
Comentário: Luiz Sérgio Person (1936 –1976) é um diretor de cinema e teatro, roteirista, produtor e ator brasileiro, que morreu prematuramente num acidente de carro. Sua obra possui diversas facetas, destacando-se a abordagem sociológica e a artística. Ele é pai da jornalista Marina Person. Na sua filmografia constam filmes como “O Caso dos Irmãos Naves” (1967), “Panca de Valente” (1968), “Cassy Jones, o Magnífico Sedutor” (1972) e o documentário “Vicente do Rego Monteiro” (1974). “São Paulo, Sociedade Anônima” (1965) é o primeiro filme que vejo dele.
João Mauro Cursi do site Revista Nostalgia nos conta que “’São Paulo, Sociedade Anônima’ (1965), (...) é um filme que se localiza historicamente numa situação muito peculiar do cinema brasileiro. Lançado em 1965, o longa não compõe exatamente nem a constelação de obras do Cinema Novo, nem do Cinema Marginal, movimentos brasileiros que caracterizam o nosso cinema moderno. Mesmo assim, o modernismo se exibe formalmente, com a câmera na rua e um pequeno grau de experimentalismo na montagem, e tematicamente, em uma autocrítica da classe média da época. Além disso, se os filmes do Cinema Marginal, ou mesmo ‘Terra em Transe’ (1967, Glauber Rocha) avançam na exposição das questões sociopolíticas do período, Luíz Sérgio Person as concentra psicologicamente na figura de Carlos (Walmor Chagas), protagonista de ‘São Paulo, Sociedade Anônima’.
Em meados dos anos 60, o mundo conhecia as ruas de Paris através dos filmes de Godard, Truffaut, Varda e companhia. A liberdade que o cinema moderno descobria, filmando nas ruas e gravando som direto, se traduzia nos personagens da Nouvelle Vague que caminhavam livres pela Champs-Élysées. O Brasil, no entanto, não tem Paris, nossa metrópole é São Paulo e, em 1965, é uma São Paulo cuja sensação de liberdade é sufocada pelo trânsito e pelo governo militar recém instaurado. Ao caminhar pelas ruas cheias da metrópole brasileira, a liberdade dá lugar à claustrofobia, que sufoca com ajuda da fumaça dos automóveis. Em um claro aceno a Eisenstein, Person intercala planos de engrenagens aos planos das caminhadas de Carlos, expressando a dura forma com a qual o personagem se relaciona com o ambiente da metrópole e com os transeuntes.
É curioso como, apesar disso, a cidade ainda parece exercer alguma atração sobre Carlos. Na verdade, o filme atinge uma certa indiferença entre as cenas que expõem o sofrimento e alegria do protagonista. A montagem evita uma construção dramática enquanto a não-linearidade narrativa iguala a dramaticidade dos planos e cenas, de forma que não há privilégio concedido para as cenas individualmente. Vemos a morte de Hilda (Ana Esmeralda), ex-amante de Carlos, na parte inicial do filme, sem nem sabermos quem ela é. Esse deslocamento narrativo da sua morte limita o envolvimento emocional, é mais uma cena colocada ao lado de muitas outras, cuja importância não é comunicada ao espectador. Por outro lado, vemos Carlos correndo na praia e cantando no carro em família - cenas em que ele parece genuinamente feliz, mas neutralizadas da mesma forma pela montagem.
O ápice dessa desdramatização através da montagem é o casamento entre Carlos e Luciana (Eva Wilma), sendo quase todo elipsado e só o vemos representado em tela por fotos. Se a não-linearidade narrativa torna os planos indiferentes através da montagem, a substituição de planos por fotos elimina ainda mais a ação do filme e constitui uma rejeição ainda mais radical do drama, que no cinema é construído sobretudo por meio do movimento das imagens. Essa escolha estilística opera em contraste com a representação visual das ruas de São Paulo, cujo problema é movimento demais, mas atinge um resultado expressivo semelhante: pelo excesso ou pela ausência, o movimento da vida de Carlos se revela angustiante. Essa angústia, contudo, não é caracterizada por uma potente emoção romântica, mas pela indiferença emocional do protagonista.
