
Comentário: Federico Fellini (1920-1993) foi um diretor e roteirista de cinema italiano. Em uma carreira de quase cinquenta anos, Fellini ganhou a Palma de Ouro por “A Doce Vida”, foi indicado a doze prêmios Oscar e ganhou quatro na categoria de Melhor Filme em Língua Estrangeira. No Oscar 1993, em Los Angeles, ele recebeu um prêmio honorário. Ele foi casado com a atriz Giulietta Masina. Assisti dele as obras-primas "A Doce Vida" (1960), "8 ½" (1963) e "Amarcord" (1973), os excelentes "Abismo de um Sonho" (1952) e “A Estrada da Vida” (1954) e o curioso "Ensaio de Orquestra" (1978). Vi também o documentário "Os Palhaços" (1970). Desta vez vou conferir “Julieta dos Espíritos” (1965).
Régis Trigo do site Cineplayers nos diz que “O espectador que tentar iniciar-se no universo dos filmes de Federico Fellini com o objetivo de neles encontrar uma trama, um enredo tradicional, uma história com começo meio e fim, já estará começando de forma equivocada. De um eficiente contador de histórias no início de sua carreira, Fellini passou a ser, a partir do início dos anos 60, um pintor de imagens em movimentos, muitas delas oníricas, recheadas de personagens bizarros, muitos deles tirados das suas recordações de infância, outros de seus próprios sonhos. De tão pessoal, quase sempre é tarefa das mais difíceis adentrar neste mundo todo particular – por vezes, desconfio se os próprios atores entendiam os objetivos do diretor em determinadas sequências. Até porque, Fellini nunca realizou filmes com essa proposta de simplificar as coisas. A ideia sempre foi justamente essa: explicar o mínimo possível. E não limitar a imaginação de acordo com convenções pré-estabelecidas. Decifrar as fitas de Fellini deve ser a menor das preocupações.
‘Julieta dos Espíritos’, lançado em 1965, faz parte dessa segunda fase da carreira do diretor. Na primeira, Fellini encontrava-se amarrado às tradições neorrealistas que ainda estavam em moda na Itália. Um de seus fundadores, já que colaborou no roteiro de ‘Roma, Cidade Aberta’ (1945), de Roberto Rossellini, considerado o marco inicial do movimento, o cineasta passou para trás das câmeras em projetos que seguiam mais ou menos o mesmo estilo. Duas de suas maiores obras, ‘A Estrada da Vida’ (1954) e ‘As Noites de Cabíria’ (1957), são desse período e o conteúdo é fortemente marcado pela temática social. A partir de ‘A Doce Vida’, no início dos anos 60, veio a ruptura. Com seu painel de uma Roma ambientada por uma burguesia vazia de espírito, que se esbaldava em orgias e festas noturnas, tudo isso sob os olhos de um jornalista (Marcello Mastroianni) que não vê sentido na sua profissão, no seu casamento, na sua vida, Fellini deu o primeiro passo para a guinada que viria dali em diante.
Interessante notar que essa alternância de estilo não se deu por acaso. Nos fins dos anos 50, o movimento neorrealista já perdera muito da sua força. Afinal de contas, não havia motivos para continuar discutindo os problemas sociais da Itália do pós-guerra, quando esta já havia acabado há mais de uma década. (...)
Nessa efervescência de novas ideias e costumes, Fellini encontrou campo fértil para trabalhar suas loucuras e criar seu universo próprio. Três anos após ‘A Doce Vida’, em 1963, o cineasta realizou ‘8 ½’ (para muitos, sua obra-prima). Demorou apenas mais dois para surgir ‘Julieta dos Espíritos’. Completamente à vontade neste seu estilo de fantasia e de sonhos, Fellini aproveitou esta fita para experimentar novas técnicas (era seu primeiro filme colorido) e, de certa forma, contar a versão feminina de ‘8 ½’. E, por que não, se analisarmos o conteúdo da obra, redimir-se com sua esposa Giulietta Masina, estrela dos seus primeiros longas-metragens, ainda na fase neorrealista.
