10.7.25

“O Diabo na Rua do Meio do Redemunho” - Bia Lessa (Brasil, 2024)

Sinopse:
O ex-jagunço Riobaldo (Caio Blat), agora fazendeiro, reflete sobre sua vida, as complexidades do bem e do mal e a presença do diabo em seu universo. Através de seus olhos vivenciamos suas experiências turbulentas como jagunço, seus conflitos internos e sua relação com diversos bandos e líderes, incluindo o temido Hermógenes (José Maria Rodrigues). O coração de Riobaldo é profundamente tocado por Diadorim (Luiza Lemmertz), uma jovem corajosa e enigmática que se torna o amor de sua vida.
Comentário: Bia Lessa (1958) é uma artista multimídia brasileira com uma extensa produção. Já trabalhou com teatro, ópera, exposições, shows, desfiles de moda, videoarte, instalações, além de performances e curadoria para museus e bienais. Dentre seus espetáculos teatrais estão: “Orlando - Uma Biografia”, de Virgínia Woolf, “Cartas Portuguesas” e adaptações de clássicos da literatura brasileira, como “Macunaíma”, de Mario de Andrade. No cinema ela dirigiu os longas-metragens “Crede-mi” (1997) e “Então Morri” (2016), além da minissérie “Cartas ao Mundo” (2022).
Lilianna Bernartt do site Midia Ninja nos conta que “Em meio às recentes adaptações cinematográficas do clássico de Guimarães Rosa, ‘Grande Sertão: Veredas’, merece ser destacado o filme ‘O Diabo na Rua no Meio do Redemunho’, da estonteante Bia Lessa.
A produção já nasce diferenciadamente, fruto de um relacionamento de anos da multiartista com a obra de Guimarães. Em 2006, por aproximadamente um ano, a mostra ‘Grande Sertão: Veredas’, concebida por Bia, permaneceu em exposição no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo. Naquela oportunidade, a artista já apresentava um trabalho de pesquisa da extração da potencialidade árida e contemporânea da obra do grande escritor através da simplicidade de elementos como areia, madeira e tijolos.
Da exposição, a pesquisa de Lessa seguiu, resultando na premiada peça teatral, que permaneceu por anos em cartaz e percorreu o Brasil. Nesta, Bia se aprofundou em sua pesquisa de absorção da obra de Guimarães por meio de experiências sensoriais que partiam do íntimo da encenação e reverberavam para o público, o convidando a experienciar o universo proposto pelo grande autor. Atores e público juntos, em um mesmo ambiente, em um mesmo universo ‘Sertão’. A sensorialidade sempre foi peça de suma importância na pesquisa de Bia, usada como mecanismo de extração do sumo do significado e significante da poesia de Guimarães.
Seguindo esse breve resumo, por fim, chega aos cinemas (...), a transposição dessa soma de referências para a linguagem cinematográfica. Bia assume o desafio de transportar a grandiosidade desse trabalho diferenciado e sensorial para as telas de cinema. Ou melhor, de simplesmente fluir em sua trajetória de pesquisa. Nesse sentido, ela utiliza elementos teatrais para a construção de seu universo cinematográfico, ou vice-versa, já que ‘há muito teatro no cinema e há muito cinema no teatro’, como disse uma vez Bia, em entrevista.
O que importa para a multiartista é exatamente o ‘multi’, a somatória de possibilidades, que agrega e condensa a potência da obra ao invés de dispersar sentidos. Atores interpretam tudo – bichos, coisas, plantas, personagens. Certa vez, em conversa sobre o filme, Bia disse que ‘Guimarães Rosa é o primeiro autor verdadeiramente ecológico’, se referindo ao sentido que o homem faz no meio das coisas, partindo do ponto de que somos todos feitos da mesma matéria. A busca é pela invenção de um novo homem, que é mulher, é homem, é bicho, é planta. Essa união de sentidos, de minerais que somos, seres vivos, está diretamente impressa na proposta de Bia, inclusive no que diz respeito a Riobaldo e Diadorim”.
Sobre o título, Raphael Gomide do site ArteCult nos conta que “O título do longa-metragem – ‘O Diabo na Rua do Meio do Redemunho’ - é uma das frases mais famosas do livro ‘Grande Sertão: Veredas’ , que narra a trajetória do jagunço Riobaldo, enfrentando seus demônios em guerras pelo Sertão mineiro”.
