23.9.25

"Os Boas Vidas" - Federico Fellini (Itália/França, 1953)

Sinopse:
 Em Rimini, o acomodado Alberto (Alberto Sordi), o galanteador Fausto (Franco Fabrizi), o intelectual Leopoldo (Leopoldo Trieste), o cantor Riccardo (Riccardo Fellini) e o mais jovem de todos Moraldo (Franco Interlenghi) formam um grupo que nada mais faz do que passar o dia em farras e conquistas amorosas. No entanto, esse modo de vida acaba para Fausto quando engravida a irmã de Moraldo (Leonora Russo).
Comentário: Federico Fellini (1920-1993) foi um diretor e roteirista de cinema italiano. Em uma carreira de quase cinquenta anos, Fellini ganhou a Palma de Ouro por “A Doce Vida”, foi indicado a doze prêmios Oscar e ganhou quatro na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira. No Oscar 1993, em Los Angeles, ele recebeu um prêmio honorário. Ele foi casado com a atriz Giulietta Masina. Assisti dele as obras-primas "A Doce Vida" (1960), "8 ½" (1963) e "Amarcord" (1973), os excelentes "Abismo de um Sonho" (1952), “A Estrada da Vida” (1954) e “Julieta dos Espíritos” (1965) e o curioso "Ensaio de Orquestra" (1978). Vi também o documentário "Os Palhaços" (1970). Desta vez vou conferir “Os Boas Vidas" (1953).
Luiz Santiago do site Plano Crítico nos conta que "Federico Fellini assumiu pela primeira vez a direção de um filme ao lado de Alberto Lattuada, em 'Mulheres e Luzes' (1950). Dois anos depois ele fez o seu primeiro voo solo, em 'Abismo de um Sonho', início interessante para uma carreira no cinema, trazendo uma história com elementos de fantasia, sonho, desejos e relações amorosas… além do delicioso toque metalinguístico, algo que o diretor sempre prezou e que traria à tona na maior parte de suas produções futuras.
'Os Boas Vidas' não estava na pauta de Fellini, quando terminada a produção de 'Abismo de um Sonho'. O roteiro que ele tinha escrito e que foi recusado pelo produtor era o de 'A Estrada da Vida', então taxado de 'muito sério' e escanteado pelo estúdio. Em contrapartida, foi oferecido ao diretor um orçamento para que ele realizasse uma comédia, desafio que ele enfrentaria ao lado de outros dois roteiristas, Ennio Flaiano e Tullio Pinelli.
'Os Boas-Vidas' teve uma acolhida absurdamente calorosa da crítica e do público, sendo indicado ao Oscar de Melhor Roteiro e vencendo o Leão de Prata no Festival de Veneza. A história de um grupo de amigos em uma cidade do interior trazia algumas lembranças caras a Fellini, algo que é ainda ressaltado pela presença de seu irmão no elenco, Riccardo.
De forma geral, 'Os Boas Vidas' mostra a vida adulta dos 'jovens da guerra'. Sem perspectiva ou vontade de emplacar um projeto familiar, esses adultos ociosos e vagabundos alternam um presente cheio de divertimento, bebedeiras, caminhadas nas madrugadas, carnavais, apostas e relacionamentos casuais, enquanto a idade passa e parece que o amadurecimento deles não acompanha essa passagem. Em dado momento do filme um dos personagens diz ao outro: 'nós precisamos casar', tendo em mente aí o poder do matrimônio como possível iniciador de uma vida de trabalho, compromisso e responsabilidade.
Mas para esse grupo, nem o matrimônio parece o início de uma nova fase da vida, basta atentarmos para o casamento de um deles e o modo como levava sua relação com a esposa, vivendo na casa dos sogros e praticamente entregando a criação do filho à família, enquanto sua preocupação essencial é sentir-se jovem, ter casos com diversas mulheres e viver como um solteiro boêmio.
