24.11.25

"Memórias do Subdesenvolvimento" - Tomás Gutiérrez Alea (Cuba, 1968)

Sinopse:
 Em 1962, logo depois da Revolução de Fidel Castro em Cuba, Sérgio (Sérgio Corriere) decide ficar em Havana enquanto sua esposa (Yolanda Farr), família e amigos fogem para Miami. Sozinho em um admirável mundo novo, Sérgio observa a constante ameaça de invasão estrangeira enquanto procura alguma jovem (Daisy Granado) para se relacionar.
Comentário: Tomás Gutiérrez Alea (1928-1996) foi um cineasta cubano conhecido por fazer filmes que combinavam habilmente humor, técnicas experimentais e uma análise crítica da política, história e cultura cubanas. Além de sua atuação como diretor, ele escreveu diversos ensaios teóricos que abordam a relação entre cinema e política. São dele filmes como "Uma Luta Cubana Contra os Demônios" (1971), "A Última Ceia" (1976), "Até Certo Ponto" (1984), "Cartas do Parque" (1989), "Morango e Chocolate" (1993) indicado ao Oscar e "Guantanamera" (1995). Assisti dele o ótimo “A Morte de um Burocrata” (1966). Desta vez vou conferir "Memórias do Subdesenvolvimento" (1968).
Segundo o cineasta Walter Salles num especial para a Folha SP, " No início, há o som de tambores e corpos que pulsam. Dezenas, centenas de pessoas, mestiços, negros em sua maioria, dançam. Tudo é movimento e êxtase. De repente, ouvem-se dois tiros. Um homem jaz no chão - um corpo sem vida. Em volta dele, a música e o ritmo ensurdecedor não param. A cadência é frenética. A câmera busca rostos na multidão, até se deter na face de uma jovem negra. A imagem se congela no seu rosto em transe.
Assim começa 'Memórias do Subdesenvolvimento', dirigido pelo cubano Tomás Gutierrez Alea (...). Há filmes que não sobrevivem ao teste do tempo. Com o filme de Alea, aconteceu exatamente o contrário: não só permanece de uma extraordinária atualidade [o texto é de 2003] como também dá um belo puxão de orelha na produção cinematográfica atual. Em 'Memórias', Alea prova que um extremo rigor e um experimentalismo radical podem andar de mãos dadas. Nada é aleatório, cada imagem ecoando na imagem seguinte, construindo um todo que se configura maior do que a soma das partes.
O filme, baseado em uma novela de Edmundo Desnoes, narra a história de Sérgio, um jovem intelectual de origem burguesa que vive na Cuba revolucionária de 1961. Sérgio se recusou a partir para Miami com sua família, da qual tem uma visão crítica. Mas, por outro lado, ele também é um estrangeiro em uma sociedade em mutação. É um corpo estranho, entre fronteiras. Um homem que usa sua cultura europeia como escudo e refúgio. E que, no mundo pulsante e em transformação que descreve Alea no início de seu filme, virou um anacronismo.
O filme, a exemplo de Sérgio, navega entre estados diferentes - entre a ficção e o documentário, entre o presente e o passado, entre a África e a Europa. A narrativa dialética toma a forma de uma colagem, mas uma colagem elaborada com um rigor conceitual, cinematográfico, incomum. Cenas de cinejornais, fragmentos históricos, manchetes de revistas se mesclam, colidem, organizadas em torno das reflexões de Sérgio.
O homem é um observador. Sérgio acompanha o dia a dia em Havana de longe, através de binóculos. À distância, sem sujar as mãos. Mas é ele, na verdade, o animal que está sendo observado pela câmera de Alea. Sérgio revisita amores passados, faz o inventário de suas frustrações presentes. A história pessoal de Sérgio e a história que está sendo reescrita a cada instante se fundem, numa síntese aguda e fascinante. A crise existencial de um só indivíduo se torna subitamente representativa de um todo.