Carlos é, portanto, avatar de contradição - contradição psicológica e contradição de classe. Se o personagem sofre com a imagem do maquinário que opera, também explora trabalhadores quando lhe convém. É importante lembrar que o cinema brasileiro dos anos 60 é realizado sobretudo por cineastas de classe média, que após um momento inicial do Cinema Novo, empreendem uma fase autocrítica do movimento em que a contradição entre a realidade e a ideologia da classe média são tema central. ‘São Paulo, Sociedade Anônima’ se insere nesse contexto, apesar da estética que se aproxima do vindouro Cinema Marginal e do deslocamento geográfico do Rio para SP. Desse cenário de contradição, o final não deixa dúvidas: na tentativa repentina de fugir, a carona que Carlos pega o leva de volta à Metrópole - todos os caminhos levam a São Paulo. Por meio da indiferença provocada pela montagem não-linear e pela liberdade que se faz ausente das ruas de São Paulo, Person entrega uma obra onde a vida da metrópole paulistana é levada à exaustão pelo seu movimento incessante, do qual não há fuga”.
O que disse a crítica: Gabriel Carvalho do site Plano Crítico avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: “Na área das interpretações o longa-metragem dá algumas derrapadas. (...) O argumento envolvendo a figura da intelectual Hilda (Ana Esmeralda) traz a depressão e a loucura próximas à busca da identificação com o abstrato, com a arte, sem, de fato, encontrar-se para si mesma justificativas diante de tantas problemáticas. Já Walmor Chagas consegue sair um pouco dessa fragilidade na direção de atores, transmitindo muito bem seus pesares, suas alegrias – poucas a serem mencionadas – e seus desvios morais. Contudo, mesmo que não esteja quebrando a quarta parede, como faz com certa inconstância, o espírito do voice-over acaba misturando-se com os diálogos de fato, revelando uma poesia expositiva de pensamentos. Uma bela poesia, entretanto”.
Renato Silveira do site Cinematório avaliou o filme com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “Meu professor de sociologia (...) na faculdade me disse certa vez que um dos grandes perigos que o indivíduo da sociedade urbana e consumista corre é confundir ‘utilidade’ com ‘felicidade’. É um pensamento que não se aplica apenas aos tempos de hoje, quando ele se encontra intensificado. Vem de longa data e ‘São Paulo, Sociedade Anônima’ o reflete bastante. O valor do filme é ainda maior quando pensamos que, numa época em que a principal preocupação era o desenvolvimentismo, Person virou sua câmera para o homem e viu que dentro dele havia uma revolução contida, suprimida por um maquinário impessoal que o enxergava como mera peça para seu funcionamento”.
O que eu achei: “São Paulo, Sociedade Anônima” (1965) é minha primeira experiência com um filme do Luiz Sérgio Person. O longa tece um retrato sombrio e preciso da transformação urbana e humana em São Paulo durante o boom industrial da era JK. O protagonista, Carlos (interpretado pelo Walmor Chagas), é um homem que tem a sorte - ou o azar - de viver o período do crescimento automobilístico que se deu entre o final dos anos 1950 e começo dos 60 e sua decadência pessoal é mostrada nesse contexto, com a modernização do país servindo de pano de fundo. Perdido entre o tédio e a angústia, Carlos atormenta e é atormentado: pela esposa, pelas ex-namoradas, pelo cúmplice no trabalho. Sua vida se desenrola em torno de uma estrutura essencialmente egoísta, um circuito fechado em que o massacre cotidiano é retribuído com mais massacre. O personagem é o produto e, ao mesmo tempo, a vítima de um sistema que devora tudo: a cidade, o tempo, os afetos. O que mais me chamou a atenção, entretanto, é que tecnicamente, o filme é impecável. A narrativa entrecortada e a montagem criativa reforçam o descompasso interno do protagonista. Person usa a câmera com domínio e precisão, enquanto a trilha sonora, cuidadosamente construída, intensifica a sensação de aprisionamento e desorientação. Outro ponto forte do filme é que ele funciona como registro histórico de uma São Paulo dos anos 60, ainda relativamente tranquila para os padrões atuais, mas já prenhe do caos e da devoração que a caracterizariam nas décadas seguintes, capturando o espírito da cidade, esse organismo vivo, caótico e impiedoso, que oferece oportunidades e consome seus habitantes no mesmo movimento, resultando num retrato cruel, mas lúcido, do preço humano da industrialização e da mecanização das relações sociais. Um bom filme que com certeza vale ser visto.
