5.4.25

“Dahomey” - Mati Diop (Senegal, 2024)

Sinopse:
 
Novembro de 2021. Vinte e seis relíquias do Reino do Daomé estão prestes a deixar Paris para regressar ao seu país de origem, a atual República do Benim. Os artefatos, assim como milhares de outras peças, foram saqueados pelas tropas coloniais francesas em 1892.
Comentário: Mati Diop (1982) nasceu em Paris e cresceu numa família francosenegalesa. Começou trabalhando com teatro e, após uma breve passagem pelo Le Fresnoy (Estúdio Nacional de Arte Contemporânea), foi escolhida para protagonizar o longa “35 Doses de Rum” (2008) de Claire Denis. O encontro com a realizadora francesa confirmou o seu desejo de se tornar cineasta. Realizou curtas-metragens como “Atlantiques” (2009) e “Big in Vietnam” (2011), ambos vencedores do Tigre de Melhor Filme do Festival de Roterdã, “Snow Canon” (2012), exibido no Festival de Veneza e “A Thousand Suns” (2013), vencedor do grande prêmio do FIDMarseille. “Dahomey” é o primeiro filme que vejo dela.
Inácio Araujo da Folha SP nos conta que “’Dahomey’ é um documentário precioso que toma por pretexto a volta de 26 peças das 7.000 sequestradas pelos franceses após a invasão do reino da África ocidental, hoje República do Benin, em 1894. A surpresa é o narrador, a peça 26, que expressa o alívio por voltar ao lugar que é seu depois de mais de um século (o retorno data de 2021).
Entre os vivos as reações são divergentes: há quem elogie o esforço do governo para trazer as peças de volta; há quem julgue 26 um número irrisório diante dos 7.000 sequestrados; há quem denuncie a ‘boa vontade’ de Macron e dos franceses, que querem se fazer de simpáticos, depois de colonizarem o país por quase 70 anos. Alguém menciona a chegada das peças como motivo de orgulho nacional. Outro acusa a população de hipocrisia, pois vai à igreja católica de dia, mas de noite pratica a religião ancestral.
Uma discussão se estabelece sobre a porcentagem da cultura local saqueada: 10%? Ou 90%? A variedade das reações é imensa. É muito da cultura material, em todo caso, mas que dizer da cultura imaterial? Das danças, dos ritos, das crenças.
Para o quadro colonial ficar mais completo, essas crenças envolvem elementos religiosos iorubá, entre outros que conhecemos no Brasil. Como existem notícias de presentes dados por um rei local a D. João 6º, não é difícil deduzir, por todos os motivos, que muitos dos escravizados no Brasil vieram do antigo Daomé.
Em resumidas contas, ‘Dahomey’ nos coloca diante do caos produzido pelo colonialismo europeu entre os próprios ex-colonizados locais, e mais amplamente na África, que se reproduz na imensa variedade de pontos de vista expressados no filme sobre o retorno das 26 peças da estatuária agora restituídas. Elas são muito mais que isso. Elas colocam os ex-colonos (a independência se deu nos anos 1960, portanto há bem menos de um século) diante da necessidade de recriar seu país a partir, entre outras coisas, de uma língua estrangeira (o francês) imposta ao país, que os afastou de sua língua original e, com isso, de seu modo de pensar.
(...) Diop realiza uma quase miraculosa ordenação dos discursos tão díspares que procuram responder ao desafio de construir no século 21 um país destruído no século 19. Por mais díspares que sejam, esses discursos não enunciam nenhum disparate: todos apontam para um mesmo lado, todos pensam uma maneira de sair do labirinto colonial. É como se cada falante detivesse um fragmento do mosaico sobre o qual Benin precisará trabalhar para acompanhar as transformações da cultura ocidental que lhe foi legada (e de que hoje faz parte, queira ou não) sem renunciar a sua herança ancestral, essa que lhe foi roubada pela colonização.
