
Comentário: Luca Guadagnino (1971) é um diretor, produtor e roteirista de cinema italiano. Seus filmes são caracterizados pela complexidade emocional, o erotismo e os visuais suntuosos. Ele recebeu vários prêmios, incluindo um Leão de Prata, além de indicações ao Oscar e três prêmios BAFTA. São dele os filmes “Um Sonho de Amor” (2009), “Suspíria - A Dança do Medo“ (2018), “Até Os Ossos“ (2022) e “Rivais“ (2023), dentre outros. Assisti dele o ótimo “Me Chame Pelo Seu Nome” (2017) e o bom “Queer” (2024). Desta vez vou conferir "Depois da Caçada" (2025).
Laysa Zanetti do Estadão escreveu que o filme "é uma análise provocadora sobre o movimento Me Too e a 'cultura de cancelamento' de personalidades envolvidas em acusações de abuso ou assédio, dividindo opiniões e despertando controvérsias".
Ela nos conta que "O longa foi tema de debates após estreia no Festival de Veneza, e alguns críticos e jornalistas sentiram que a história era, de certa forma, datada e potencialmente prejudicial a mulheres. Segundo a Variety, uma jornalista presente na coletiva de imprensa, (...) disse que muitos participantes do festival sentiam que o longa 'revive velhos argumentos' usados para diminuir vítimas e não acreditar em mulheres que falam sobre assédio sexual. Questionada sobre a possibilidade de o filme ser prejudicial ao movimento feminista por 'descredibilizar' essas narrativas e denúncias, [Julia] Roberts alegou que a intenção é gerar debate. (...)
O espectador mais atento vai notar uma fonte familiar nos créditos de abertura de 'Depois da Caçada', uma letra usada por Woody Allen em alguns de seus filmes mais notórios. O uso não é apenas uma coincidência. A fonte foi escolhida de forma proposital, assim como os primeiros minutos do filme, que reprisam um estilo comum ao cineasta de 'Noivo Neurótico, Noiva Nervosa' (1977). Allen, vale lembrar, foi acusado de abusar sexualmente de sua filha adotiva, Dylan Farrow, quando ela tinha sete anos. O diretor sempre negou as acusações, e foi considerado inocente. Guadagnino confirmou as referências a Woody Allen na mesma coletiva de imprensa em Veneza. (...) As acusações contra Allen foram feitas pela primeira vez em 1992, e as investigações não encontraram provas contra o cineasta. Mais tarde, já adulta, Dylan voltou a fazer alegações. Desde o auge do movimento Me Too, a reputação do diretor foi prejudicada, e ele enfrenta dificuldades para conseguir financiamento para seus filmes. (...)
Os singelos 42% de aprovação no agregador de críticas Rotten Tomatoes indicam o quanto a imprensa está dividida quanto ao resultado deixado por 'Depois da Caçada'. Embora o filme consiga capturar a complexidade desejada por Guadagnino, muitos analistas acreditam que se trata de uma provocação esvaziada e verborrágica".
O que disse a crítica 1: Guilherme Jacobs do site Omelete avaliou com 2 estrelas, ou seja, regular. Ele disse: "'Depois da Caçada' tropeça em sua própria história de #MeToo" e o "filme (...) não tem curiosidade suficiente sobre seus próprios debates". Escreveu: "Se a abertura de 'Depois da Caçada' ainda se empresta aos instintos de diversão perversa do diretor, que por tabela nos envolve um fascínio mórbido por figuras questionáveis, quando entramos neste território mais escorregadio, Guadagnino precisa guardar suas facas. Seja por não saber como encarar o material, ou, francamente, por não acreditar que as ideias discutidas no roteiro não são tão apetitosas quanto (...) ver Julia Roberts bem-vestida e olhando com tesão para Andrew Garfield, também bem-vestido".
O que disse a crítica 2: A crítica Alissa Wilkinson do New York Times, achou o filme desconfortável, mas pelos motivos errados; parecia que um roteiro melhor havia sido simplesmente grampeado a um comentário político, embora algumas ideias interessantes sobre filósofos versus psicoterapeutas tenham surgido. Apesar das falhas, ela considerou que "vale a pena assistir".