Durante todo o filme - e essa é uma fala que aparece no desfecho, de maneira direta - aparece a possibilidade de deixarem essa cidade, irem para Roma ou outro lugar, onde um possível emprego ou a mudança de ares poderia mudar tudo. Mas apenas dois personagens conseguem livrar-se da comodidade do lugar e da vida fácil e sem muitos desafios.
Todavia, existe também o outro lado, o lado pessoal de cada um, a melancolia e angústia que paira em suas vidas, mesmo em momentos de diversão, como é o caso do carnaval ou o concurso de Miss, no início da fita. Embora rodeados de gente, os boas vidas vivem às voltas com seus interesses particulares, o evidente marasmo e inutilidade de suas existências, excetuando-se aí a personagem de Leopoldo, o escritor, que consegue ter sua comédia lida por um grande ator, mas que foge deste após segui-lo para uma região escura da cidade e julgar ser assediado sexualmente - a fuga é de uma inocência assombrosa para um homem com a idade de Leopoldo, que normalmente diria ao ator que não era homossexual e a coisa então se resolveria ali".
O que disse a crítica: Alexandre Agabiti Fernandez colaborador da Folha SP avaliou como bom. Escreveu: " Terceiro longa de Federico Fellini, "Os Boas-Vidas" (1953) é uma obra satírica, estudo de costumes de certo meio social que já traz os rudimentos do universo do cineasta, apresentado ainda sem a exuberância posterior. (...) Um dos pontos altos de 'Os Boas-Vidas' é a capacidade de Fellini em tornar próximos esses personagens, sem lances de efeito, psicologia ou grandiloquência. Um filme cômico com gosto amargo".
Robledo Milani do site Papo de Cinema avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: "Fellini tem consciência dos atos de seus personagens, e não os perdoa facilmente. Riccardo (interpretado pelo próprio irmão do diretor, Riccardo Fellini) é o mais coadjuvante, enquanto Fausto (Franco Fabrizi, que assim como Leopoldo Triste – Leopoldo – e Alberto Sordi – Alberto – se tornaria parceiro frequente em outras obras do cineasta) é o que tem a trajetória mais destacada, envolvendo-se em uma confusão atrás da outra, mesmo após casado. Mas acompanhamos essas trajetórias quase que pela tangencial, de acordo com a posição de Moraldo (Franco Interlenghi), que é parte do problema e também da solução – ele é o único a quem resta alguma esperança. E assim como precisa decidir entre ficar ou partir, também nós somos levados a confrontar nossa inerente comodidade, em um filme sobre o nada que tem muito a dizer".
O que eu achei: "Os Boas Vidas" (I Vitelloni), de Federico Fellini, é um filme que me conquistou profundamente, não apenas pela sensibilidade e humor com que retrata um grupo de amigos à deriva em uma cidade do interior, mas também porque, sendo descendente de italianos, muitas das expressões, hábitos e pequenos gestos mostrados na tela me remeteram às memórias que tenho dos meus antepassados. Há algo de muito familiar na forma como eles falam, se reúnem, brigam e riem – um retrato que, para mim, tem sabor de nostalgia. O título original, "I Vitelloni", refere-se a uma expressão local que significa “alguém imaturo e preguiçoso, sem uma identidade clara ou sem uma ideia do que quer fazer na vida”. A tradução para “Os Inúteis”, em Portugal, e “Os Boas Vidas”, no Brasil, mantém-se fiel ao espírito do filme, que nos mostra esse grupo de jovens sem rumo, mas cheios de humanidade, contradições e sonhos nunca realizados. Fellini os observa com ironia e, ao mesmo tempo, com enorme empatia, criando um retrato que equilibra leveza e melancolia. Além disso, é possível ver aqui o embrião do grande cineasta que Fellini viria a se tornar. "Os Boas Vidas" tem aquele olhar atento para as pequenas grandezas e ridículos da vida, para os personagens que vivem à margem da ação heroica, e que, justamente por isso, revelam tanto sobre o mundo ao seu redor. Um filme belíssimo, cheio de humor e ternura, que consegue transformar a simplicidade do cotidiano em cinema da mais alta qualidade.