O que produz a devolução dessas 26 peças do tesouro roubado é um rigoroso quebra-cabeça, a que ‘Dahomey’ dá forma, inclusive pelo seu caráter sintético. São 81 minutos de duração para uma história que inclui reis, guerreiras amazonas, escravizados etc. - destinos tão diversos que, aliás, incluem também a nós, brasileiros, nessa história infame”.
O filme venceu o Urso de Ouro do Festival de Berlim.
O que disse a crítica: Alexandre Cunha da Revista O Grito! avaliou com 4 estrelas, ou seja, ótimo. Disse: “Para um filme de sucintos 68 minutos, fiquei com a impressão de algumas cenas se alongarem mais que o necessário, como o debate entre os jovens sobre a postura em relação à restituição das obras. Apesar de um rico mosaico acerca das percepções de diferentes sujeitos do país africano, a passagem me despertou a curiosidade sobre a opinião de outras camadas sociais. Ali, claramente, vemos jovens politicamente engajados, instruídos. É um fragmento interessante da população, mas, ao meu ver, insuficiente. A solenidade de recebimento das obras, com toda a pompa e as vestimentas chiques, dão a deixa de que muitas pessoas do país enxergam a restituição das obras de arte como algo histórico, importantíssimo”.
Bruno Carmelo do site Meio Amargo também avaliou com 4 estrelas. Escreveu: A diretora “adota precauções éticas fundamentais: em primeiro lugar, nunca dá voz aos franceses que poderiam se vangloriar de tal gesto de ‘humildade’. Macron será citado uma única vez, por um jovem beninense, de maneira negativa. Historiadores, ministros e agentes culturais parisienses nem sequer aparecem nas imagens. ‘Os franceses já fizeram demais’, parecem afirmar as imagens. Demos a voz, portanto, aos conterrâneos das obras usurpadas. Diop escuta brevemente o discurso das autoridades do país, porém faz questão de inserir dúvidas de estudantes quanto aos méritos do presidente na repatriação dos tesouros nacionais. Assim, foge à armadilha de vangloriar qualquer representante capaz de se beneficiar politicamente do episódio. Para ela, trata-se de uma vitória dos cidadãos”.
O que eu achei: Terminei de ver o documentário curiosa para saber mais sobre o Reino de Daomé. Numa breve pesquisa levantei a informação de ter sido um reino da África Ocidental, localizado na atual Benim, que existiu de aproximadamente 1600 até 1904 e que muitos visitantes europeus estiveram por lá fazendo pesquisas e documentando o local, que produziu obras de arte significativas. Num dado momento eles começaram a disputar territórios com a França, com quem o reino entrou em guerra em 1890, resultando na vitória francesa. O reino caiu em 1894, quando o último rei, Beanzim, foi derrotado pela França, levando o país a ser anexado à África Ocidental Francesa como uma colônia francesa, ganhando posteriormente a independência em 1960 com o nome República do Daomé (em inglês, Dahomey), que em 1975 mudaria seu nome para Benim. O documentário é de uma delicadeza atroz. A diretora é mulher e parece mesmo haver uma feminilidade na forma de abordar essa questão importante e, ao mesmo, insignificante, da devolução de 26 relíquias das mais de 7 mil que a França usurpou do Reino de Daomé. Ou seja, devolveram pouco mais de 0,3% do que levaram. Daí vem as questões que o filme levanta, especialmente através da voz dos estudantes da Universidade de Abomey-Calavi, sobre a ‘boa vontade’ de Macron em devolver essas peças, o estrago que a colonização fez na vida das pessoas que nem sabem mais falar sua língua nativa, perdendo contato com suas danças, ritos, crenças, e por consequência forma de pensar. Tudo narrado pela peça número 26, que não chega a ser animada, mas consegue expressar seus pensamentos através de uma voz grave na língua nígero-congolesa Fongbè, começando seu discurso ao expressar seu alívio por voltar ao lugar que é seu depois de mais de um século. O resultado é um grande mosaico de pensamentos de um povo fragmentado que notadamente precisa se reconstituir. Excelente.