O que eu achei: Existe uma citação atribuída ao chanceler alemão Otto von Bismarck que diz: “As pessoas nunca mentem tanto quanto depois de uma caçada, durante uma guerra ou antes de uma eleição". É dessa máxima que nasce o título “Depois da Caçada”, filme de Luca Guadagnino que se estrutura justamente em torno da pergunta central: quem está dizendo a verdade? A aluna que acusa o professor de abuso ou o professor que afirma ser vítima de uma falsa denúncia usada para encobrir um caso de plágio? A história se passa em Yale, no departamento de filosofia, e tem como eixo a figura da professora Alma Imhoff (Julia Roberts), chamada a ocupar o papel incômodo de juíza moral da situação. A aluna acusadora é sua orientanda; o acusado, seu melhor amigo. Soma-se a isso um trauma mal resolvido do passado da própria Alma - um episódio de assédio que ela mesma jamais conseguiu compreender plenamente - e o terreno está armado. O filme nos coloca diante de um impasse ético em que não há acesso à verdade factual, apenas versões e percepções. Uma das grandes qualidades do longa é justamente sua capacidade de manter a atenção do espectador durante mais de duas horas. O roteiro é verborrágico, denso e exigente, mas nunca disperso. Cada diálogo parece carregar peso e cada detalhe pode ganhar relevância mais adiante. O trio protagonista formado pelos atores Julia Roberts, Ayo Edebiri e Andrew Garfield entrega atuações muito sólidas, equilibrando contenção e tensão emocional com precisão. A trilha sonora, por outro lado, é um elemento mais ambíguo. Embora a seleção musical seja sofisticada e inclua canções de ótimo gosto – muitas delas brasileiras - , em alguns momentos ela parece competir com o próprio filme, chamando atenção demais para si e quebrando a imersão em vez de aprofundá-la. O maior ponto de debate, porém, está na ambição temática da obra. “Depois da Caçada” tenta dar conta de muitos assuntos simultaneamente: a cultura woke que se estabeleceu com força nas universidades, o movimento #MeToo, a cultura do cancelamento, disputas de poder, relações geracionais, gênero, raça, ética acadêmica e autoria intelectual. Tudo isso é colocado em ebulição, mas nem sempre plenamente desenvolvido. O roteiro de estreia de Nora Garrett é hábil em criar tensão e provocar desconforto, mas hesita quando se aproxima de conclusões mais contundentes. Ainda assim, talvez essa seja justamente a proposta do filme. Ao recusar respostas fáceis, ele transfere ao espectador o peso do julgamento. A verdade nunca se revela por completo; o que resta são narrativas concorrentes, afetadas por interesses, medos e convicções pessoais. Nesse sentido, “Depois da Caçada” não pretende solucionar o debate, mas expô-lo, funcionando como um espelho incômodo de um tempo em que certezas morais parecem cada vez mais frágeis. Ao final, não há veredicto possível e talvez esse seja seu maior problema: ao optar por uma ambiguidade radical ao tratar de um caso de assédio entre um homem cis branco em posição de poder e uma aluna negra homossexual, o filme caminha deliberadamente por um terreno perigoso, onde a tentativa de complexificar o debate pode também soar como uma reavaliação de violências que, para muitos, já não deveriam mais estar em discussão, correndo o risco de ser interpretado como omissão, julgamento precipitado ou relativização de violências reais.
Laysa Zanetti do Estadão escreveu que o filme "é uma análise provocadora sobre o movimento Me Too e a 'cultura de cancelamento' de personalidades envolvidas em acusações de abuso ou assédio, dividindo opiniões e despertando controvérsias".
Ela nos conta que "O longa foi tema de debates após estreia no Festival de Veneza, e alguns críticos e jornalistas sentiram que a história era, de certa forma, datada e potencialmente prejudicial a mulheres. Segundo a Variety, uma jornalista presente na coletiva de imprensa, (...) disse que muitos participantes do festival sentiam que o longa 'revive velhos argumentos' usados para diminuir vítimas e não acreditar em mulheres que falam sobre assédio sexual. Questionada sobre a possibilidade de o filme ser prejudicial ao movimento feminista por 'descredibilizar' essas narrativas e denúncias, [Julia] Roberts alegou que a intenção é gerar debate. (...)
O espectador mais atento vai notar uma fonte familiar nos créditos de abertura de 'Depois da Caçada', uma letra usada por Woody Allen em alguns de seus filmes mais notórios. O uso não é apenas uma coincidência. A fonte foi escolhida de forma proposital, assim como os primeiros minutos do filme, que reprisam um estilo comum ao cineasta de 'Noivo Neurótico, Noiva Nervosa' (1977). Allen, vale lembrar, foi acusado de abusar sexualmente de sua filha adotiva, Dylan Farrow, quando ela tinha sete anos. O diretor sempre negou as acusações, e foi considerado inocente. Guadagnino confirmou as referências a Woody Allen na mesma coletiva de imprensa em Veneza. (...) As acusações contra Allen foram feitas pela primeira vez em 1992, e as investigações não encontraram provas contra o cineasta. Mais tarde, já adulta, Dylan voltou a fazer alegações. Desde o auge do movimento Me Too, a reputação do diretor foi prejudicada, e ele enfrenta dificuldades para conseguir financiamento para seus filmes. (...)