João Mauro Cursi do site Revista Nostalgia nos conta que “’São Paulo, Sociedade Anônima’ (1965), (...) é um filme que se localiza historicamente numa situação muito peculiar do cinema brasileiro. Lançado em 1965, o longa não compõe exatamente nem a constelação de obras do Cinema Novo, nem do Cinema Marginal, movimentos brasileiros que caracterizam o nosso cinema moderno. Mesmo assim, o modernismo se exibe formalmente, com a câmera na rua e um pequeno grau de experimentalismo na montagem, e tematicamente, em uma autocrítica da classe média da época. Além disso, se os filmes do Cinema Marginal, ou mesmo ‘Terra em Transe’ (1967, Glauber Rocha) avançam na exposição das questões sociopolíticas do período, Luíz Sérgio Person as concentra psicologicamente na figura de Carlos (Walmor Chagas), protagonista de ‘São Paulo, Sociedade Anônima’.
Em meados dos anos 60, o mundo conhecia as ruas de Paris através dos filmes de Godard, Truffaut, Varda e companhia. A liberdade que o cinema moderno descobria, filmando nas ruas e gravando som direto, se traduzia nos personagens da Nouvelle Vague que caminhavam livres pela Champs-Élysées. O Brasil, no entanto, não tem Paris, nossa metrópole é São Paulo e, em 1965, é uma São Paulo cuja sensação de liberdade é sufocada pelo trânsito e pelo governo militar recém instaurado. Ao caminhar pelas ruas cheias da metrópole brasileira, a liberdade dá lugar à claustrofobia, que sufoca com ajuda da fumaça dos automóveis. Em um claro aceno a Eisenstein, Person intercala planos de engrenagens aos planos das caminhadas de Carlos, expressando a dura forma com a qual o personagem se relaciona com o ambiente da metrópole e com os transeuntes.
É curioso como, apesar disso, a cidade ainda parece exercer alguma atração sobre Carlos. Na verdade, o filme atinge uma certa indiferença entre as cenas que expõem o sofrimento e alegria do protagonista. A montagem evita uma construção dramática enquanto a não-linearidade narrativa iguala a dramaticidade dos planos e cenas, de forma que não há privilégio concedido para as cenas individualmente. Vemos a morte de Hilda (Ana Esmeralda), ex-amante de Carlos, na parte inicial do filme, sem nem sabermos quem ela é. Esse deslocamento narrativo da sua morte limita o envolvimento emocional, é mais uma cena colocada ao lado de muitas outras, cuja importância não é comunicada ao espectador. Por outro lado, vemos Carlos correndo na praia e cantando no carro em família - cenas em que ele parece genuinamente feliz, mas neutralizadas da mesma forma pela montagem.
O ápice dessa desdramatização através da montagem é o casamento entre Carlos e Luciana (Eva Wilma), sendo quase todo elipsado e só o vemos representado em tela por fotos. Se a não-linearidade narrativa torna os planos indiferentes através da montagem, a substituição de planos por fotos elimina ainda mais a ação do filme e constitui uma rejeição ainda mais radical do drama, que no cinema é construído sobretudo por meio do movimento das imagens. Essa escolha estilística opera em contraste com a representação visual das ruas de São Paulo, cujo problema é movimento demais, mas atinge um resultado expressivo semelhante: pelo excesso ou pela ausência, o movimento da vida de Carlos se revela angustiante. Essa angústia, contudo, não é caracterizada por uma potente emoção romântica, mas pela indiferença emocional do protagonista.
