8.4.24

“Rapto” - Marco Bellocchio (Itália/França/Alemanha, 2023)

Sinopse:
1858, Edgardo Mortara (Enea Sala), um jovem judeu que vive em Bolonha, na Itália, após ser batizado secretamente, é tirado à força de sua família para ser criado como católico. Seus pais - Salomone Mortara (Salomone Mortara) e Marianna Padovani Mortara (Barbara Ronchi) - lutam para libertar o filho que se tornou parte de uma batalha política que colocou o papado contra as forças democráticas e de unificação italiana.
Comentário: Marco Bellocchio (1939) é um cineasta e ator italiano. Ele dirigiu mais de 23 longas-metragens, além de curtas e documentários. Vi dele apenas seu primeiro longa, o bom “De Punhos Cerrados” (1965).
Jorge Pereira Rosa do site C7nema nos conta que Marco Bellochio é um “Cineasta político, comprometido e antifascista, [que] questiona constantemente a violência das instituições”. Ele diz que “no seu mais recente filme (...) o realizador volta a colocar o foco na igreja, ao contar a história de Edgardo Mortara, um menino judeu que no século XIX é sequestrado para ser criado como cristão, o que desencadeia uma batalha política e protestos generalizados, quer na Itália como noutros países”. 
Em entrevista ao C7nema em Cannes, Bellochio declarou: “O meu interesse neste filme era contar a história deste rapaz que foi raptado pela Igreja, na figura do papa Pio IX, através do batismo. Este gênero de raptos era muito comum na época. Começaram no século XVI e duraram até 1858 (século XIX), quando aconteceu o caso do Edgardo. Tudo se baseia num princípio associado ao batismo, ou seja: quando você é batizado, pertence à igreja e tem de ser educado conforme os seus ensinamentos católicos. O poder da igreja era enorme. As pessoas protestavam, mas era impossível haver uma reversão, pelo menos até o caso do Edgardo. A razão pela qual o caso do Edgardo trouxe um enorme escândalo foi porque coincidiu com o fim do pontificado e da ligação da igreja ao estado. Os protestos foram generalizados e, até Napoleão III, um tradicional protetor do Vaticano, criticou o sequestro da criança e pediu a devolução da criança aos seus pais. Porém, nesta altura, o papa disse que não podia fazer isso pois era inconcebível para a igreja católica negar o princípio da irreversibilidade. A criança foi batizada, logo os laços familiares eram menores perante o desígnio da igreja. Mesmo com o escândalo, o Papa em questão, Pio IX, chegou a ser beatificado pela Igreja Católica, o que é um absurdo. Isso não foi só considerado um insulto, mas um crime, para a comunidade judia. (...) Para serem considerados santos pela igreja é preciso provar algum milagre. E não basta uma situação, são precisos duas ou três. As entidades católicas já pediram perdão aos judeus pela forma que lidam com eles ao longo de vários séculos, mas nunca pediram por este caso em particular”.
Rosa comenta que “em alguns círculos mais conservadores da igreja surgiram críticas e defesas às decisões do Papa Pio IX na época, o que motivou o atual rabino-chefe de Roma, Riccardo Di Segni, numa carta aberta ao jornal La Repubblica, mostrar a sua preocupação. Curiosamente, o jornal da Cidade do Vaticano, o Osservatore Romano, já opinou sobre o assunto com um editorial (...) observando que hoje em dia o sequestro de Edgardo Mortara ‘não poderia se repetir’, pois ‘o Concílio II do Vaticano, que durante o início da década de 1960 aproximou a Igreja das necessidades e condições do mundo moderno’, ajudou a mudar a perspectiva ‘daqueles tempos em que todas as crianças batizadas deviam ser educadas sobre os desígnios católicos, mesmo contra a vontade dos pais’”.
O que disse a crítica: Luiz Oliveira do site Metrópolis avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: “Não faz tanto tempo assim que o poder das instituições eram plenos, especialmente no que tange a religião. E é isso que Bellocchio procura explorar. (...) Os cenários são suntuosos, a fotografia e a trilha sonora, luxuosas. Cabe notar, além da crueldade destes homens, o descaso com o qual eles tratam a comunidade judaica. Sem dúvida, um prenúncio terrível do que ainda seria perpetrado contra estes no continente. Ao comentar sua participação no rapto da criança, um dos personagens explica que estava meramente ‘cumprindo ordens’”.
O que eu achei: O filme conta uma história verídica ocorrida em 1858 de um menino chamado Edgardo Mortara, filho de pai judeus. Ele vivia normalmente em sua casa, junto com mais oito irmãos quando, inexplicavelmente, descobrem que, aos seis anos de idade, ele havia sido batizado. De fato, depois de muita pesquisa, resolvem o enigma: uma antiga governanta da casa, temendo que ele “fosse para o limbo após morrer”, resolveu, ela mesma, batizá-lo, seguindo as orientações de um comerciante católico local. O fato insólito é que as autoridades episcopais da cidade de Bolonha resolveram então arrancar o menino Edgardo das mãos de seus pais, o rebatizaram à força e o levaram para ser adotado pelo próprio papa Pio IX. O caso teve enorme repercussão e acirrou os ânimos antieclesiásticos do movimento nacionalista. O resultado é um drama mostrando as tentativas da família de reaver a criança. A trama é narrada de forma convencional, com uma belíssima fotografia. Bellocchio, do alto dos seus 83 anos, sabe muito bem como fazer isso. Atenção para o ator mirim italiano Enea Sala, um encanto de criança que interpreta Edgardo na infância. Um bom filme que vale ser visto, especialmente para se conhecer melhor a história das instituições e entender um pouco o abismo para o qual o mundo caminha. Boa pedida.