Os singelos 42% de aprovação no agregador de críticas Rotten Tomatoes indicam o quanto a imprensa está dividida quanto ao resultado deixado por 'Depois da Caçada'. Embora o filme consiga capturar a complexidade desejada por Guadagnino, muitos analistas acreditam que se trata de uma provocação esvaziada e verborrágica".
O que disse a crítica 1: Guilherme Jacobs do site Omelete avaliou com 2 estrelas, ou seja, regular. Ele disse: "'Depois da Caçada' tropeça em sua própria história de #MeToo" e o "filme (...) não tem curiosidade suficiente sobre seus próprios debates". Escreveu: "Se a abertura de 'Depois da Caçada' ainda se empresta aos instintos de diversão perversa do diretor, que por tabela nos envolve um fascínio mórbido por figuras questionáveis, quando entramos neste território mais escorregadio, Guadagnino precisa guardar suas facas. Seja por não saber como encarar o material, ou, francamente, por não acreditar que as ideias discutidas no roteiro não são tão apetitosas quanto (...) ver Julia Roberts bem-vestida e olhando com tesão para Andrew Garfield, também bem-vestido".
O que disse a crítica 2: A crítica Alissa Wilkinson do New York Times, achou o filme desconfortável, mas pelos motivos errados; parecia que um roteiro melhor havia sido simplesmente grampeado a um comentário político, embora algumas ideias interessantes sobre filósofos versus psicoterapeutas tenham surgido. Apesar das falhas, ela considerou que "vale a pena assistir".
O que eu achei: Existe uma citação atribuída ao chanceler alemão Otto von Bismarck que diz: “As pessoas nunca mentem tanto quanto depois de uma caçada, durante uma guerra ou antes de uma eleição". É dessa máxima que nasce o título “Depois da Caçada”, filme de Luca Guadagnino que se estrutura justamente em torno da pergunta central: quem está dizendo a verdade? A aluna que acusa o professor de abuso ou o professor que afirma ser vítima de uma falsa denúncia usada para encobrir um caso de plágio? A história se passa em Yale, no departamento de filosofia, e tem como eixo a figura da professora Alma Imhoff (Julia Roberts), chamada a ocupar o papel incômodo de juíza moral da situação. A aluna acusadora é sua orientanda; o acusado, seu melhor amigo. Soma-se a isso um trauma mal resolvido do passado da própria Alma - um episódio de assédio que ela mesma jamais conseguiu compreender plenamente - e o terreno está armado. O filme nos coloca diante de um impasse ético em que não há acesso à verdade factual, apenas versões e percepções. Uma das grandes qualidades do longa é justamente sua capacidade de manter a atenção do espectador durante mais de duas horas. O roteiro é verborrágico, denso e exigente, mas nunca disperso. Cada diálogo parece carregar peso e cada detalhe pode ganhar relevância mais adiante. O trio protagonista formado pelos atores Julia Roberts, Ayo Edebiri e Andrew Garfield entrega atuações muito sólidas, equilibrando contenção e tensão emocional com precisão. A trilha sonora, por outro lado, é um elemento mais ambíguo. Embora a seleção musical seja sofisticada e inclua canções de ótimo gosto – muitas delas brasileiras - , em alguns momentos ela parece competir com o próprio filme, chamando atenção demais para si e quebrando a imersão em vez de aprofundá-la. O maior ponto de debate, porém, está na ambição temática da obra. “Depois da Caçada” tenta dar conta de muitos assuntos simultaneamente: a cultura woke que se estabeleceu com força nas universidades, o movimento #MeToo, a cultura do cancelamento, disputas de poder, relações geracionais, gênero, raça, ética acadêmica e autoria intelectual. Tudo isso é colocado em ebulição, mas nem sempre plenamente desenvolvido. O roteiro de estreia de Nora Garrett é hábil em criar tensão e provocar desconforto, mas hesita quando se aproxima de conclusões mais contundentes. Ainda assim, talvez essa seja justamente a proposta do filme. Ao recusar respostas fáceis, ele transfere ao espectador o peso do julgamento. A verdade nunca se revela por completo; o que resta são narrativas concorrentes, afetadas por interesses, medos e convicções pessoais. Nesse sentido, “Depois da Caçada” não pretende solucionar o debate, mas expô-lo, funcionando como um espelho incômodo de um tempo em que certezas morais parecem cada vez mais frágeis. Ao final, não há veredicto possível e talvez esse seja seu maior problema: ao optar por uma ambiguidade radical ao tratar de um caso de assédio entre um homem cis branco em posição de poder e uma aluna negra homossexual, o filme caminha deliberadamente por um terreno perigoso, onde a tentativa de complexificar o debate pode também soar como uma reavaliação de violências que, para muitos, já não deveriam mais estar em discussão, correndo o risco de ser interpretado como omissão, julgamento precipitado ou relativização de violências reais.