18.10.25

“Marinheiro das Montanhas” - Karim Aïnouz (Brasil/França/Alemanha, 2021)

Sinopse:
Gravado em janeiro de 2019, acompanhamos a trajetória do diretor de cinema Karim Aïnouz após ele decidir pegar um barco, cruzar o Mar Mediterrâneo e ir rumo à Argélia. Carregando consigo a memória de sua mãe, Iracema, e sua câmera, Aïnouz traz a proposta de nos dar um relato sobre sua viagem à terra natal de seu pai, desde o processo de travessia marítima até a chegada às Montanhas Atlas em Cabília, no norte da Argélia e, por fim, ao seu regresso.
Comentário: Karim Aïnouz (1966) é um diretor de cinema, roteirista e artista visual brasileiro, nascido em Fortaleza, Ceará. Assisti dele os ótimos “O Céu de Suely” (2006) e "A Vida Invisível" (2019) e os bons "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo" (2009), “O Jogo da Rainha” (2023) e “Motel Destino” (2024). Desta vez vou conferir o documentário “Marinheiro das Montanhas” (2021) que mostra sua jornada até a Argélia em busca da memória de seus antepassados.
Humberto Maruchel da Revista Bravo! nos conta que “O filme é um diário da viagem que Karim realizou em 2019 à Argélia, o país de nascimento de seu pai, Majid Aïnouz. Nele, o cineasta se empenha em aprofundar o entendimento sobre seu próprio nome, que é tão comum na Argélia, e também investiga as origens de sua família, colocando uma pitada de fabulação e navegando constantemente pelos limites da ficção.
A história começa no navio que parte de Marselha, na França. Sem planos definidos, ele caminha pelas ruas de Argel acompanhado de um fotógrafo. A partir dessas andanças, emergem encontros com desconhecidos, retratos e cenas da vida cotidiana, mostrando um andarilho que oscila entre a sensação de pertencimento e um total deslocamento. As imagens de silêncio se cruzam com lembranças da infância. ‘É muito maluco, tenho um pai que conheci aos 20 anos [no documentário ele declara que tinha 18], que vem de um país emancipado, mas sobre o qual ele nunca me falou nada’, afirma Karim, em entrevista à Bravo!. ‘São 54 anos pensando nisso’, ele declara no filme.
Karim desembarcou no país dizendo às autoridades que se tratava de um jornalista indo para Argel e Cabília, querendo fazer uma reportagem para televisão brasileira. Ao dizer seu nome, ele se depara com uma curiosa compreensão: ‘É a primeira vez que não preciso soletrar’. Em Argel, portando a compacta filmadora Super 8, ele é confundido com um turista curioso, estratégia que facilitou o processo de gravação. ‘O país tem absoluto controle sobre as imagens que se produzem ali. Eu não podia abrir uma câmera sem passar por um instrumento turístico. Quando você faz esse tipo de filmagem, é preciso ir até a delegacia para pedir autorização para gravar em determinado bairro’. (...)
As paisagens e até mesmo a trajetória de seu pai Majid Aïnouz são comentadas sob a perspectiva do relacionamento [dos seus pais] – que não durou muito – o que confere à obra um tom mais melancólico. Iracema, uma bióloga brasileira, ganhou uma bolsa para estudar em Washington, nos Estados Unidos. E numa saída com amigos numa noite de boliche, ela conhece Majid, que havia deixado Cabília para estudar engenharia nos EUA. Ele foi embora da Argélia, ameaçado de morte, por lutar pela independência do país.
Na década de 1960, a ditadura se desenhava no Brasil, e na Argélia, o povo celebrava a independência recém-conquistada. Em 1963, o casal decide viver junto no Colorado. Alguns anos depois, Iracema volta para seu país de origem, grávida, e Majid, parte para Argélia, que se encontrava num momento de paz. A promessa era de que o pai de Karim buscaria a mãe para viver no país do Norte da África, o que nunca aconteceu. O cineasta foi criado pela mãe e pela avó materna, como tantas outras crianças brasileiras. O romance permaneceu por muito tempo como um quebra-cabeça para Karim, que, quando pequeno, perguntou para a mãe sobre a história dos dois, escutou de Iracema a definição de um ‘amor entre a indígena e o português colonizador’ como resposta.
‘Achava que faria essa viagem com meu pai e que ele me ajudaria a desvendar o país dele, mas não foi isso que aconteceu. Comecei a fazer a viagem sozinho, mas sem ter para quem contar. Ela tinha uma estrutura cronológica apenas, mas não dramatúrgica. Então eu trouxe os personagens: meu pai e minha mãe’, explica. (...)
A obra revela o perfil multicultural do cineasta, que transcende as diversas origens de seus pais e que está presente como um estilo de vida nômade. Nascido em Fortaleza, ele passou vários anos estudando nos Estados Unidos antes de se mudar para a França, onde sofreu muito preconceito pela ascendência árabe e, finalmente, estabeleceu residência na Alemanha, onde reside atualmente com o seu esposo, Mário Brandão. Enquanto isso, a Argélia permaneceu como um lugar mítico em sua imaginação, a ponto de nunca ter sequer pesquisado sobre o país no Google antes de empreender essa viagem. Ele chegou a declarar que ‘Marinheiro das Montanhas’ estava entre os cinco filmes que precisava fazer antes de morrer.