Basicamente, o enredo de Julieta dos Espíritos é até simples. Masina faz a protagonista, uma mulher já adentrando na faixa dos 40 anos, casada com Giorgio, que leva uma vida tipicamente burguesa, na sua enorme mansão, cercada por jardins e piscinas, acompanhada de suas duas copeiras. Tudo caminha bem, até que Julieta passa a desconfiar que seu marido tem um envolvimento extraconjugal. A investigação sobre a existência ou não deste caso, leva Julieta a enfrentar seus próprios demônios (sua sexualidade reprimida) revisitar sua infância (a encenação da sua primeira peça teatral), recordar dos bons momentos do passado (na figura do seu adorado avô), liberar-se de medos, traumas e neuroses que ficaram escondidas no inconsciente (sua subserviência à mãe fútil), enfim, reavaliar-se como mulher.
Nas mãos de Fellini, este roteiro é trabalhado da forma mais não usual possível. Ou melhor dizendo, à maneira de Fellini. Ao longo de sua jornada, Julieta depara-se com uma série de personagens estranhos, como o médium, ser assexuado, que lhe faz previsões; suas irmãs, que mais se preocupam com o visual do que com as próprias filhas; sua vizinha, feita por Sandra Milo (que já havia interpretado papel semelhante em ‘8 ½’), que tem por princípio o sexo livre e os relacionamentos abertos; os detetives particulares, responsáveis pela investigação do caso amoroso do marido da protagonista. (...)
Em linhas gerais, ‘Julieta dos Espíritos’ é quase sempre a comparado a ‘8 ½’. Em ambos os filmes, Fellini nos traz personagens em situações limites. Em ‘8 ½’, é o cineasta Guido, vivido por Marcello Mastroianni (no fundo, o próprio Fellini), internado num spa, em meio a problemas de saúde e bloqueios criativos, que passa a questionar os rumos para onde sua vida está lhe levando. Em ‘Julieta dos Espíritos’, é a dona de casa burguesa (talvez a própria Giulietta), que fez a opção por uma vida filial, e, ao se ver rejeitada pela matriz (seu marido), percebe que apostou nas fichas erradas. Nos dois casos, os protagonistas precisam decidir qual caminho seguir, já que as contingências da vida lhe estão exigindo tal postura”.
O que disse a crítica: Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse: “Emoldurada pelos acordes de Nino Rotta, compositor que muito contribuiu com Fellini, Giulietta Masina, outra colaboradora contumaz [obstinada, insistente], além de esposa do italiano, interpreta com várias sutilezas essa mulher em crise existencial, que luta contra os fatos e os resquícios para conseguir dar os próximos passos. ‘Julieta dos Espíritos’ passa a sensação de querer misturar todos os vieses, extraindo da massa disforme uma visão original do mote já bastante utilizado pelo cinema. Singularidade não falta a essa realização que, porém, se ressente da incisão em alguns fragmentos com potencial significativo, tanto do ponto de vista da dramaturgia quanto da imagem, ao passo em que se demora em demasia em momentos redundantes. Quando Fellini se entrega ao exagero, dando vasão à torrente de acontecimentos que embaralha real e sonho/visão, apresentando-os como irmãos siameses, o filme cresce excepcionalmente”.
Adriano Monteiro do site Vertentes do Cinema avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “’Julieta dos Espíritos’ (...) permanece esotérico, misterioso e espiritual até o fim. Até toda essa receita do realismo fantástico entrar em colapso junto com sua personagem, em nome de uma experiência cinematográfica absurda. No melhor nível de um filme que foge das convenções narrativas, propõe algo novo em cima de um tema comum a muitas mulheres. Assim como o cinema de Fellini procura outros olhares, formas de contar histórias pela experimentação da linguagem, Julieta também responde a esse processo em nome de uma emancipação, ainda não social, não política (mas que não deixa de ser), mas pessoal. A busca de ferramentas para percepções de mundo fora da curva é o que está em jogo em ‘Julieta dos Espíritos’. Ao afirmar o tempo todo a capacidade que temos de sonhar e não ignorar a janela que o cinema abre para essa experiência”.
O que eu achei: Trata-se de mais um exemplar daquela linha de filmes nos quais a atmosfera de sonho prevalece. A personagem principal é Julieta, interpretada por Giulietta Masina, esposa de Fellini. Ela interpreta uma mulher casada, bem de vida, mas que se vê subitamente perturbada pela desconfiança e posterior descoberta que seu marido a trai com outra mulher. Imersa num mundo onde realidade e fantasia se misturam, o filme envereda por um caminho surreal, marca registrada do cineasta que, a essa altura, já havia deixado o neorrealismo pra trás. Não espere linearidade, relações de causa e efeito, nem lógica racional. Essa Julieta é a dos espíritos, aquela que lida com pessoas reais, mas também com suas memórias de infância e com seres desencarnados. Uma viagem lisérgica onde tudo é extravagante: os personagens, as imagens, as alegorias e as cores (é o primeiro filme colorido do diretor). O mais puro suco de Fellini.