'Memórias' também tem o desejo de mostrar que aquilo que é considerado 'subdesenvolvimento' muda de acordo com o ponto de vista. A inteligência de Alea está em não apequenar Sérgio, cuja visão desconstrutiva do passado e do presente é provida de uma lógica cáustica e bem-humorada. Só depois de algum tempo é que percebemos que esse olhar aparentemente agudo não possui perspectiva histórica. Não relaciona causa e consequência. Sérgio é capaz de criticar, mas não de apontar a origem estrutural dos problemas que percebe.
Nesse sentido, 'Memórias' não é só um filme sobre a questão do 'subdesenvolvimento'. É um filme sobre a atitude das pessoas diante desse problema".
O filme foi restaurado pela Cineteca di Bologna no laboratório L’Immagine Ritrovata em associação com o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC). A restauração foi financiada pela George Lucas Family Foundation e pelo World Cinema Project da The Film Foundation.
O que disse a crítica 1: Renato Silveira do site Cinematório gostou. Disse: "O principal dos contrastes, justamente aquele que faz o filme funcionar tão bem, está entre as cenas documentais e ficcionais, suturadas de forma a corroborar a formação de uma atmosfera verossímil, em que o espectador é levado a trilhar um caminho calcado por uma bruta realidade, sendo ao mesmo tempo guiado por uma reflexão existencial, não apenas sobre um homem, mas sobre toda uma população".
O que disse a crítica 2: César Barzine do site Plano Crítico avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: "A linguagem de 'Memórias do Subdesenvolvimento' passa por três elementos distintos: o desenrolar da trama em si, a narração do protagonista e filmagens de arquivos ou flashbacks que interrompem a linearidade do filme. (...) Uma narrativa que, assim como nosso protagonista, é desnorteada, carece de rigor ou de continuidade. É a falta de horizontes que Sérgio sempre alega acerca de Cuba e do subdesenvolvimento. E o que vale para esse país, vale para ele também; como uma ilha dentro de outra ilha".
O que eu achei: Ambientado no período efervescente que se segue à Revolução Cubana - movimento que em 1959 levou Fidel Castro (1926-2016) ao poder e derrubou o ditador Fulgencio Batista (1901-1973) - o filme concentra sua narrativa nos anos de 1961 e 1962. Nesse cenário, acompanhamos Sérgio (Sérgio Corriere), um intelectual burguês de 38 anos, que observa a transformação do país a partir de uma posição privilegiada e isolada. Sem trabalho e vivendo da renda dos vários imóveis que possui, ele vê seus pais e sua esposa embarcarem definitivamente para os Estados Unidos, enquanto decide permanecer em Havana. A partir daí, Sérgio atravessa os dias num misto de apatia, ironia e desconfiança. Instalado em seu confortável apartamento, observa a cidade por meio de uma luneta, analisando com desdém os rumos da revolução que se consolida. Embora curioso sobre o que virá, não acredita no projeto político em curso e tampouco se engaja nele. Um dos aspectos mais marcantes do longa é sua proposta estética: a montagem combina cenas ficcionais com trechos documentais, imagens de arquivo e materiais de telejornais. Esse híbrido cria uma narrativa singular, que reforça a perspectiva subjetiva de Sérgio ao mesmo tempo em que situa o espectador nos acontecimentos reais da época. Adaptado do romance homônimo do escritor cubano Edmundo Desnoes (1930–2023), o filme funciona como um retrato contundente de uma burguesia em processo de desintegração diante da nova ordem socialista. Apesar de não ser um filme especialmente vibrante, do ponto de vista cinematográfico ele vale pela experiência estética pouco convencional, quase um experimento entre ficção e documentário. E vale, sobretudo, pela dimensão histórica: a obra incorpora imagens reais de eventos-chave, como a malsucedida invasão da Baía dos Porcos em 1961, conduzida por exilados anticastristas treinados pela CIA na tentativa de derrubar o governo de Fidel Castro.