21.11.24

“O Mal Não Existe” - Ryusuke Hamaguchi (Japão, 2023)

Sinopse:
 
Takumi (Hitoshi Omika) e a sua filha Hana (Ryo Nishikawa) vivem numa aldeia perto de Tóquio de forma modesta e em harmonia com os ciclos da natureza. Mas um projeto de construção de um acampamento ameaça desestabilizar a comunidade, interferindo no abastecimento de água e desequilibrando profundamente a vida de quem aí habita.
Comentário: Ryusuke Hamaguchi (1978) é um cineasta japonês. Dentre seus filmes estão: “Passion” (2008), “Happy Hour” (2015), “Asako I e II” (2018), o bom “Roda do Destino” (2021) e o excelente “Drive My Car” (2021) que ganhou o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. “O Mal Não Existe” (2023) é o terceiro filme que vejo dele.
Joana Guerra Tadeu do site Ebulição nos conta que “’O Mal Não Existe’ é uma lição em ecologia e respeito pelo próximo. (...) A obra resulta de uma colaboração com a compositora e intérprete Eiko Ishibashi (...), a quem atribuo o desassossego da atmosfera de um lugar visivelmente sossegado. Aliás, em entrevista à RTP, o realizador confessou que não tinha grande ligação com a Natureza até fazer o filme, que não se sente à vontade para falar de ambientalismo, e que queria apenas harmonizar imagens deste mundo com a música de Eiko Ishibashi.
A Natureza é o ator principal, protagonista dos longos travellings e das sábias descrições de Takumi (Hitoshi Omika), que a vai narrando, primeiro à filha, Hana (Ryo Nishikawa), que ensina a distinguir árvores pela casca vermelha ou preta e alerta para os espinhos de um Ginseng Siberiano; depois ao vizinho, que chegou a Mizubiki há um par de anos para abrir um restaurante com a mulher, a quem mostra o sabor forte do wasabi silvestre; depois a dois funcionários da Playmode, uma agência de talentos de Tóquio que quer construir um campo de glamping [campismo de luxo] na floresta local, a quem explica, paciente e eficazmente, os impactos que o plano terá no abastecimento de água e no ecossistema local.
A narrativa realista enterra-nos fundo, para lá dos típicos conflitos do progresso contra a Natureza, do artificial contra o natural ou da cidade contra o campo; a disputa é conosco mesmos, que reconhecemos tanta familiaridade na vida de quem já habita Mizubiki, como na vida de quem lá chega com a função de implementar um plano do qual dependem os seus salários, pagos por uma empresa para a qual não fazem questão de trabalhar. É com satisfação que assistimos a uma reunião entre os forasteiros e a comunidade local a desmascarar a ignorância dos primeiros sobre a terra dos segundos. (...)
Podemos dividir o filme em três atos: depois do retrato tranquilo da vida quotidiana no mundo rural, uma curta comédia sobre as fantasias de regresso à Natureza de quem vive numa metrópole – ou não fosse o glamping um conceito de mercado para quem tem o desejo de experienciar a Natureza sem nenhum dos desconfortos ou inconveniências de o fazer, um conceito tão evidentemente fútil que apenas o capitalismo tardio poderia tê-lo criado –, seguido de um curta de terror, pleno em pungentes presságios sinistros, que de maneira nenhuma nos preparam para o bizarro e enigmático final”.
Mas será que Eiko Ishibashi fez primeiro a música e depois o diretor criou o filme em cima da música já pronta? O site do IMS nos explica que não. Segundo eles, o diretor Ryusuke Hamaguchi concedeu uma entrevista na qual ele conta que o que ocorreu foi que “no final de 2021 (...) Eiko Ishibashi me perguntou se eu poderia criar peças visuais para sua apresentação ao vivo. Isso foi depois de termos trabalhado juntos em ‘Drive My Car’. Achei que trabalhar com ela se tornaria algo interessante, então aceitei. Naquele momento, eu não sabia o que ela realmente queria, então trocamos e-mails, escrevemos um para o outro, compartilhamos ideias, até que, aos poucos, percebi que queria filmá-la fazendo música. Fomos até a casa dela e vimos a paisagem ao redor de onde ela trabalha e mora, em uma casa em meio à natureza, e eu a observei fazer música lá. Ela ficava girando os botões, fazendo música muito alta contra essa paisagem natural muito tranquila. Observando-a, comecei a perceber o que eu queria fotografar – imaginei que o ambiente em que ela trabalha deve ter influência em sua produção musical. Nossa relação de