Régis Trigo do site Cineplayers nos diz que “O espectador que tentar iniciar-se no universo dos filmes de Federico Fellini com o objetivo de neles encontrar uma trama, um enredo tradicional, uma história com começo meio e fim, já estará começando de forma equivocada. De um eficiente contador de histórias no início de sua carreira, Fellini passou a ser, a partir do início dos anos 60, um pintor de imagens em movimentos, muitas delas oníricas, recheadas de personagens bizarros, muitos deles tirados das suas recordações de infância, outros de seus próprios sonhos. De tão pessoal, quase sempre é tarefa das mais difíceis adentrar neste mundo todo particular – por vezes, desconfio se os próprios atores entendiam os objetivos do diretor em determinadas sequências. Até porque, Fellini nunca realizou filmes com essa proposta de simplificar as coisas. A ideia sempre foi justamente essa: explicar o mínimo possível. E não limitar a imaginação de acordo com convenções pré-estabelecidas. Decifrar as fitas de Fellini deve ser a menor das preocupações.
‘Julieta dos Espíritos’, lançado em 1965, faz parte dessa segunda fase da carreira do diretor. Na primeira, Fellini encontrava-se amarrado às tradições neorrealistas que ainda estavam em moda na Itália. Um de seus fundadores, já que colaborou no roteiro de ‘Roma, Cidade Aberta’ (1945), de Roberto Rossellini, considerado o marco inicial do movimento, o cineasta passou para trás das câmeras em projetos que seguiam mais ou menos o mesmo estilo. Duas de suas maiores obras, ‘A Estrada da Vida’ (1954) e ‘As Noites de Cabíria’ (1957), são desse período e o conteúdo é fortemente marcado pela temática social. A partir de ‘A Doce Vida’, no início dos anos 60, veio a ruptura. Com seu painel de uma Roma ambientada por uma burguesia vazia de espírito, que se esbaldava em orgias e festas noturnas, tudo isso sob os olhos de um jornalista (Marcello Mastroianni) que não vê sentido na sua profissão, no seu casamento, na sua vida, Fellini deu o primeiro passo para a guinada que viria dali em diante.
Interessante notar que essa alternância de estilo não se deu por acaso. Nos fins dos anos 50, o movimento neorrealista já perdera muito da sua força. Afinal de contas, não havia motivos para continuar discutindo os problemas sociais da Itália do pós-guerra, quando esta já havia acabado há mais de uma década. (...)
Nessa efervescência de novas ideias e costumes, Fellini encontrou campo fértil para trabalhar suas loucuras e criar seu universo próprio. Três anos após ‘A Doce Vida’, em 1963, o cineasta realizou ‘8 ½’ (para muitos, sua obra-prima). Demorou apenas mais dois para surgir ‘Julieta dos Espíritos’. Completamente à vontade neste seu estilo de fantasia e de sonhos, Fellini aproveitou esta fita para experimentar novas técnicas (era seu primeiro filme colorido) e, de certa forma, contar a versão feminina de ‘8 ½’. E, por que não, se analisarmos o conteúdo da obra, redimir-se com sua esposa Giulietta Masina, estrela dos seus primeiros longas-metragens, ainda na fase neorrealista.
Basicamente, o enredo de Julieta dos Espíritos é até simples. Masina faz a protagonista, uma mulher já adentrando na faixa dos 40 anos, casada com Giorgio, que leva uma vida tipicamente burguesa, na sua enorme mansão, cercada por jardins e piscinas, acompanhada de suas duas copeiras. Tudo caminha bem, até que Julieta passa a desconfiar que seu marido tem um envolvimento extraconjugal. A investigação sobre a existência ou não deste caso, leva Julieta a enfrentar seus próprios demônios (sua sexualidade reprimida) revisitar sua infância (a encenação da sua primeira peça teatral), recordar dos bons momentos do passado (na figura do seu adorado avô), liberar-se de medos, traumas e neuroses que ficaram escondidas no inconsciente (sua subserviência à mãe fútil), enfim, reavaliar-se como mulher.
