma prostituta e descobrindo-se portador de sífilis. Obviamente, a morte espreita essa meditação sobre a vida, o amor e a arte. Ela toma o formato de um misterioso palhaço branco, que aparece em determinadas ocasiões. No making of [do DVD], Bergman explica que, na infância, os palhaços de circo o aterrorizavam. Sonhava com esse palhaço branco que, para ele, significava a morte de maneira bem concreta.
Mas o filme é, basicamente, uma reflexão afetiva em torno do cinema e do teatro, as duas artes exercidas por Bergman. O teatro foi sua primeira e última paixão. Na verdade, acompanhou-o ao longo da vida. Com o cinema, começou como roteirista até estrear em 1945, com ‘Crise’. Com o cinema, conheceu o ápice do seu reconhecimento internacional, pois arte da reprodutibilidade técnica, é ele que viaja e não o teatro. Ao morrer em 2007, Bergman foi saudado como um dos grandes criadores do século. Como falar dos anos 1900 sem lembrar obras como ‘Morangos Silvestres’, ‘O Sétimo Selo’, ‘Persona’, ‘Gritos e Sussurros’, ‘Cenas de Um Casamento’ e tantos outros?
No entanto, sentia-se em casa no universo do teatro. Já no final de ‘Fanny & Alexander’ declara seu amor a esse mundo acolhedor, quase uterino, ao qual iria voltar e se recolher, depois de achar que não tinha mais condições físicas para dirigir um filme. É do diálogo entre essa arte nova do século 20 (formalizada, pelos irmãos Lumière, em 1895) e a ancestral arte da representação que Bergman tira sua força única. Por isso, não surpreende o espectador atento o desenvolvimento de ‘Na Presença de Um Palhaço’, quando se constata que, na falência da técnica, a velha arte da representação pode ser exercida, com toda sua plenitude, mesmo em suas formas mais simples. Se em sua lucidez, Bergman não via nenhuma saída para o destino trágico do homem, era sempre pela arte que encontrava, se não uma reconciliação, pelo menos uma fresta de esperança. Pequeno clarão, a iluminar a farsa trágica de ‘Na Presença de Um Palhaço’”.
O que disse a crítica 1: Patrick Z. McGavin do Chicago Reader achou bom. Escreveu: “Embora ‘Na Presença de um Palhaço’ não tenha emoção visual, na melhor das hipóteses é uma meditação comovente sobre o nascimento da arte. Também funciona como uma vitrine para a brilhante companhia de atores de Bergman; são brincalhões e curiosos, demonstrando uma profunda necessidade de expressão e de faz-de-conta para lutar contra o isolamento e as restrições impostas. A música de Schubert, maravilhosamente interpretada por Kabi Laretei, está bem integrada”.
O que disse a crítica 2: JC do site A Janela Encantada disse: “Sempre com a presença fantasmagórica do palhaço, que espreita e que só Carl vê (a presença da morte?), Bergman parece caminhar entre uma homenagem aos primórdios do cinema e a sua preferência pela representação em palco, mais crua (note-se como Carl tem de lembrar aos espectadores o que deveriam ver no cenário), mas mais visceral e real. Era Bergman a mostrar o seu próprio caminho, de um cinema mais artificioso para os dramas de câmara e o teatro filmado do final da sua carreira, num filme em que a maioria dos personagens parece ligar-se a filmes antigos do realizador”.
O que eu achei: “Na Presença de um Palhaço” (1997) é um filme realizado originalmente para a televisão sueca e estruturado em quatro partes. Ambientado em um hospital psiquiátrico de Uppsala, em 1925, o longa acompanha a tentativa de realização de um filme falado em um momento de transição histórica do cinema, quando o som ainda era novidade. A proposta é curiosa: atores se reúnem para dublar ao vivo os personagens de um filme mudo, criando uma encenação híbrida que mistura teatro e cinema. Como em grande parte de sua obra, Bergman se interessa menos pela trama em si e mais pelas camadas simbólicas que ela permite explorar. Aqui, o diretor reflete sobre o ato de representar, dentro e fora do palco, e sobre a fragilidade da identidade humana, temas recorrentes em seu trabalho. O ambiente do hospital psiquiátrico funciona como metáfora para esse jogo de máscaras, em que sanidade, criação artística e delírio se misturam de maneira deliberadamente ambígua. O filme carrega um tom mais contido, quase teatral, o que reforça sua origem televisiva e o aproxima mais de uma peça encenada do que de um drama cinematográfico convencional. Ainda que seja um bom filme, “Na Presença de um Palhaço” está longe de figurar entre os trabalhos mais impactantes de Bergman. Falta-lhe a força emocional e a densidade dramática de obras-primas como "O Sétimo Selo" (1957), "Morangos Silvestres" (1957), "Persona" (1966), "O Ovo da Serpente" (1977) ou “Sonata de Outono” (1978). Ainda assim, é uma obra interessante, especialmente para quem deseja compreender melhor as inquietações tardias do cineasta e sua relação profunda com o teatro, a representação e o próprio ato de criar. Um filme bom, instigante, mas claramente menor dentro de sua monumental filmografia.