No fim do processo de montagem, Karim teve outra revelação, a de que estava diante de dois fenômenos paralelos: o romance improvável de seus pais e a revolução na Argélia. ‘Comecei a entender que esse filme era uma desculpa para me educar sobre a Guerra de Independência. A grande descoberta na montagem era entender que havia uma intersecção gigantesca entre a história íntima e a história geral’. O desafio a seguir era encontrar uma forma convincente de entrelaçar as duas narrativas. ‘Meus pais não teriam se encontrado se não houvesse uma Guerra pela independência na Argélia. E entendi que a relação deles era extremamente subversiva: um homem de uma tribo argelina que encontrou com uma mulher emancipada, cearense, cientista, nos EUA, em 1960. Tinha algo que me parecia muito próximo de uma revolução’”.
O que disse a crítica: Eduardo Kaneco do site Leitura Fílmica avaliou com o equivalente a 3,25 estrelas, ou seja, bom. Disse: “Aos 54 anos, Karim Aïnouz sentiu a necessidade de conhecer suas origens do lado paterno. Dessa forma, voltou mais completo, equilibrando o que já conhecia do lado da mãe brasileira. Mas, como é um cineasta por essência, não perdeu a oportunidade de transformar essa jornada em um filme. Demorou mais tempo na pós-produção de ‘Marinheiro das Montanhas’, um documentário mais elaborado formalmente do que o fugaz ‘Nardjes A.’, também filmado nessa viagem para Argélia. Dois belos filmes que compartilham o aprendizado de uma pessoa sobre as suas origens”.
Bruno Carmelo do site Papo de Cinema avaliou com 4,5 estrelas, ou seja, excelente. Escreveu: “’Marinheiro das Montanhas’ trata de unir a lembrança da mãe à figura do pai, o sentimento brasileiro à vivência africana do autor descrito muitas vezes como um ‘jornalista francês’. Ele sobrepõe gerações, gêneros e visões da sociedade distintos – a montagem faz questão de mencionar o rapaz saudoso da época que nunca viveu, quando os franceses ocupavam a Argélia. O cineasta foge à armadilha de tentar reparar profundas cicatrizes históricas pelo afeto, mas acredita na aproximação entre indivíduos num grau anterior à sua identificação ideológica e geográfica. Assim, propõe um filme de encontros corriqueiros, minúsculas obras do acaso que talvez permaneçam na memória justamente por sua imprevisibilidade. Em tempos polarizados, de incompreensão das dores alheias, o encontro com um vilarejo repleto de moradores de sobrenome Aïnouz, que se deixam filmar, envergonhados, e depois prometem uma cesta de doces para a ‘próxima vez que vier’, constitui uma pérola de encontro com o outro e consigo mesmo”.
O que eu achei: Assisti apenas cinco filmes do diretor brasileiro Karim Aïnouz: “O Céu de Suely” (2006), "Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo" (2009), "A Vida Invisível" (2019), “O Jogo da Rainha” (2023) e “Motel Destino” (2024). Pouca coisa perante sua extensa filmografia, e ainda assim o suficiente para eu me apaixonar pelo seu estilo de filmar. Aïnouz é hoje, para mim, um dos grandes nomes do cinema brasileiro contemporâneo, ao lado de Walter Salles, Fernando Meirelles e Kleber Mendonça Filho. Cada obra sua revela uma assinatura inconfundível: o olhar poético, o uso magistral da narração e uma câmera que parece sempre guiada pela emoção. “Marinheiro das Montanhas” (2021) é talvez o filme mais íntimo e belo de sua carreira. Um documentário que se desenrola como uma carta em movimento, feita de lembranças, silêncios e imagens que respiram. Aïnouz viaja à Argélia em busca de suas origens paternas. Filho de uma brasileira com um argelino que mal conheceu, empreende uma jornada que é ao mesmo tempo geográfica e afetiva, em busca de um pertencimento que atravessa oceanos e tempos. É um filme de descoberta, mas também de reconciliação: entre passado e presente, entre culturas, entre o homem e o cineasta. O resultado é de uma sensibilidade arrebatadora. O olhar de Aïnouz sobre a Argélia é repleto de respeito e curiosidade; sua voz em off é de uma honestidade desarmante, transformando memórias pessoais em matéria universal. Cada plano tem uma força poética que transcende o registro documental. “Marinheiro das Montanhas” reafirma a competência e a delicadeza desse cearense extraordinário, um artista capaz de transformar a própria biografia em arte de altíssima potência. É um filme que toca profundamente, e que confirma Karim Aïnouz como um dos cineastas mais sensíveis e necessários do nosso tempo. Conta-se que essa viagem também deu origem ao documentário "Nardjes A." (2019) no qual acompanhamos a jornada de uma jovem por Argel, a capital da Argélia, em 8 de março de 2019, Dia Internacional da Mulher, indo às ruas, ao lado de milhares de pessoas, em protesto contra a tentativa de o então presidente Abdelaziz Bouteflika se candidatar a um quinto mandato consecutivo. A conferir.