Ele diz: “Na tela do cinema, os atores transitam por um espaço sem referências geográficas nem fronteiras. Se no teatro os personagens estavam aprisionados numa jaula construída por Paulo Mendes da Rocha e Camila Toledo, na tela do cinema eles perambulam num vazio acinzentado, atordoados entre o delírio, a memória, a fúria e a paixão. São personagens de um sertão onde a ferocidade das emoções é o que há de concreto diante do trágico da vida intensamente vivida. O sertão imaginário de Lessa, como o de Guimarães Rosa, expõe as encruzilhadas da tragédia na representação do mundo como lugar de dúvidas dilacerantes. Neste sertão nebuloso, o próprio cinema, como suporte para apreensão da realidade, é posto em questão por uma metafísica que desafia os limites da linguagem. (...)
A narrativa é não linear, com reflexões filosóficas entrelaçadas com cenas detalhadas da vida e das batalhas sangrentas no sertão, incluindo crenças populares, lendas e tradições. No cerne estão as questões de dualidade, ambiguidade e conflito interior. Riobaldo constantemente lida com escolhas morais e dilemas éticos, enquanto busca entender seu lugar no mundo e sua própria natureza. A relação entre Riobaldo e Diadorim simboliza muitos desses temas, explorando a complexidade da identidade, gênero e afetos profundos”.
O longa de Bia Lessa foi rodado em 2018 em um galpão, durante 17 dias. A música ficou por conta de Egberto Gismonti e do grupo O Grivo.
O que disse a crítica: Silviano Santiago, escritor e ensaísta, gostou, escreveu: “Hoje, na tela dos cinemas, a destreza de Bia germina alimento suculento para as nossas emoções mais selvagens e mais reprimidas. As lágrimas do ser humano são permitidas na plateia. No mais profundo da vida autodestrutiva e miserável, na morte, há lugar para o afeto e o amor. Riobaldo e Diadorim − na rua, no redemoinho, em conluio com o Diabo no olhar, no coração – dançam diferentes e felizes tempos. Piscam a alegria de viver, como vaga-lumes que a mata libera à noite”.
Ivone Margulies, crítica de cinema e professora da CUNY, também elogiou, disse: “Ao recontar a luta de Riobaldo frente a Deus e Diabo no seu belíssimo filme, ‘O Diabo na Rua no Meio do Redemunho’, Bia Lessa demonstra mais uma vez seu brilho como cineasta. Seu novo confronto com ‘Grande Sertão: Veredas’ mantém uma linha narrativa cerrada e uma inventividade única na metamorfose dos atores e objetos de cena em rocha e água, animais e jagunços, vivos e mortos. Contra um fundo negro abstrato, o ritmo tumultuado das guerras e paixões se somam em ondas sucessivas de memória a falas cuja poesia sustenta o sentido de religiosidade, violência e redenção do sertão, vívido e presente”.
O que eu achei: Apesar de eu ter assistido duas vezes a peça de teatro “Grande Sertão: Veredas” dirigida pela Bia Lessa - a primeira vez em Santos no Festival Mirada e a segunda em São Paulo, no SESC Pompéia – ver este filme não foi mais do mesmo, pois esta adaptação da obra de Guimarães Rosa feita para o cinema é totalmente diferente. Trata-se de uma mistura de teatro e cinema. No cenário não há nada, somente um fundo preto, o que acentua a sensação de solidão do homem no mundo. Nele, os atores são personagens humanos ou pássaros, peixes, cavalos, boiada. Eles interagem entre si ou com outros elementos cênicos, objetos simples super bem bolados que possuem extrema carga poética. O elenco do filme me pareceu ser o mesmo da peça, tendo, nos papéis principais, Caio Blat interpretando Riobaldo e Luiza Lemmertz sendo Diadorim. A trilha sonora também é ótima, junta a música incidental do Egberto Gismonti com a sonoplastia feita pelo grupo O Grivo. Apontaria apenas dois pontos fracos: a captura sonora das falas cujo texto complexo, em alguns momentos, torna-se inaudível (sorte que o filme tem legendas em português) e a distribuição no streaming que encontrei para alugar apenas no NOW da Claro ou no aplicativo ClaroTV+, ambos serviços da Claro de péssima qualidade. Fora isso é um filme totalmente fora da caixinha, pra ver e rever.