17.3.24

“Ficção Americana” - Cord Jefferson (EUA, 2023)

Sinopse:
O autor Thelonious "Monk" Ellison (Jeffrey Wright) fica irritado depois que um de seus trabalhos não foi aceito pelas editoras e sua carreira parece estar estagnada já que sua obra não é considerada "negra o suficiente". Enquanto isso o livro “We's Lives in Da Ghetto”, de Sinatra Golden (Issa Rae), chega à lista dos mais vendidos, deixando o autor em crise ainda mais frustrado. Ao perceber o tipo de conteúdo que o público parece estar interessado, Thelonious decide escrever um romance satírico sob pseudônimo na intenção de expor as hipocrisias do mundo editorial.
Comentário: Cord Jefferson (1982) é um escritor e cineasta estadunidense nascido no Tucson, Arizona. Filho de mãe branca e pai negro, seu avô materno ficou chocado com a escolha de sua filha de se casar com um homem negro e excluiu ela e seu neto de sua vida. Os pais de Jefferson se divorciaram quando ele tinha 14 anos, após o primeiro ano do ensino médio. Ele trabalhou como escritor, produtor, editor e consultor de diversas séries. Sua estreia na direção de longas-metragens se deu com este filme - “American Fiction” (2023).
Jorge Roberto Wright do site Meu Valor Digital nos conta que o filme “é baseado no romance ‘Erasure’ [Apagamento] de Percival Everett, de 2001, o [enredo] segue um professor-romancista frustrado que escreve um livro estranhamente estereotipado por despeito, apenas para que seja publicado e receba fama e aclamação generalizadas. [Isso porque] o autor Thelonious ‘Monk’ Ellison (Jeffrey Wright) fica irritado depois que um de seus trabalhos não foi aceito pelas editoras e sua carreira parece estar estagnada pois sua obra não é considerada ‘negra o suficiente’. Enquanto isso, o livro ‘We’s Lives in Da Ghetto’ [Vivemos no Gueto], de Sinatra Golden (Issa Rae), chega à lista de mais vendidos, deixando o autor em crise ainda mais frustrado. Ao perceber o tipo de conteúdo que o público está interessado, Thelonious decide escrever um romance satírico sob pseudônimo na intenção de expor as hipocrisias do mundo editorial”.
O cineasta, que começou sua carreira como jornalista, declarou que há uma percepção restrita sobre como é a vida negra e sobre as histórias que as pessoas esperam que elas contem. Então, quando ele começou a trabalhar com o cinema, ele achou que se libertaria disso, só que não.
O filme concorreu ao Oscar nas seguintes categorias: Melhor Filme, Melhor Ator (Jeffrey Wright), Melhor Ator Coadjuvante (Sterling K. Brown), Melhor Roteiro Adaptado (Cord Jefferson), Melhor Trilha Sonora (Laura Karpman). Levou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado.
O que disse a crítica: Marcelo Müller do site Papo de Cinema avaliou com 3 estrelas, ou seja, bom. Escreveu: “Desde que se tornou uma espécie de mantra repetido na nossa contemporaneidade, o tópico ‘diversidade’ também virou uma comodity valiosa. Os mecanismos capitalistas compreenderam a demanda crescente e fomentam a oferta para satisfazê-la, assim produzindo fenômenos de massa que muitas vezes perdem em contestação por conta da intenção mercadológica. Mas, numa realidade como a nossa, é possível atingir qualquer alcance maior se ignorarmos as lógicas de mercado? Ou, por menor que seja a ressonância esperada, sempre estaremos submetidos às engrenagens do capitalismo, cuja tendência é embalar os discursos para consumo?”. Müller acredita que “’Ficção Americana’ poderia se embrenhar mais entre as camadas da representação, questionando realidade, imaginação e invenção, uma vez que estamos falando de um filme exatamente sobre o ato de criar”. Para ele, o personagem “Monk [é apresentado] como um homem ora correto, ora absolutamente equivocado, mas [o filme] não mergulha nessa sua ambivalência. É um filme bonitinho sobre assuntos espinhosos, uma comédia inquisidora, mas contemporizadora demais”.
Guilherme Jacobs do site Chippu avaliou com 3,5 estrelas. Disse: “’Ficção Americana’ claramente defende uma gama maior de narrativas negras, mas em momento algum somos levados a acreditar que Monk está 100% certo em seu descarte do gueto, das ruas e da violência. Essa é, afinal, a vida de muitos negros. Com exceção [de uma única cena] (...), Jefferson não explora as contradições fascinantes levantadas por sua obra e seu protagonista, mantendo as (boas) piadas apenas na superfície. O humor nunca corta fundo demais. Por isso, a conclusão metalinguística, uma que admite a dificuldade de finalizar o próprio filme, por mais curiosa e excêntrica que seja, ainda decepciona. Ela é embasada nos dilemas profissionais de Monk e em questões não resolvidas levantadas por Jefferson, e portanto falha na hora de oferecer resolução (ou até se apoiar na falta dela)”.
O que eu achei: Uma vez ouvi um desses pensadores contemporâneos dizer que quando a Natura decide criar produtos autossustentáveis vendidos em embalagens recicláveis ou a Dove resolve que agora os seus produtos são “para todo tipo de mulher” isso surge, menos motivado por uma preocupação direta com o meio ambiente e com a diversidade e mais por verem, dentro de uma lógica de mercado capitalista, uma comodity, ou seja, algo para ganhar dinheiro em cima. Lembrei muito disso quando vi esse filme. Afinal as editoras e mesmo o cinema também já entenderam que certos assuntos dão ibope pois há muita gente no mundo preocupada com determinadas questões. O interessante aqui é que, mesmo sendo um assunto sério e complexo, o filme é revestido de humor, tornando tudo mais leve e engraçado. O personagem principal, que é um escritor negro, está com sua carreira estagnada pois sua obra não é considerada “negra o suficiente”. Enquanto isso, a romancista negra Sinatra Golden estoura em vendas e fama lançando um livro estereotipado que todo mundo quer comprar. O filme, como disse a crítica, ao mesmo tempo que defende uma gama maior de narrativas negras, não se aprofunda tanto e nem apresenta soluções, mas levantar essa questão com tanta leveza já me parece um grande feito. O final, aliás, não poderia ser melhor. Não quero dar spoiler aqui, mas vale prestar muita atenção nos três finais possíveis que são sugeridos pelo escritor para um cineasta branco que vai adaptar para o cinema uma de suas obras. Essa finalização - que é também o final do próprio filme que estamos vendo - é tragicômica. Uma sátira fresca, inteligente, perspicaz, incisiva e afiada que vale ser vista.