2.7.23

“Nossa Senhora do Nilo” - Atiq Rahimi (Bélgica/França/Mônaco/Ruanda, 2019)

Sinopse:
Ruanda, 1973. Nossa Senhora do Nilo é um prestigioso internato católico no alto de uma colina, onde meninas adolescentes se preparam para serem a elite ruandesa. Com a formatura a caminho, elas compartilham o mesmo dormitório, os mesmos sonhos e preocupações. Mas em todo o país, como dentro da escola, antagonismos profundos ecoam, mudando a vida dessas jovens - e de toda a nação - para sempre.
Comentário: Atiq Rahimi é um escritor e cineasta afegão nascido em Cabul no ano de 1962. Ele tem dupla nacionalidade: francesa e afegã. Durante a guerra nos anos 80 saiu de seu país e refugiou-se na França, onde vive até hoje. Já assisti dele o bom “A Pedra da Paciência” (2012). "Nossa Senhora do Nilo" (2019) é uma adaptação do livro homônimo da escritora ruandesa Scholastique Mukasonga. Dividido em 4 partes - Inocência, Sagrado, Sacrilégio e Sacrifício - o filme conta a história de um grupo de meninas, algumas de famílias de elite e outras não tão privilegiadas, que estudam em um colégio interno comandado por belgas católicos. Estamos em Ruanda no ano de 1973. Em meio ao crescente conflito entre grupos étnicos locais e uma realidade colonial sintomática do eventual genocídio durante a Guerra Civil de Ruanda, as adolescentes vivem uma vida de travessuras e curiosidades típicas da idade, mas que resiste a uma cruel realidade em maior escala. Para compreender melhor o contexto, Luiz Santiago do site Plano Crítico nos explica que “Ruanda é um dos poucos países do continente africano que possui apenas um grande grupo cultural e linguístico, o Banyarwanda. Esse grande grupo divide-se em três povos distintos: hutu (a maioria), tutsi e twa (este último, um povo pigmeu, formado por apenas 1% da população). Os fortes embates étnico-políticos entre tutsis e hutus datam do período de colonização belga, que basicamente criou esse princípio de separação à semelhança de castas para controlar melhor certas regiões do país. Entre o final da dominação europeia e o início da independência de Ruanda, em 1962, essa briga se intensificou e o que vemos aqui em ‘Nossa Senhora do Nilo’ é uma semente do horror que ainda estava por vir, o chamado Genocídio Tutsi que assolou o país entre abril e julho de 1994, encabeçado por milícias hutus”. O livro de Mukasonga e, consequentemente, o filme, vão mostrar as disputas discursivas, ideológicas e culturais revelando relações de poder opressivas, em que a minoria cotista tutsi é constantemente humilhada por suas colegas hutus. 
O que disse a crítica: Santiago avaliou o filme como bom. Disse: “Enquanto os primeiros atos (...) estabelecem um conflito humano e que perpassa questões de posição social e contestações religiosas (estas últimas, infelizmente, desperdiçadas pelo diretor), o ato final se coloca como uma consequência inevitável, mas pouco orgânica no decorrer de toda a narrativa. O ódio étnico é adicionado aos poucos, mas tanto o roteiro quanto a direção nos fazem entender que se trata apenas de um ato isolado de calúnia, quando na verdade é um problema ainda maior. Isso, porém, nos é entregue como resultado, com o massacre acontecendo, a providencial salvação aparecendo para algumas estudantes e o espectador sentindo a falta de uma ligação mais orgânica entre os blocos”. 
Bruno Carmelo do site Papo de Cinema também avaliou como bom. Escreveu: “O desfecho se traduz numa experiência violenta demais para o público familiar, enquanto os dois terços anteriores resultam convencionais para o circuito ‘de arte’. É possível que, por meio das reviravoltas, Rahimi procure seduzir o público interessado numa produção despretensiosa, para então chocá-lo com a gravidade de outro tema. A provocação possui seu valor enquanto cinema e estratégia política, mesmo que o gosto seja um pouco amargo no final”.
O que eu achei: O filme nos ajuda a compreender, através das personagens Verônica e Alice (tutsis) e Modesta e Gloriosa (hutus), o embate entre esses dois grupos culturais. É como uma fábula lúdica que começa suave e vai, aos poucos, ganhando contornos dramáticos cujo desfecho não poderia ser pior. Ao final do filme, um letreiro nos conta que 1973 (que é o ano no qual a história se passa) foi um ano em Ruanda que, sob o pretexto das cotas estarem excedidas, houve uma expulsão do grupo tutsi de escolas, universidades, administrações e igrejas. Vinte anos mais tarde ocorrerá no país o Genocídio Tutsi que deixou mais de 1 milhão de mortos. Então, não se iluda com a delicadeza do começo da história. Atenção à fotografia, à competente produção de figurinos e à locação: um vilarejo perto do lago Kivu, no distrito de Rutsiro, no oeste do país. O instituto católico, que fica no cume da mata, ainda está em funcionamento.