Nas mãos de Fellini, este roteiro é trabalhado da forma mais não usual possível. Ou melhor dizendo, à maneira de Fellini. Ao longo de sua jornada, Julieta depara-se com uma série de personagens estranhos, como o médium, ser assexuado, que lhe faz previsões; suas irmãs, que mais se preocupam com o visual do que com as próprias filhas; sua vizinha, feita por Sandra Milo (que já havia interpretado papel semelhante em ‘8 ½’), que tem por princípio o sexo livre e os relacionamentos abertos; os detetives particulares, responsáveis pela investigação do caso amoroso do marido da protagonista. (...)
Em linhas gerais, ‘Julieta dos Espíritos’ é quase sempre a comparado a ‘8 ½’. Em ambos os filmes, Fellini nos traz personagens em situações limites. Em ‘8 ½’, é o cineasta Guido, vivido por Marcello Mastroianni (no fundo, o próprio Fellini), internado num spa, em meio a problemas de saúde e bloqueios criativos, que passa a questionar os rumos para onde sua vida está lhe levando. Em ‘Julieta dos Espíritos’, é a dona de casa burguesa (talvez a própria Giulietta), que fez a opção por uma vida filial, e, ao se ver rejeitada pela matriz (seu marido), percebe que apostou nas fichas erradas. Nos dois casos, os protagonistas precisam decidir qual caminho seguir, já que as contingências da vida lhe estão exigindo tal postura”.
O que disse a crítica: Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Disse: “Emoldurada pelos acordes de Nino Rotta, compositor que muito contribuiu com Fellini, Giulietta Masina, outra colaboradora contumaz [obstinada, insistente], além de esposa do italiano, interpreta com várias sutilezas essa mulher em crise existencial, que luta contra os fatos e os resquícios para conseguir dar os próximos passos. ‘Julieta dos Espíritos’ passa a sensação de querer misturar todos os vieses, extraindo da massa disforme uma visão original do mote já bastante utilizado pelo cinema. Singularidade não falta a essa realização que, porém, se ressente da incisão em alguns fragmentos com potencial significativo, tanto do ponto de vista da dramaturgia quanto da imagem, ao passo em que se demora em demasia em momentos redundantes. Quando Fellini se entrega ao exagero, dando vasão à torrente de acontecimentos que embaralha real e sonho/visão, apresentando-os como irmãos siameses, o filme cresce excepcionalmente”.
Adriano Monteiro do site Vertentes do Cinema avaliou com 5 estrelas, ou seja, obra-prima. Escreveu: “’Julieta dos Espíritos’ (...) permanece esotérico, misterioso e espiritual até o fim. Até toda essa receita do realismo fantástico entrar em colapso junto com sua personagem, em nome de uma experiência cinematográfica absurda. No melhor nível de um filme que foge das convenções narrativas, propõe algo novo em cima de um tema comum a muitas mulheres. Assim como o cinema de Fellini procura outros olhares, formas de contar histórias pela experimentação da linguagem, Julieta também responde a esse processo em nome de uma emancipação, ainda não social, não política (mas que não deixa de ser), mas pessoal. A busca de ferramentas para percepções de mundo fora da curva é o que está em jogo em ‘Julieta dos Espíritos’. Ao afirmar o tempo todo a capacidade que temos de sonhar e não ignorar a janela que o cinema abre para essa experiência”.
O que eu achei: Trata-se de mais um exemplar daquela linha de filmes nos quais a atmosfera de sonho prevalece. A personagem principal é Julieta, interpretada por Giulietta Masina, esposa de Fellini. Ela interpreta uma mulher casada, bem de vida, mas que se vê subitamente perturbada pela desconfiança e posterior descoberta que seu marido a trai com outra mulher. Imersa num mundo onde realidade e fantasia se misturam, o filme envereda por um caminho surreal, marca registrada do cineasta que, a essa altura, já havia deixado o neorrealismo pra trás. Não espere linearidade, relações de causa e efeito, nem lógica racional. Essa Julieta é a dos espíritos, aquela que lida com pessoas reais, mas também com suas memórias de infância e com seres desencarnados. Uma viagem lisérgica onde tudo é extravagante: os personagens, as imagens, as alegorias e as cores (é o primeiro filme colorido do diretor). O mais puro suco de Fellini.