trabalho se inverteu em certa medida. Por exemplo, em ‘Drive My Car’, fizemos o filme primeiro, e depois conversamos sobre que tipo de música se encaixaria com o que tínhamos feito. Já neste filme, não é que já houvesse uma música pronta, mas eu estava criando algo que se encaixaria à sua música. Para isso, eu precisava pensar sobre que tipo de música ela faz e me preparar para o tipo de música que ela faz. Nesse sentido, sua música tem essa leveza e sutileza, e de fato se desenvolve gradualmente. Além disso, há algo em sua música que não necessariamente se resolve de um jeito fácil. E eu gostaria de garantir que a história e as imagens pudessem fazer o mesmo”.
Vale salientar que dessa colaboração entre ele e a compositora foram criadas não uma, mas duas obras audiovisuais: este longa e um outro filme trabalho chamado “Gift” que não tem sons, feito especialmente para ser reproduzido com acompanhamento musical ao vivo de Ishibashi.
“O Mal Não Existe” foi recebido com uma ovação em pé de oito minutos no Festival de Veneza, já abocanhou até o momento os seguintes prêmios: no Festival de Veneza 2023 levou o Grande Prémio do Júri e o Prémio FIPRESCI; no BFI 2023 London Film Festival ganhou como Melhor Filme; no Asia Pacific Screen Awards levou o Grande Prémio do Júri; além de ter sido exibido na Seleção Oficial do TIFF – Festival Internacional de Cinema de Toronto e do LEFFEST.
O que disse a crítica: Carlos Alberto Mattos do blog Carmattos achou o filme “um bocado decepcionante”. Ele achou a abordagem contemplativa da Natureza presunçosa e o desfecho estapafúrdio. Disse: “Eis um filme que abusou da minha paciência e da minha capacidade de absorver o arbitrário sob a capa do ‘tema muito importante’”.
Por outro lado, Peter Bradshaw do The Guardian avaliou com 4 estrelas, ou seja, excelente. Disse: "A eco-parábola enigmática de Ryusuke Hamaguchi [é] um filme realista que oscila à beira do desconcertante, cujo título aponta o caminho para uma ideia de que existem áreas cinzentas em todos os julgamentos que fazemos”.
O que eu achei: Assistir ao mais recente filme do diretor japonês Ryusuke Hamaguchi me fez entender por que a crítica especializada ficou tão dividida. De fato, não é um filme que qualquer pessoa vai gostar. Como já foi dito, a obra foi criada em parceria com a compositora Eiko Ishibashi. Hamaguchi a visitou em sua casa em meio à natureza e a observou fazendo música nesse local, uma música muito alta contra uma paisagem natural muito tranquila. Foi daí que surgiu a temática da natureza. O começo e o final do filme são muito semelhantes, com a belíssima música de Ishibashi tocando enquanto observamos um travelling maravilhoso mostrando as copas das árvores. Entre um travelling e o outro está o filme propriamente dito que vai mostrar a comunidade que vive nesse local perto de Tóquio cuja natureza ainda está tão bem preservada. Do nada, chegam na cidade dois representantes de uma agência de talentos sediada em Tóquio, que foi contratada para ir até o local informar à esses moradores que um empresário comprou uma grande área desse vilarejo onde ele pretende montar uma espécie de camping de luxo, que eles deram o nome de “glamping”, ou seja, "camping com glamour". Claro que esse empreendimento vai afetar a vida de todos ali: a qualidade da água será afetada, a rota que os veados fazem naturalmente pelo bosque teria que ser alterada, há o risco dos campistas fazerem fogueiras e isso pode gerar incêndios nos períodos de seca... enfim... uma série de problemas são discutidos entre essa dupla e os moradores. O final, que muitos julgaram estapafúrdio e enigmático, me parece tratar justamente do conceito do glamping: a vontade que o homem urbanizado tem de experienciar a Natureza sem nenhum desconforto ou inconveniente que o convívio com ela possa trazer, como se pudéssemos ficar "só com a parte boa da natureza". Esse final soa como um recado do cidadão nativo para o cidadão urbanizado: “não se meta com a natureza porque ela mesma se resolve”, pensamento esse que explica o título do filme de que na natureza o mal não existe, tudo faz parte de um ecossistema. Com isso, entre os que gostaram e os que não gostaram, com certeza estou do lado dos que gostaram e muito. É um filme sensível e belo que vale ser visto com toda a atenção.