Carlos é, portanto, avatar de contradição - contradição psicológica e contradição de classe. Se o personagem sofre com a imagem do maquinário que opera, também explora trabalhadores quando lhe convém. É importante lembrar que o cinema brasileiro dos anos 60 é realizado sobretudo por cineastas de classe média, que após um momento inicial do Cinema Novo, empreendem uma fase autocrítica do movimento em que a contradição entre a realidade e a ideologia da classe média são tema central. ‘São Paulo, Sociedade Anônima’ se insere nesse contexto, apesar da estética que se aproxima do vindouro Cinema Marginal e do deslocamento geográfico do Rio para SP. Desse cenário de contradição, o final não deixa dúvidas: na tentativa repentina de fugir, a carona que Carlos pega o leva de volta à Metrópole - todos os caminhos levam a São Paulo. Por meio da indiferença provocada pela montagem não-linear e pela liberdade que se faz ausente das ruas de São Paulo, Person entrega uma obra onde a vida da metrópole paulistana é levada à exaustão pelo seu movimento incessante, do qual não há fuga”.
O que disse a crítica: Gabriel Carvalho do site Plano Crítico avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: “Na área das interpretações o longa-metragem dá algumas derrapadas. (...) O argumento envolvendo a figura da intelectual Hilda (Ana Esmeralda) traz a depressão e a loucura próximas à busca da identificação com o abstrato, com a arte, sem, de fato, encontrar-se para si mesma justificativas diante de tantas problemáticas. Já Walmor Chagas consegue sair um pouco dessa fragilidade na direção de atores, transmitindo muito bem seus pesares, suas alegrias – poucas a serem mencionadas – e seus desvios morais. Contudo, mesmo que não esteja quebrando a quarta parede, como faz com certa inconstância, o espírito do voice-over acaba misturando-se com os diálogos de fato, revelando uma poesia expositiva de pensamentos. Uma bela poesia, entretanto”.
Renato Silveira do site Cinematório avaliou o filme com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “Meu professor de sociologia (...) na faculdade me disse certa vez que um dos grandes perigos que o indivíduo da sociedade urbana e consumista corre é confundir ‘utilidade’ com ‘felicidade’. É um pensamento que não se aplica apenas aos tempos de hoje, quando ele se encontra intensificado. Vem de longa data e ‘São Paulo, Sociedade Anônima’ o reflete bastante. O valor do filme é ainda maior quando pensamos que, numa época em que a principal preocupação era o desenvolvimentismo, Person virou sua câmera para o homem e viu que dentro dele havia uma revolução contida, suprimida por um maquinário impessoal que o enxergava como mera peça para seu funcionamento”.
O que eu achei: “São Paulo, Sociedade Anônima” (1965) é minha primeira experiência com um filme do Luiz Sérgio Person. O longa tece um retrato sombrio e preciso da transformação urbana e humana em São Paulo durante o boom industrial da era JK. O protagonista, Carlos (interpretado pelo Walmor Chagas), é um homem que tem a sorte - ou o azar - de viver o período do crescimento automobilístico que se deu entre o final dos anos 1950 e começo dos 60 e sua decadência pessoal é mostrada nesse contexto, com a modernização do país servindo de pano de fundo. Perdido entre o tédio e a angústia, Carlos atormenta e é atormentado: pela esposa, pelas ex-namoradas, pelo cúmplice no trabalho. Sua vida se desenrola em torno de uma estrutura essencialmente egoísta, um circuito fechado em que o massacre cotidiano é retribuído com mais massacre. O personagem é o produto e, ao mesmo tempo, a vítima de um sistema que devora tudo: a cidade, o tempo, os afetos. O que mais me chamou a atenção, entretanto, é que tecnicamente, o filme é impecável. A narrativa entrecortada e a montagem criativa reforçam o descompasso interno do protagonista. Person usa a câmera com domínio e precisão, enquanto a trilha sonora, cuidadosamente construída, intensifica a sensação de aprisionamento e desorientação. Outro ponto forte do filme é que ele funciona como registro histórico de uma São Paulo dos anos 60, ainda relativamente tranquila para os padrões atuais, mas já prenhe do caos e da devoração que a caracterizariam nas décadas seguintes, capturando o espírito da cidade, esse organismo vivo, caótico e impiedoso, que oferece oportunidades e consome seus habitantes no mesmo movimento, resultando num retrato cruel, mas lúcido, do preço humano da industrialização e da mecanização das relações sociais. Um bom filme que com certeza vale ser visto.